Moscovo comemora vitória na II Guerra a pensar em novas frentes
Tal como os comunistas outrora, os novos senhores do Kremlin assentam o seu poder na criação de mitos e na propaganda. A evocação da derrota do fascismo é muito útil por estes dias.
Moscovo encheu-se este sábado de pompa e circunstância para celebrar o que foi a vitória na Grande Guerra Patriótica, como é conhecida a II Guerra na Rússia, e não faltaram símbolos comunistas, retirados do baú da história pelo putinismo. Estrelas vermelhas, fotografias de Estaline, marchas do “regimento imortal”, formado por familiares que exibem o retrato dos seus pais mortos na frente.
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Moscovo encheu-se este sábado de pompa e circunstância para celebrar o que foi a vitória na Grande Guerra Patriótica, como é conhecida a II Guerra na Rússia, e não faltaram símbolos comunistas, retirados do baú da história pelo putinismo. Estrelas vermelhas, fotografias de Estaline, marchas do “regimento imortal”, formado por familiares que exibem o retrato dos seus pais mortos na frente.
“O 9 de Maio é um dia de glória, um dia de orgulho para o nosso povo e de enorme respeito por uma geração de vencedores”, declarou o Presidente russo numa reunião de preparação da festa. A vitória é o mote de todas as evocações. As provações, os 27 milhões de mortos só contam como pequena história, a história familiar, dos indivíduos, e não como análise, reflexão. Aliás, desde 2014, existe uma lei que pune com penas até cinco anos de prisão a “distorção” do papel da União Soviética na II Guerra Mundial.
O próprio Putin deu o exemplo do que fazer, contando a história da sua família durante a II Guerra à revista dos pioneiros. “A vitória substituiu a memória da guerra. A verdadeira experiência da guerra e a história da guerra das pessoas foi expulsa da memória colectiva”, afirmou o historiador Nikita Sokolov ao New York Times.
Armas novas
Nesta celebração da vitória, e num momento em que a Rússia sente de novo estar a enfrentar o mundo, não poderia faltar o grande desfile militar na Praça Vermelha, com a exibição das armas mais modernas: 16 mil soldados, 143 caças e helicópteros e 194 veículos blindados – entre os quais o novo carro Armata T14, com um torreão activado à distância com um sistema de radar que consegue controlar simultaneamente 40 alvos terrestres e 25 aéreos num raio de cerca de 96km, segundo a agência russa RIA.
São os exemplos do investimento reforçado dos últimos anos na modernização militar, que está a atingir valores nunca vistos após o período soviético, segundo Michael Kofman, do Instituto Kennan. O mais recente orçamento para a defesa representa 4,2% do PIB para 2015; quando em 2000, na altura em que Putin chegou ao poder, escolhido por Boris Ieltsin, representava 2,6%.
Para o desfile foram também convidados 1300 soldados estrangeiros, entre os quais 110 militares chineses, que pela primeira vez participaram numa parada em Moscovo. É um sinal da nova “coordenação estratégica” entre os dois países, diz a agência Xinhua, aprofundada em resultado do virar de costas da Europa e dos Estados Unidos por causa da anexação da Crimeia por Moscovo e do apoio que a Rússia dá, claramente, aos separatistas do Leste da Ucrânia – um dos palcos de maior violência e brutalidade durante a II Guerra, e onde voltou a rasgar-se uma ferida que recusa fechar-se, sete décadas após o fim do conflito que se pensou que teria acabado com o derramamento de sangue na Europa. A NATO, preocupada, diz que, junto à fronteira com a Ucrânia, Moscovo aproveita o cessar-fogo assinado em Fevereiro para reforçar a sua presença.
Solitário
Vladimir Putin deve ter-se sentido isolado no palanque das cerimónias que celebraram a vitória. Dos 68 convites enviados a líderes mundiais, apenas 30 responderam positivamente. Não teve a seu lado os líderes dos antigos Aliados na II Guerra – fizeram-se representar por ministros, embaixadores. Angela Merkel vai a Moscovo, mas só no domingo. É um grande contraste com que o se passou há dez anos: nessa altura estavam presentes os Presidentes norte-americano e francês, George W. Bush e Jacques Chirac, e o chanceler alemão, Gerhard Schroeder.
Até o Presidente da Bielorrússia, Alexander Lukashenko – considerado a última ditadura da Europa, e um Estado clientelar da Rússia – preferiu ficar em casa e concentrar-se nas comemorações caseiras, embora negue que se tenha juntado a um movimento internacional anti-Putin: “Não devemos dizer que Lukashenko se juntou ao boicote. Isso é absolutamente idiota”, afirmou o próprio.
Presente esteve o Presidente chinês, Xi Jinping, prova do interesse de Putin pela Ásia. Lá para o fim do mês, China e Rússia farão exercícios militares conjuntos no Mediterrâneo. E ambos esperam lucrar com dois acordos assinados no ano passado para fornecer gás natural à China, com os quais Moscovo espera fazer face às sanções americanas e da União Europeia por causa do envolvimento russo no conflito separatista ucraniano. Mas primeiro será preciso construir um gasoduto de 4000 km, atravessando montanhas, pântanos e zonas de alta sismicidade.
Propaganda
O isolamento de Putin na cena internacional, no entanto, não está a fazer diminuir a sua popularidade, que anda pelos 86%. Para alguém que comemorou a 31 de Março 15 anos no poder, é invejável – ou não se soubesse que o seu poder assenta no controlo dos media e numa máquina de propaganda que não deixa nada a desejar à soviética.
A criação de uma agência de notícias estatal, Rossiya Segodnya, liderada por um apresentador de televisão bem conhecido pelas suas teorias da conspiração anti-americanas – Dmitri Kiselov – que gere o site Sputnik News e a televisão Russia Today (RT), que emite em inglês, francês, árabe e espanhol, tem sido fundamental para fazer passar a posição do Kremlin internacionalmente. Tanto assim é que a NATO, os Estados Unidos e a União Europeia, começam a preocupar-se, e a tentar montar uma resposta organizada contra esta propaganda.
Vários congressistas americanos esperam que a Voice of America consiga ter um papel mais agressivo para contrariar estes media russos, enquanto se fala em montar uma emissora nos países bálticos com programação que contrarie a visão expressa pelos canais russos – que usam os meios narrativos modernos das televisões ocidentais, com a reality-tv, para propagar mensagens com carga política e favoráveis ao regime do Kremlin.
Houve toda uma geração que cresceu na Rússia sob esta dieta televisiva, com uma progressiva eliminação dos media independentes. “Estes jovens ignoram tudo da União Soviética, não conheceram os horrores dos anos 1990 e constituem a geração Putin, pronta a trabalhar e a agrupar-se em torno dele”, afirmou Dmitri Peskov, porta-voz do Presidente da Federação russa, num colóquio que assinalou os 15 anos da chegada ao poder de Putin.