Estatísticas em França marcadas pelo receio do fantasma da raça

Um presidente de câmara da Frente Nacional decidiu contar os estudantes muçulmanos das escolas da sua cidade, mas a República recusa-se a distinguir cores ou religiões.

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Tudo começou com a declaração de Robert Ménard, autarca de Béziers eleito no ano passado com o apoio da Frente Nacional, de que nas escolas do município “64,6% dos alunos têm confissão muçulmana”. A precisão da informação dada por Ménard durante uma entrevista na segunda-feira ao canal de televisão France 2 levantou rapidamente questões de como é que o município tinha chegado àquele número. “São dados da câmara”, respondeu o presidente da autarquia, para logo de seguida levantar o véu sobre a “metodologia” utilizada: “Sei que não tenho o direito de o fazer. Peço desculpa por dizê-lo, mas os nomes próprios revelam as confissões. Dizer o contrário é negar as evidências. Se se chamar Mohammed, é porque é…”, disse, deixando a frase por terminar.

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Tudo começou com a declaração de Robert Ménard, autarca de Béziers eleito no ano passado com o apoio da Frente Nacional, de que nas escolas do município “64,6% dos alunos têm confissão muçulmana”. A precisão da informação dada por Ménard durante uma entrevista na segunda-feira ao canal de televisão France 2 levantou rapidamente questões de como é que o município tinha chegado àquele número. “São dados da câmara”, respondeu o presidente da autarquia, para logo de seguida levantar o véu sobre a “metodologia” utilizada: “Sei que não tenho o direito de o fazer. Peço desculpa por dizê-lo, mas os nomes próprios revelam as confissões. Dizer o contrário é negar as evidências. Se se chamar Mohammed, é porque é…”, disse, deixando a frase por terminar.

As declarações de Ménard deram origem a uma torrente de reacções e até a buscas policiais nas instalações da câmara da cidade no sul de França. A ministra da Educação, Najat Vallaud Belkacem, pediu a abertura de uma investigação judicial. De visita oficial à Arábia Saudita, o Presidente François Hollande não deixou de condenar a posição de Ménard, que disse ser “contrária a todos os valores da República”.

Em pouco mais de um ano, o mandato de Ménard, fundador da associação Repórteres Sem Fronteiras, tem sido pródigo em polémicas. Desde a renomeação de uma rua para prestar homenagem a um militar defensor da Argélia francesa e que participou no putsch falhado contra o general De Gaulle, até ao fornecimento de armas letais à polícia municipal – medida promovida com o slogan “Agora, a polícia municipal tem um novo amigo” –, passando pela instauração de um recolher obrigatório para menores de 13 anos. Mas nada suscitou uma reacção tão forte como a revelação do número de alunos muçulmanos nas escolas da cidade.

Em França é ilegal agrupar, para fins estatísticos ou outros, pessoas por via de critérios religiosos ou étnicos. A Constituição consagra logo essa noção no primeiro artigo quando refere o primado da “igualdade perante a lei de todos os cidadãos sem distinção de origem, raça ou religião”. Uma lei de 1978 proíbe expressamente “juntar ou tratar dados de carácter pessoal que deixem transparecer, directa ou indirectamente, as origens raciais ou étnicas, as opiniões políticas, filosóficas ou religiosas ou a militância sindical das pessoas, ou que sejam relativas à saúde ou à vida sexual destas”.

Fantasma de Vichy
Mas à força da lei junta-se um fantasma que ainda sobrevive no imaginário colectivo francês, como ficou patente pela reacção do ministro do Interior, Bernard Cazeneuve. “Contar as crianças de acordo a sua religião é regressar às horas mais sombrias da nossa história.” A frase é uma alusão ao período da ocupação pela Alemanha nazi (1940-43), ao regime colaboracionista de Vichy, durante o qual os judeus foram identificados e perseguidos.

