Como não rebolar na miséria (quando se tropeça no tapete)
Tudo o que podia correr mal na vida dos Lower Dens correu mal. Vai daí fizeram um disco tristíssimo que celebra a vida. Parece contraditório? Não faz mal, Jana Hunter, a líder, também o é.
“Começámos a escrever Escape From Evil [o terceiro e recém-editado álbum dos Lower Dens] logo a seguir ao disco anterior [Nootropics, de 2012] e depois houve problemas na banda e, bem, eu também tive problemas”, diz-nos Jana ao telefone. Estas são as primeiras palavras que Hunter profere – nem bom dia nem boa tarde, só problemas e mais problemas, toda a sorte de problemas: “Estivemos quatro anos seguidos em digressão”, começa por recordar, “eu mudei de casa duas vezes para partes diferentes do país, houve zangas, um membro acabou por sair da banda, e isso magoou-nos, porque éramos todos amigos e preocupamo-nos uns com os outros”.
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“Começámos a escrever Escape From Evil [o terceiro e recém-editado álbum dos Lower Dens] logo a seguir ao disco anterior [Nootropics, de 2012] e depois houve problemas na banda e, bem, eu também tive problemas”, diz-nos Jana ao telefone. Estas são as primeiras palavras que Hunter profere – nem bom dia nem boa tarde, só problemas e mais problemas, toda a sorte de problemas: “Estivemos quatro anos seguidos em digressão”, começa por recordar, “eu mudei de casa duas vezes para partes diferentes do país, houve zangas, um membro acabou por sair da banda, e isso magoou-nos, porque éramos todos amigos e preocupamo-nos uns com os outros”.
Quando ela chega ao final da frase (e deixámos de fora casamentos, partos e compras de casa, mais as respectivas hipotecas), estamos cansados – o exacto oposto do que acontece quando ouvimos Escape From Evil, que não só traz uma viragem no som da banda, com as guitarras colocadas atrás e uma maior proeminência dos sintetizadores, como consegue ser simultaneamente o disco mais coeso e acessível dos Lower Dens. O que, para quem viveu os últimos três anos atulhado em problemas, é um feito raro.
Em 2012 os Lower Dens ainda eram uma banda em que as guitarras se cruzavam por cima de ritmos pára-arranca herdados do rock germânico e voz a pender para a depressão. Se tivessem uma veia épica poderiam abrir para os National, mas a queda deles era para a pequena canção – o que fez da banda um daqueles casos de culto cerrado que adoramos adorar enquanto somos poucos a fazê-lo. Mas se calhar em 2012 os Lower Dens já não eram uma banda de guitarras – em Brains, o segundo e perfeito tema de Nootropics, havia uns sintetizadores por ali, com ecos da new wave da década de 1980. Ampliem as teclas atmosféricas, façam baixar o volume das guitarras e têm Escape From Evil.
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“O título, de certa maneira”, explica Jana, “refere-se a uma tentativa de fugir a coisas que dominam as nossas vidas – coisas como a indústria e o sucesso, que são cada vez mais parte da vida humana, e a vida humana é cada vez menos humana." Uma boa parte do tempo ela fala assim: com frases elípticas, que englobam grandes visões do mundo. A indústria. O sucesso. Coisas que dominam a nossa vida e das quais temos de escapar.
Uns minutos de conversa e ela atira as grandes questões metafísicas para escanteio e volta à Terra: “Nós não vimos os problemas a chegarem. Atirámos os problemas para debaixo do tapete e depois tropeçámos no tapete ao chegar a casa."
O que quer que tenha acontecido a Hunter, foi suficientemente forte para a fazer “sair do Maryland [onde vivia] e ir morar para o Texas, onde está a família”. “É um grande grupo de gente e estive lá um ano”, conta – posteriormente, voltou a viver sozinha. Foi para lá porque precisava daquela combinação incomum de “amparo e honestidade que só uma família dá”. “Ninguém nos diz a verdade como a família. A minha mãe não me manda pôr uma camisola quando está frio, estou demasiado grandinha para isso, mas diz-me o que eu preciso de ouvir." E estávamos neste registo quando, de novo, ela salta para as grandes questões sociológicas. “A idade traz-te a necessidade de tratar da família, de ser o guia dessas pessoas pequenas que não sabem o que fazer. E nesta sociedade isso equivale a ter um bom emprego, de modo a comprar um carro e mandá-las para a universidade."
Distraídos
Há um belíssimo e tristíssimo disco sobre o qual podemos conversar, mas Jana não se decide. Num momento está a ser tu-cá-tu-lá, noutros o discurso raia o estamos-dominados-pelo-capitalismo-e-isso-destrói-nos-enquanto-seres-humanos. “É quase adolescente da minha parte dizer isto”, arranca Jane, “mas quanto mais velha mais sinto que o que faz a vida merecer ser vivida é amar e ser amada e tudo o resto é um luxo. Não me refiro ao amor romântico, mas a todo o tipo de o amor. Para mim não há diferença entre as pessoas que amo, sejam os meus pais, os meus irmãos ou uma relação amorosa."
