Terminal de cruzeiros de Leixões: um óvni fora de água

A ousadia da forma do novo Terminal de Cruzeiros do porto de Leixões, em Matosinhos, é testemunho de uma mudança nas práticas de projecto que acompanha a transformação económica do país.

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O novo terminal é um alienígena no panorama da arquitectura portuense, apesar de o seu autor ser docente na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto Fernando Guerra

A principal crítica feita ao edifício – até agora em surdina – é a gratuitidade da sua forma. Porquê aqueles efeitos arrevesados? Qual a necessidade de procurar formas inéditas que, afinal, nem sequer são tão inéditas assim? Para cúmulo, a obra tem uma dimensão assinalável, ao ponto de o edifício se tornar um marco urbano e uma presença incontornável na frente atlântica. Em muitos círculos, esta ousadia é condenada. Uma outra crítica, talvez mais justa, é que, apesar da ousadia e da vontade formal, o edifício não é extraordinário: a beleza das formas é sempre discutível, a qualidade dos acabamentos pode deixar a desejar, há dúvidas quanto à eficiência do seu funcionamento que só o tempo vai confirmar ou dissipar. Enfim, toda a arquitectura é falível. Apesar de legítimas, não creio que estas críticas sejam produtivas. Esta obra merece destaque e merece ser debatida, pela positiva, porque assinala a presença de qualidades e competências numa escala e numa forma inéditas em Portugal e, embora não sendo uma obra extraordinária, é arquitectura de qualidade.

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A principal crítica feita ao edifício – até agora em surdina – é a gratuitidade da sua forma. Porquê aqueles efeitos arrevesados? Qual a necessidade de procurar formas inéditas que, afinal, nem sequer são tão inéditas assim? Para cúmulo, a obra tem uma dimensão assinalável, ao ponto de o edifício se tornar um marco urbano e uma presença incontornável na frente atlântica. Em muitos círculos, esta ousadia é condenada. Uma outra crítica, talvez mais justa, é que, apesar da ousadia e da vontade formal, o edifício não é extraordinário: a beleza das formas é sempre discutível, a qualidade dos acabamentos pode deixar a desejar, há dúvidas quanto à eficiência do seu funcionamento que só o tempo vai confirmar ou dissipar. Enfim, toda a arquitectura é falível. Apesar de legítimas, não creio que estas críticas sejam produtivas. Esta obra merece destaque e merece ser debatida, pela positiva, porque assinala a presença de qualidades e competências numa escala e numa forma inéditas em Portugal e, embora não sendo uma obra extraordinária, é arquitectura de qualidade.

Um gesto de desejo
A obra de Luís Pedro Silva nasceu no contexto de uma reorganização estratégica do Porto de Leixões. O incremento do trânsito de passageiros era uma das possibilidades para a expansão e a afirmação internacional do porto e, por várias razões, o antigo terminal – um edifício notável, concebido em 1955 pelo arquitecto Francisco Figueiredo – não tinha condições para cumprir essa ambição. Foi no contexto desse plano estratégico – uma massa assinalável de relatórios, estudos e propostas alternativas – que se optou pela localização de um novo cais de acostagem à entrada do porto (que também simplifica o transito de embarcações no interior do complexo). Entre o novo cais e o molhe sul fez-se uma marina de recreio e no mesmo intervalo, a 800 metros da linha de costa, implantou-se o novo edifício. Ao escolher esse ponto para localizar funções de acesso público, vai ser possível abrir uma parte da área portuária para usufruto da cidade através da extensão do Jardim do Senhor do Padrão (ainda por realizar) e aceder ao passeio pedestre sobre o Molhe Sul, uma conquista assinalável que oferece novas perspectivas sobre a cidade e o mar. No decurso do processo, a Universidade do Porto perfilou-se para ser parceira da operação e instalar no edifício o seu Pólo de Mar, uma unidade de investigação que integra administração, laboratórios e aquários. Para além da ocupação permanente do edifício por cerca de 250 investigadores, a associação com a universidade permitiu encontrar um modelo viável para o financiamento da construção. Se, como previsto, se recuperar e remontar o magnífico guindaste Titan – hoje muito danificado após o acidente que sofreu quando foi desmontado para restauro em 2012 –, a relação entre o Porto de Leixões e a frente marítima de Matosinhos poderá ter uma nova vitalidade; o novo Terminal de Cruzeiros é a peça chave para alcançar essa dinâmica pública do lugar. O projecto quer ancorar à cidade o gesto de reorganização do espaço portuário.

