“O que interessa é ter dinheiro para dar de comer aos filhos”

Tem havido mais gente a catar lixo à medida que a pobreza alastra e se intensifica.

Foto
Nos caixotes do lixo, encontra-se de tudo, desde roupa, candeeiros, brinquedos e electrodomésticos a metais não preciosos Joana Bourgard

É o lixo que torna as contas possíveis lá em casa. Para todos os efeitos, só lá entra o rendimento social de inserção (RSI): 416 euros para cinco pessoas fazerem vida – o pai, a mãe, o filho de 18 anos, a filha de 14, o filho de 10. “Às vezes nem chega para as despesas da casa”, diz Carla.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

É o lixo que torna as contas possíveis lá em casa. Para todos os efeitos, só lá entra o rendimento social de inserção (RSI): 416 euros para cinco pessoas fazerem vida – o pai, a mãe, o filho de 18 anos, a filha de 14, o filho de 10. “Às vezes nem chega para as despesas da casa”, diz Carla.

O desemprego faz há muito parte da vida do casal, apesar de ele ter 38 anos e ela 36. “A gente faz de tudo”, afiança ela. “A gente anda ao lixo. A gente faz Feira da Vandoma [velharias, no Porto]. Mesmo que seja 20 eurinhos. O que interessa é ter dinheiro para dar de comer aos filhos.”

São estratégias de sobrevivência de quem há muito vive à margem, observa Sérgio Aires, presidente da Rede Europeia Anti-Pobreza – EAPN. Não estranha que se tenham tornado mais visíveis numa fase em que a pobreza alastra e se intensifica, como aconteceu em Portugal desde o início da crise.

A desigualdade ressalta nos contentores. “Há gente muito rica”, admira-se Carla. “Ainda hoje achei uma cortina e um édredon da Hello Kitty para o quarto da minha fila. Está tudo novo. Só está um bocadinho amarelo, mas lava-se e sai. Aquilo foi alguém que não quis ter o trabalho de lavar.”

Quase todos os dias Filipe dá umas voltas por várias ruas e ruelas da zona Ocidental do Porto. Aproveita livros, roupas, sapatos, brinquedos, electrodomésticos, móveis, objectos de decoração. Não se pode descuidar. “É muita gente a fazer isto”, nota. Ainda há pouco, ia no autocarro, viu três candeeiros de metal, tocou na campainha, saiu na paragem, caminhou até lá. Quando chegou, já outro lá estava. 

"Sujo, mas honesto"

Muito perto dele, outra mulher recolhe metal não precioso. Chama-se Carmo e aprendeu com um ex-companheiro, já lá vão mais de 30 anos. Uma vez, ao avistá-la da varanda, um homem telefonou para a polícia. Os agentes que lá foram disseram-lhe que o que ela “estava a fazer era sujo, mas honesto”.

Carmo compreende o desagrado alheio. Há quem deixe “as sacas no chão, o lixo espalhado”. Ela não. “Eu não me comparo com muitos dos que andam aí a espalhar lixo. Às vezes, até apanho coisas do chão. Não deixo nada sujo. Deixo tudo arrumado.” Disse isso tudo ao tal homem, que foi até ela naquela noite. “Ele foi a casa e trouxe-me um saco de comestíveis para me agradecer.”

A mulher, de 60 anos, não se atira a material pesado. Não é qualquer um que se atira a material pesado, como Filipe. Ele viu um frigorífico na rua e carregou-o até casa. Na vizinhança há muito quem chame por ele quando quer livrar-se de um electrodoméstico ou de um móvel. Se um idoso arranja vaga num lar, chamam-no os familiares para levar o que nenhum quer. É mais simples do que estarem a ligar ao serviço municipal de recolha de “monos”.

“Desmonto tudo”, explica Filipe. Um sofá-cama, por exemplo, tem uma armação de ferro. Uma máquina de lavar tem fio eléctrico e motor e tudo isso tem “pedacinhos de cobre”. “Hoje junto um bocadinho de cobre. Daqui a um dia ou dois, junto mais um bocadinho. Quando tenho um saquinho mais ou menos cheio, vou vender.” Vai ele e vai a mulher, a sua laboriosa ajudante. “O trabalho que dá ‘tar a desfiar”, diz ela. “Às vezes, ficamos a desfiar até às duas da manhã.” Não o fazem todos os dias, que as mãos não aguentam. “Hoje, desfiamos; amanhã, não desfiamos; depois de amanhã, desfiamos outra vez. Vamos andando assim. Dá para comprar pão, leite…”

Usam um íman para distinguir o metal ferroso do não ferroso. “Se cola, é ferro. Se não cola, não é”, torna ele. Não se podem deixar enganar pelos sucateiros. “O ferro está a dois cêntimos, o inox a um euro e tal, às vezes dois euros; o alumínio está a 60 cêntimos. Hoje baixou. Está a 45.” Acumulam parte na varanda lá de casa, parte num espaço cedido por um vizinho. E de vez em quando lá vão. Buscar “uns euritos” para complementar o RSI.