“Não quero que os meninos da escola vejam o meu bairro”
Corte de ligações clandestinas de electricidade deixa 115 famílias sem luz na turística Costa da Caparica.
Pos isso, chamemos-lhe Maria. Tem 12 anos de idade e é estudante do 6.º ano de escolaridade. Boa aluna, nunca reprovou e leva a escola muito a sério. Agora, desde quarta-feira, é mais difícil estudar porque a habitação onde a família vive, que já não tinha água nem esgotos, deixou também de ter luz.
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Pos isso, chamemos-lhe Maria. Tem 12 anos de idade e é estudante do 6.º ano de escolaridade. Boa aluna, nunca reprovou e leva a escola muito a sério. Agora, desde quarta-feira, é mais difícil estudar porque a habitação onde a família vive, que já não tinha água nem esgotos, deixou também de ter luz.
A EDP cortou o fornecimento de electricidade que era feito através de ligações clandestinas.
“A menina não consegue estudar à luz das velas”, diz a mãe, Paulina Martins, relatando a ginástica de quem vive sem electricidade em casa. “No dia em que cortaram a luz tínhamos um frango e outras coisas no frigorífico que quase se estragaram, agora temos de ir todos os dias aos supermercado e, quando abrimos um pacote de leite, temos de o beber logo todo”, conta, a caminho do tanque onde lava a roupa manualmente, porque máquina de lavar é outra coisa inacessível sem energia eléctrica.
Maria é uma das cerca de 70 crianças de um total de mais de 480 pessoas, entre as quais alguns idosos que têm como residência os dois bairros instalados em área protegida. Os números são de 2013 de um recenseamento feito pelo projecto Fronteiras Urbanas: a dinâmica de encontros culturais na Educação Comunitária subsidiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia e apoiado pelo Instituto de Educação da Universidade de Lisboa .
A zona é Reserva Agrícola Nacional há muitos anos e Reserva Ecológica Nacional mais recentemente. Por isso a maioria das casas dos dois bairros é clandestina e não pode ser legalizada. Apenas umas duas, das mais antigas, anteriores ao estatuto de área protegida, são consideradas construções legais. Essas têm contrato com a EDP e o fornecimento não foi cortado. Assim como não foi desligada a ligação clandestina de uma terceira habitação, neste caso por razões de saúde, porque nela reside uma mulher dependente de uma botija de oxigénio.
Em todas as outras 115 casas, segundo Mónica Mesquita, investigadora principal do projecto que tem ajudado as comunidades ciganas e cabo-verdianas que constituem os dois bairros, foi cortada a ligação eléctrica.
A EDP Distribuição confirma o corte, mas não fornece números. “Nós fomos chamados ao local pela Guarda Nacional Republicana (GNR) porque teria havido um furto de cobre e desfizemos as ligações clandestinas que detectámos”, disse ao PÚBLICO Maria Antónia Fonseca do gabinete de comunicação da empresa.
“No local existem pessoas que têm energia eléctrica com contrato cujo fornecimento se mantém”, acrescenta a mesma responsável, explicando por que razão não pode quantificar. “Não sabemos quantas pessoas são porque nós não cortámos ligação a cada casa, desligámos os cabos que não faziam parte da nossa infra-estrutura eléctrica, e fizemo-lo por razões de segurança, tanto das pessoas como da rede”, afirma Maria Antónia Fonseca.
Os moradores reconhecem que as ligações são clandestinas, mas afirmam que não têm alternativa, uma vez que não podem fazer contratos com a EDP por as casas serem ilegais.
“A população está disponível para pagar, contribuir, queremos legalizar a situação para podermos viver com dignidade”, diz Admilson Almeida. “A EDP não nos reconhece e a Câmara de Almada não quer resolver o problema”, queixa-se este morador, deixando um aviso: “Um dia vai haver uma revolução a sério”.
A falta de paciência é demonstrada também pelo presidente da Junta de Freguesia da Costa da Caparica.
“Exigimos que isto seja resolvido de uma vez por todas”, atira José Ricardo Martins (PS), para quem “não é admissível que esta situação exista à entrada de uma cidade que se diz virada para o turismo”.
A Câmara Municipal de Almada (CDU) emitiu uma nota à comunicação social onde diz querer “acreditar que todas as diligências foram tomadas pelo Governo e pelas autoridades competentes para acautelar as situações” das pessoas, designadamente das que sofrem de problemas de saúde”.
O município quer também “acreditar que em Portugal não prevalecem manifestações de insensibilidade social e humana como aquelas a que se assiste na Europa a propósito dos fenómenos migratórios que atingem o Mediterrâneo.”
A solução para o problema pode, no entanto, passar pela autarquia. A EDP Distribuição admite fornecer energia eléctrica a estes bairros, apesar da sua génese ilegal, através de uma solução idêntica aquela que é usada para o fornecimento de luz a loteamentos.
Essa hipótese está a ser equacionada pela empresa, que a considera uma “forma segura”, mas depende de um acordo prévio com o município. “Estamos em negociações com a Câmara de Almada e encontraremos alguma solução”, promete Antónia Fonseca.
A ligação tipo loteamento é uma solução já aplicada noutros locais do país com características similares, segundo a EDP distribuição, que revela estar em “vias de implantação” também no Bairro do Torrão, em Almada, no âmbito de negociações entre a autarquia e a empresa que estão “em fase adiantada”.
A primeira ajuda a chegar aos bairros, após o corte da luz, foi do centro paroquial, do padre António Pires, que disponibilizou arcas frigoríficas para os moradores guardarem medicamentos e alimentos, e da Protecção Civil Municipal, que colocou no local um gerador portátil para fornecimento de energia eléctrica.
O gerador, no entanto, só tem capacidade para cerca de 30 casas, num dos dois bairros, e está a funcionar “a título extraordinário e temporário”, esclarece a autarquia na mesma nota.
Soluções definitivas não são ainda conhecidas e o gerador, pelo que o PÚBLICO apurou no local, poderá ser retirado na segunda-feira.
Para Maria, cuja habitação não é das abrangidas pela luz do gerador, o aparelho ficar ou não para além de segunda não é, para já, o mais importante. A sua prioridade é o exame nacional de Português, do 6.º ano, que vai fazer no dia seguinte, na próxima terça-feira, como tantos milhares de outras crianças.