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Numa visão crua e que exige ser contrariada, um terminal de cruzeiros é apenas uma sala de espera, onde os passageiros embarcam e desembarcam, cumprem formalidades alfandegárias e prosseguem para novos destinos. É um edifício praticamente vazio que, de um momento para outro, uma ou duas vezes por dia, recebe vagas que podem atingir as 2.500 pessoas para, no espaço de algumas horas, se esvaziar novamente à espera de um novo barco. Os promotores das viagens querem ultrapassar esta visão estritamente funcional, e têm consciência de que os embarques são um momento marcante das viagens, tão ou até mais importante do que o tempo de permanência nos barcos. A forma do edifício deixa transparecer o desejo de dar significado a esse fluxo de passageiros: é uma linha contínua que descola do molhe, envolve o espaço circular do terminal e se prolonga ao longo do cais de acostagem. Com a integração do Pólo de Mar da Universidade do Porto, o edifício ganhou ainda mais complexidade, garantindo um cruzamento de funções. Através de um gesto de desenho, a ideia estratégica da ligação dos barcos à cidade ganha forma física e dá estrutura ao programa. No desenho, é uma forma que torna explícita a competência da arquitectura para organizar espaços, determinar movimentos e dar sentido urbano às construções. Como ponto de partida, é o contrário da forma icónica – quando se projecta um símbolo capaz de atrair as atenções sobre si próprio, independentemente das suas articulações funcionais. O gesto de desenho do novo Terminal de Cruzeiros procura ser uma consequência lógica das necessidades programáticas e contingências físicas da sua envolvente.

O vizinho mais próximo do Terminal de Cruzeiros são os próprios cruzeiros, construções flutuantes de dimensões colossais, que em Leixões chegam a atingir os 320 metros de comprimento e mais de 40 metros de altura. É este o paradoxo do projecto: uma obra que se quer articular com a cidade próxima, mas cuja dimensão de referência são os navios transatlânticos. Talvez por isso possa parecer um peixe fora de água, ou um objecto voador não identificado. Quem sabe se a cisão de opiniões não decorre dessa dupla natureza: ser um edifício da água e do mar, ou da terra e da cidade. Para todos os efeitos, é um edifício do mar: está assente sobre água em estacaria que só encontra chão firme a dez metros de profundidade. A escala da construção garante a força monumental do gesto, tornando-o susceptível de corresponder às expectativas de projecção internacional do Porto de Leixões. Ao criar uma forma singular, o projecto foi capaz de atrair sobre si a atenção e o entusiasmo necessários para captar investimento e poder existir. O gesto, num primeiro momento contextualista e programático, transformou-se numa imagem de desejo.

O efeito Casa da Música
A fotogenia das superfícies curvas, revestidas com azulejos cerâmicos hexagonais que formam padrões aleatórios, promete mais um êxito no mercado de consumo de edifícios mediáticos. Tal como a forma inusitada da Casa da Música preencheu noticiários sobre mais uma façanha urbana – um triunfo da técnica para a criação de espaços singulares representativos do nosso tempo –, o terminal parece destinado a alimentar a profusão de símbolos urbanos da cidade. Mas há diferenças substanciais entre as duas obras. Enquanto Rem Koolhaas, o arquitecto-estrela da Casa da Música, foi convidado para construir um ícone capaz de simular o efeito Bilbau, Luís Pedro Silva é um ilustre desconhecido e o Terminal de Cruzeiros a sua primeira obra relevante. A encomenda do projecto não decorreu de um concurso em busca de vedetas (fossem elas o arquitecto ou o projecto), mas foi consequência de um processo de reflexão longo e maturado, que incluiu muitos intervenientes, sobre as condições e as formas possíveis para o desenvolvimento do Porto de Leixões. Ou seja, a fotogenia serpenteante não corresponde a uma imagem pré-cozinhada para surpreender um júri de circunstância, mas é o resultado de um processo de consideração de alternativas que ponderou múltiplos factores, das contingências económicas às exigências mediáticas da obra.