A questão divide o país e emerge de tempos em tempos. Em 2009 foi Manuel Valls, na altura deputado e autarca de Evry, a sul de Paris, a avançar com uma proposta com para autorizar o acesso às estatísticas étnicas. Antes dele, já Nicolas Sarkozy tinha iniciado um processo para uma discriminação positiva “à francesa”, com a nomeação de um comité para avaliar a diversidade da sociedade francesa e os obstáculos que as várias comunidades enfrentavam.

O contra-ataque foi lançado por um grupo de 22 investigadores, que em 2009 lançaram uma obra com um título sugestivo: Le retour de la race – contre les statistiques ethniques (O regresso da raça – contra as estatísticas étnicas). Hervé Le Bras, catedrático na École des Hautes Études en Sciences Sociales, era um dos autores e, seis anos depois, a sua posição mantém-se: “O caso de Béziers confirma as minhas posições sobre os perigos das estatísticas étnicas”, disse ao PÚBLICO por email.

“A contabilização [étnica] foi utilizada por todos os governos totalitários (arquivos da Stasi, do KGB, etc. e sem dúvida a PIDE) e é algo desejado pela Frente Nacional dos Le Pen, com a qual o autarca de Béziers está relacionado”, diz Le Bras.

A oposição deste professor assenta não apenas na carga histórica, mas é também suportada por “razões estatísticas, filosóficas e comparativas”. Desde logo, há a dificuldade em definir de forma rigorosa o conceito de etnia. “A maior diversidade de categorias étnicas existe em países que praticam a catalogação étnica: judeu e palestiniano em Israel, 187 nacionalidades na Rússia”, nota o sociólogo. “Por outro lado, onde púnhamos as crianças dos casais mistos?”, questiona.

Sobretudo, defende, o risco é de que, em nome de uma análise estatística, se reduzam as pessoas a meras categorias raciais.

Escolha da ignorância

Quem defende a adopção das estatísticas étnicas entende que só assim se poderá ter um verdadeiro conhecimento da multiculturalidade francesa e dos obstáculos – por exemplo, na obtenção de emprego – com que as várias comunidades se deparam.

“O credo de indiferença às diferenças – a abordagem daltónica francesa – leva à promoção daquilo a que chamaria de ‘escolha da ignorância’”, escreveu o sociólogo do Instituto Nacional de Estudos Demográficos, Patrick Simon, num artigo cujo título é precisamente A Escolha da Ignorância. Diz o especialista que “enquanto a França é oficialmente uma sociedade sem ‘raça’, o racismo e a discriminação racial estão tão espalhados como noutro sítio qualquer”.

A noção de que o racismo está presente na sociedade francesa teve, recentemente, a confirmação tácita do primeiro-ministro, que dias depois dos atentados terroristas de Janeiro em Paris, denunciou o apartheid que se vive no país – uma expressão que Valls já tinha utilizado a propósito da onda de violência nos subúrbios de Paris em 2005. As fortes declarações de Manuel Valls foram combustível suficiente para que o debate sobre as estatísticas étnicas fosse retomado. Foi Hollande quem pôs fim à discussão, dizendo que a medida “não acrescentaria nada”.

Algo que é comum noutros países como os Estados Unidos, como os grupos de pressão raciais, é olhado de lado em França. Isso não impediu Patrick Lozès, um activista nascido no Benin, de fundar o Conselho Representativo das Associações Negras de França, que luta pelo reconhecimento das estatísticas raciais, cuja recusa diz não passar de hipocrisia. “Sou negro aos olhos da polícia ou de um empregador, então, como sociedade, devemos ter a coragem de o dizer”, disse à Economist.

As desigualdades existem, Le Bras não o nega, mas o caminho para as resolver não deve passar pela categorização racial. “A ideia de que as estatísticas vão dar origem miraculosamente a políticas sociais é de uma grande ingenuidade – desde há muito tempo que conhecemos em detalhe as desigualdades sociais, e isso não as impede de aumentar na maior parte dos países.”