Isto é a menina Hunter a ser confidencial; e isto é a menina Hunter a ser socióloga, antropóloga e outras ólogas, tudo ao mesmo tempo: “Viver para o emprego, para o carro, isso é uma interpretação errada dos nossos instintos. Civilizações mais antigas do que a nossa conseguiam interpretar os nossos instintos de forma mais lógica. Ensinavam o básico às crianças e a partir daí as pessoas interpretavam o mundo." Inevitavelmente, vamos para aqui: “E isto está inscrito em nós. Chegas aos 40 anos e só estás a pensar em dinheiro, porque queres proteger a tua família. Se eu pudesse mudar alguma coisa no mundo era isso – tirava o dinheiro da equação."
Claro que, como todos nós, Hunter também de ganhar dinheiro e também está exposta a questões como o sucesso, embora tente passar ao lado disso. “Nunca ganhámos muito dinheiro, nunca fomos extremamente famosos, o que nos manteve juntos foram os nossos feitos artísticos. Ninguém sequer esperava assegurar o futuro com isto." Diz ter feito uma escolha consciente entre a segurança e o seu amor pela música – ou melhor, nem foi uma escolha, ela simplesmente tinha de se dedicar à sua paixão de garota. “Quando eu era miúda e ouvia o que os meus irmãos ouviam, e muitos desses discos eram dos U2, aquilo tirava-me de mim, tornava a minha vida melhor do que era – e ao fazer este disco percebemos que queríamos isso, queríamos canções com refrões que tirassem as pessoas de si e lhes mostrassem como a vida pode ser bela."
E aí está. Por estranho que pareça, falámos do disco – que, se por acaso as pessoas derem pelos refrães, ainda fará Jana Hunter ganhar dinheiro, o que lhe provocará uma valente complicação na mente. “É curioso: o disco está escrito em acordes menores, lida com tópicos duros, percebo que se diga que é um disco negro. Mas, talvez por estarmos em baixo na altura em que o fizemos, queríamos que a música nos fizesse sentir bem. Não queríamos rebolar na miséria. Queríamos pegar nela e virá-la ao contrário. Não me entendas mal: há miséria ali. Não é possível olhar para o mundo e não ver miséria. Se não vês essa miséria, se não vês as injustiças, então não estás a enfrentar o mundo. Fazemos muito isso: arranjamos uma distracção de modo a não olhar. Vivemos numa cultura de distracção."
Temas destes são sempre complicados – alguém poderá obstar que quem passar uma noite de papo para o ar a ouvir Escape From Evil também estará a participar na “cultura de distracção” que Hunter critica. Mas ela parece ser sincera nas suas preocupações – que são (como se vê) muitas, começando nos pequenos detalhes das relações pessoais e acabando nas grandes estruturas que definem as classes sociais. A dada altura, para exemplificar como o seu cérebro funciona, cita uma passagem de David Foster Wallace, o que torna a já de si estranha conversa mais estranha ainda. “Era muito inteligente, aquele homem, faz muita falta."
Se fosse necessário escolher entre a Jana pessoal e a Jana que pensa as coisas do mundo, íamos pela pessoal, aquela que diz: “Somos muitas vezes mais duros connosco do que com os outros. E pôr um sentimento de auto-depreciação desses numa canção e criar algo belo, isso transcende tudo. Tento isso com todas as canções. É difícil para mim dizer quais as que chegaram a esse ponto. Mas neste disco só pusemos canções com que estávamos muito contentes."
É difícil, mas ela acaba por dizer: em Your Heart Still Beating (quinto tema do disco) e I Am The Earth ela sentiu isso, que criou algo de belo, que “celebra isto de estar vivo”. A primeira, com a sua linha repetitiva de guitarra, lembra os Joy Division, mas depois abre um pouco na ponte. I Am The Earth chega quase a crescer para o épico, mas nem precisam de ir tão longe: Sucker’s Shangri-La, o tema de abertura, que respira a década de 1980 por todos os poros, é logo uma canção imaculada – arriscaríamos dizer: um single. Dos New Order.
Para Hunter, “há uma diferença entre escrever para impressionar outras pessoas e escrever para alcançar pessoas”. "Nada me deixa mais satisfeita do que dizerem-me: ‘Esta canção é muito importante para mim’, em particular porque cada pessoa diz isso de uma canção diferente." Sucker’s Shangri-La vai ser uma dessas canções.
E, apesar de tantos problemas, o som que um ser humano faz ao tropeçar no tapete e cair ao chão acaba por ser bem bonito.