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Também ao contrário da Casa da Música, ou do exemplo recente da Filarmónica de Paris, os custos da obra não derraparam em relação ao previsto. O preço final do edifício, estimado inicialmente em 28 milhões de euros, cifrou-se na casa dos 25 milhões. A relação de valores entre as obras envolventes e o edifício propriamente dito dá conta da natureza secundária atribuída à arquitectura neste processo em que o grosso do investimento foi para as obras de engenharia e infraestrutura: só o cais de acostagem custou aproximadamente 23 milhões de euros, quase tanto como o edifício. Talvez seja essa a face mais vulnerável da obra, uma vez que não se vislumbram os requintes dos detalhes construtivos e os padrões luxuosos das arquitecturas de autor. O investimento centrou-se na força do gesto, capaz de garantir a coerência do conjunto. Por vezes, essa disponibilidade para prescindir da solução mais dispendiosa em prol do equilíbrio de custos trouxe benefícios ao resultado final. O exemplo é a opção pelo revestimento cerâmico nas paredes exteriores, em detrimento da solução em betão-branco aparente. Se o betão era mais caro e punha em causa a viabilidade do investimento, encontrou-se uma solução alternativa, capaz de cumprir o orçamento. Essa opção transigente resultou numa das características mais interessantes da obra: o padrão singular do azulejo cerâmico e a refracção da luz.

Perguntas em aberto
Basta conversar com o arquitecto para compreender que, desde a sua concepção à conclusão da obra, o projecto do Terminal de Cruzeiros quis ser o corolário de um processo colectivo e participado, a arquitectura entendida como uma competência disponível para dar corpo às dinâmicas da sociedade e às contingências do seu contexto, seja ele político, social ou económico. Aliás, o arquitecto é o primeiro a recusar a ideia de que o edifício resulta de um “gesto". É aqui que a obra se afasta definitivamente do padrão das arquitecturas de autor e do modelo da Casa da Música: não é um projecto que aponta caminhos de futuro, que marca rupturas epistemológicas ou vontades formais singulares; é, isso sim, uma obra que procura responder com transparência e seriedade às condições de projecto que lhe são oferecidas. Talvez por essa razão o custo da obra se tenha contido dentro do orçamento inicial (quase três milhões de euros abaixo do valor inicialmente estimado, uma poupança que vários atribuem às contingências económicas da crise e à deflação que lhe está subjacente): a transigência do projecto e a adequação das soluções construtivas ao espartilho orçamental assim o permitiram. Mas, porque a sistematização das soluções construtivas não foi capaz de evitar alguns conflitos de pormenor (sempre difíceis de controlar numa obra desta natureza), a coerência do gesto não chega à coerência de todos os detalhes. Esses sobressaltos causam uma estranheza que confirma que, para uma obra desta natureza, o orçamento foi extremamente limitado: à ambição gestual do edifício não corresponderam os valores generosos que essas formas exigem. No fundo, o edifício é um marco da banalização da arquitectura de excepção. É essa evidência que esta obra nos devolve como interrogação: e agora?

A primeira interrogação decorre da expressão do Terminal de Cruzeiros: quantos edifícios icónicos é que a cidade consegue absorver? Depois da Torre dos Clérigos, dos Paços do Concelho, do Pavilhão Rosa Mota, da Casa da Música e do Terminal de Cruzeiros, haverá um ponto de saturação. Qual será esse ponto?

Outra dúvida prende-se com a sua potência expressiva: é um alienígena no panorama da arquitectura portuense, apesar de o seu autor ser docente na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, um bastião da tradição arquitectónica da cidade. Como encarar o aparecimento desta obra no contexto regional da arquitectura portuense? É um sinal da mudança dos tempos?

Mas a grande pergunta é a pertinência do investimento contínuo no turismo. Tragédias como as do Costa Concordia no Mediterrâneo, ou o impacto ambiental dos cruzeiros na Laguna de Veneza, no Adriático, sugerem que estas embarcações não navegam num mar de rosas. Por outro lado, os estudos económicos garantem um impacto positivo no crescimento da economia regional e um retorno relativamente rápido dos cerca de 50 milhões de euros investidos. A função do Terminal de Cruzeiros é acolher turistas que, por mar, engrossam o contingente que alimenta a região do Porto. O projecto de Luís Pedro Silva respondeu ao repto da administração portuária, mas a obra devolve-nos a pergunta: é de turistas que precisamos agora?