O que um coreógrafo vê enquanto está a dormir
Plateau Effect, de Jefta van Dinther, encerra este sábado o ciclo Os Dias da Dança no Teatro Municipal do Porto – Rivoli.
Foi “um salto”, reconhece o coreógrafo e bailarino sueco do outro lado da chamada Skype – um salto quântico, acrescentamos nós, tendo em conta que não passou assim tanto tempo entre o transe epiléptico, e furiosamente individualista, de uma e a energia construtora, e furiosamente colectiva, da outra (uma energia que, mesmo sendo Plateau Effect tão do século XXI, imaginamos mais ou menos imutável desde o tempo da construção das Pirâmides de Gizé).
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Foi “um salto”, reconhece o coreógrafo e bailarino sueco do outro lado da chamada Skype – um salto quântico, acrescentamos nós, tendo em conta que não passou assim tanto tempo entre o transe epiléptico, e furiosamente individualista, de uma e a energia construtora, e furiosamente colectiva, da outra (uma energia que, mesmo sendo Plateau Effect tão do século XXI, imaginamos mais ou menos imutável desde o tempo da construção das Pirâmides de Gizé).
Encomenda do Cullberg Ballet – uma das mais sólidas companhias de dança do Norte da Europa, com o peso, possivelmente excessivo para um coreógrafo de apenas 33 anos e com uma história de criações vagamente transgressoras, de uma grande instituição em cima –, Plateau Effect obrigou Jefta van Dinther a trabalhar a toda uma outra escala. “Convidaram-me a fazer uma coreografia para um elenco maior, para um palco maior e com condições que eu nunca tinha podido sequer considerar. Artisticamente, claro, foi um desafio de uma magnitude enorme: obrigou-me a pensar de maneira completamente diferente. Subitamente, tive de lidar com uma audiência que está na 30.ª ou na 40.ª fila e não já ali na décima. Mais do que isso: subitamente, tive de lidar com um elenco de nove pessoas, em vez de uma, duas ou três no máximo, e que estava pré-determinado, experiência que eu nunca tinha tido porque sempre escolhi os meus intérpretes.”
Ali estava Jefta, então, no olho do furacão – e armado com toda a desconfiança da sua geração em relação à agenda das grandes instituições. “Temos sido muito contaminados pela ideia de que as instituições são o inimigo. Mas rapidamente percebi que as cedências que eventualmente teria de fazer teriam uma recompensa.” Por exemplo: não teve de abdicar da sua maneira de trabalhar, que geralmente parte de ideias “específicas mas suficientemente abertas” para que o processo de criação possa ser “verdadeiramente colectivo” (até Grind, o seu mais radical solo, era um threesome com a designer de luz Minna Tiikkainen e o sonoplasta David Kiers, sem os quais a peça não seria o violento abalo sísmico que é).
Desta vez, e até pela pressão social de estar a trabalhar com um grupo grande, queria saber “o que é que forma uma comunidade, como é que funciona um grupo, como é que um conjunto de pessoas consegue atingir coisas que são impossíveis só com um ou dois indivíduos”. Foi isso que pediu aos bailarinos – que se concentrassem em acções e actividades básicas (transportar, construir, levantar, prender), o tipo de acções e actividades básicas que estão por trás dos grandes empreendimentos, tipo Pirâmides de Gizé. Ou tipo uma tenda gigante, a primeira visão que Jefta van Dinther teve quando começou a construir (o termo também se aplica aqui) Plateau Effect: “Não conseguia descolar desta imagem: uma tenda colapsada. Às tantas desisti, mas a meio dos ensaios, quando pedi aos técnicos que me trouxessem um pedaço de tecido com que pudéssemos fazer experiências, a ideia que tinha sido descartada voltou e tornou-se protagonista. Tal como em Grind, em Plateau Effect a interacção com os materiais é a própria coreografia. Todas as acções são mediadas pela tenda: a peça faz o tecido da tenda dançar, e vice-versa.”
Ajuda se explicarmos que a peça que Jefta van Dinther hoje traz ao Rivoli é, clarissimamente, sobre o esforço colectivo, e urgente, de construção de um lugar, com todas as ordens e contra-ordens que essa epopeia implica. E foi aqui que o salto se mostrou maior para o coreógrafo: “Em Grind, era como se estivéssemos sempre a esconder o que estava a ser contado; aqui, o que tu vês é o que há. Está tudo iluminado, está tudo às claras. Tive de dar o salto entre um objecto muito pessoal, quase hermético (mesmo que a peça fosse uma forma de o exteriorizar, Grind era sobretudo uma coisa que acontecia dentro da minha cabeça), e um objecto que claramente responde à minha necessidade, e à minha vontade, de me deixar traduzir, de me tornar inteligível.”
Não é óbvio para quem está de fora, mas ainda assim o resultado final de Plateau Effect tem a forma reconhecível de uma trabalho difícil mas que alguém tem de fazer – construir um barco, uma casa, um território, um país. E é normal, consola-nos o coreógrafo, que o que vemos acontecer em palco tanto nos pareça um sonho como um pesadelo: “Plateau Effect conforta-me e assusta-me ao mesmo tempo. Ultimamente tenho tido muitos sonhos e muitos pesadelos, ao ponto de ter deixado de conseguir distingui-los. Mas a maneira como trabalho, como lido com os temas, vem de coisas que encontro quando não estou acordado, como a arquitectura desta peça. É uma sensação muito estranha: até os meus pesadelos começam a ser produtivos.”