Certa noite fez-se luz na pista de dança de Mirror People

Conhecemo-lo nos X-Wife e conhecemo-lo há cinco anos enquanto Mirror People. A história de um DJ que quis fazer canções. O disco-sound foi o ponto de partida. O de chegada não é exactamente isso. Apresente-se Voyager, o seu primeiro álbum.

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“Não posso ter canções só por ter. Isso não pode acontecer”, disse para si mesmo antes de se levantar. Depois, apagou todo o instrumental em que trabalhara. Voyager, o primeiro longa-duração enquanto Mirror People do teclista co-fundador dos X-Wife, começou a ganhar contornos definitivos naquele “reset”. São canções de corpo inteiro para a pista de dança.

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“Não posso ter canções só por ter. Isso não pode acontecer”, disse para si mesmo antes de se levantar. Depois, apagou todo o instrumental em que trabalhara. Voyager, o primeiro longa-duração enquanto Mirror People do teclista co-fundador dos X-Wife, começou a ganhar contornos definitivos naquele “reset”. São canções de corpo inteiro para a pista de dança.

Rui Maia inventou-se enquanto Mirror People em 2010, um ano depois de se ter estreado a solo com um EP que exibia esse título na capa. O nascimento do alter-ego surgiu daquilo que designaremos como egoísmo criativo. Maia começou a trabalhar como DJ e, melómano de vastos conhecimentos e gosto ecléctico, tinha muito por onde escolher. Mas faltava-lhe algo. Sendo alguém que passara os quinze anos anteriores a trabalhar na composição de canções, sentia necessidade delas. Das suas canções, entenda-se. “Queria fazer canções minhas para passar [nos sets]” – assim resume numa esplanada em Alcântara, Lisboa, o impulso que conduziu ao nascimento de Mirror People.

Nos anos seguintes, enquanto assinava remisturas para editoras como a Permanent Vacation, Discotexas ou Brilliantine Records, foram nascendo canções como The way you move, Echo life ou Feel the need, o primeiro encontro com Rowetta. As fronteiras em que se movia revelavam-se desde logo: Maia pegava nas memórias do disco-sound e cruzava-o com modernidade para a pista de dança, com o gosto pela investigação sonora em sintetizadores (Moroder, I believe in you, dizia uma das canções do EP de 2009), com o piano metronómico da house ou com os cowbells enquanto propulsor rítmico que a DFA resgatara da obscuridade. Desde 2011 que um álbum germinava no seu pensamento. Demorava, porém, a conseguir torná-lo realidade.

O seu mundo é o das canções, por mais diversas que sejam (as dos Talking Heads, as dos LCD Soundsystem, as dos Einsturzende Neubauten), e o universo da música de dança electrónica em que se embrenhara não lhe era ainda totalmente familiar. “Há uma série de regras com que, se quisesse fazer canções, era difícil lidar”. Em muita da música de dança, “a batida aguenta-se bastante tempo” sem alterações significativas. Mas a Rui Maia parecia-lhe sempre que era necessário incluir mais elementos sonoros para a canção não morresse vazia. Ao resultado final, quando juntava uma série de temas da sua lavra, faltava sempre qualquer coisa: “Em separado até funcionavam bem, mas todas juntas num álbum, não. À terceira já achava que estava a ser uma seca”.

Procurar a luz
Voyager, o álbum que edita agora é tudo menos seca. Sabe a colectânea de singles muito luminosos. O disco em diálogo com a house ou com o afro-beat. O yatch-rock a abandonar o convés para dançar num clube com poster de Giorgio Moroder nas paredes. O funk a vestir fato de cetim antes de se lançar nas auto-estradas futuristas de Tron. É uma compilação de música de dança com anca bem oleada e uma colecção de canções com refrães prontos a trautear. Uma delícia lúdica: Dance the night away, como canta em Voyager o duo italiano Hard Ton. Rui Maia idealiza, compõe, produz, mas não lhe peçam para cantar - para isso estão no álbum os supracitados Hard Ton e Rowetta, está James Curd, Rodrigo Gomes, Iwona Skwarek ou Maria do Rosário, que o acompanha nos concertos.

Para chegar ao álbum de estreia, teve que passar por Kaleidoscope, single de 2013, já com “uma abordagem diferente”, e teve que acordar a meio da noite com uma canção encalhada na cabeça. Dessa noite interrompida nasceria a Telephone call que ouvimos em Voyager e o mote para o que se seguiu: “Não posso ter canções só por ter. As canções têm que ser especiais”.

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Rui Maia começou muito cedo. O irmão mais velho tinha estúdio montado em casa e Maia não se lembra de nada mais constante na sua vida que a música. Vivia na casa dos avós e aproveitava latões de óleo do jardim e panelas da cozinha para montar uma bateria e acompanhar discos dos Einsturzende Neubauten, Siouxsie & The Banshees ou Bauhaus. Quando em 2003 o descobrimos atrás dos sintetizadores e caixa de ritmos dos X-Wife, já tinha avançado pela new-wave e pela Nova Iorque dos Talking Heads, de Patti Smith e, mais recentemente, dos LCD Soundsystem. Já se tinha entusiasmado com os tão célebres Strokes e com a banda de culto Add N to (X).

Mirror People mostra como transformou o prazer que o disco provoca em matéria sónica que, preservando-lhe a vertente hedonista, se abre a várias contaminações. “Noutro dia perguntaram-me se estou a fazer um revivalismo desse estilo, mas a verdade é que ouvimos hits mundiais como o Get lucky, dos Daft Punk, ou agora o Uptown funk, do Mark Ronson, e aquilo é mais disco-sound que o meu álbum inteiro”. Com Voyager tinha um objectivo definido: fazer um contraponto àquilo que sente por agora dominante no universo da dita música de dança. “Mesmo coisas que gosto, como Daniel Hovey, são negras, ruidosas, com uma nuvem por cima”. Ele procurou a luz. “Ao ouvir música como a de William Onyeabor [músico nigeriano dos anos 1970 e 1980, recentemente revelado fora do seu país através da colectânea da Luaka Bop Who Is William Onyeabor?], comecei a reparar que as canções tinham um lado muito humano e que cruzavam bastante electrónica com sons orgânicos, com músicos reais a tocar”. Estava descoberto o caminho: “Misturar o disco-sound com essa energia”.

Álbum editado, Rui Maia cristalizou uma assinatura. O DJ e produtor de regresso às canções. Nos próximos tempos, vamos poder ouvi-lo atrás dos pratos e laptop a partilhar a sua cultura melómana com a pista de dança. Vamos poder ouvi-lo atrás dos sintetizadores, das caixas de ritmos e da vocalista Maria do Rosário a levar a palco a música de Voyager. “Mas nada me garante que, daqui a um ano, decida pôr mais dois gajos [na banda]. Não gosto de estar preso e não sei o que será o futuro”. E depois fala-nos de como tem andado a alimentar a ideia de fazer qualquer coisa à volta da folk. Não estranhamos. Conhecendo-o, seria tudo menos contraditório. Rui Maia tem muita música na cabeça.