Contos exemplares portugueses
Teresa Veiga regressa com mais um livro revelador do seu domínio da história breve — um livro que tem de ser lido. Aqui não há palavras a mais
Teresa Veiga (n. 1945) permanece um dos mistérios mais bem guardados da literatura portuguesa. Publica há 35 anos, desde 1980, quando saiu Jacobo e Outras Histórias, mas recusa promover os seus livros. O nome é o de uma assinatura que se associa sobretudo ao conto e a uma capacidade de desvelar o que há de mais desesperante, cru, íntimo e pateticamente humano sem qualquer cedência a facilidades de linguagem ou sentimento. Com sete livros publicados, Teresa Veiga continua conhecida num circuito muito mais pequeno do que aquele que merece a sua escrita, umas das mais singulares, originais e perturbantes publicadas actualmente em língua portuguesa.
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Teresa Veiga (n. 1945) permanece um dos mistérios mais bem guardados da literatura portuguesa. Publica há 35 anos, desde 1980, quando saiu Jacobo e Outras Histórias, mas recusa promover os seus livros. O nome é o de uma assinatura que se associa sobretudo ao conto e a uma capacidade de desvelar o que há de mais desesperante, cru, íntimo e pateticamente humano sem qualquer cedência a facilidades de linguagem ou sentimento. Com sete livros publicados, Teresa Veiga continua conhecida num circuito muito mais pequeno do que aquele que merece a sua escrita, umas das mais singulares, originais e perturbantes publicadas actualmente em língua portuguesa.
Os adjectivos aqui usados têm a intenção de dizer que Teresa Veiga tem de ser lida. O seu mais recente livro, Gente Melancolicamente Louca, surge sete anos após Uma Aventura Secreta do Marquês de Bradomín (vencedor do Grande Premio de Conto Camilo Castelo Branco em 2008) e rompe n? ?o apenas com um silêncio longo como com uma relação fiel com a Livros Cotovia — editora onde sempre publicou —, via mudança para a Tinta-da-China. É um livro em que a escritora volta a mostrar a sua habilidade no domínio da história breve. Em 11 contos, mergulha em universos de abandono e traição, explorando as fronteiras do mal e do bem, com o deus ou o diabo a surgirem como referências em personagens complexas mas simplesmente apresentadas num conjunto de leitura voraz, capaz de seduzir os gostos mais exigentes — através de referências culturais e literárias bem alicerçadas —, como de viciar os que se deixam levar apenas pela acção. A ilusão é a da simplicidade.
As protagonistas são quase sempre mulheres, quase sempre colocadas numa situação de confronto ou de ambiguidade face a personagens masculinas que são determinantes no traçar das suas existências. Uma das mais perturbantes é a que prende Natacha a Abel, o falso pai adoptivo que a mantém refém no conto Natacha. “Quando se depende inteiramente de alguém, é fácil habituarmo-nos à sua maneira de ser, adular quando convém, desprezar quando é preciso, e se soubermos agir com inteligência há ocasiões em que se anula a distância entre subalterno e superior. No meu caso depressa percebi que Abel era um fraco, que tinha consciência disso e se desprezava a si próprio mas, meticuloso e frio, montara um sistema de segurança que só a usura do tempo conseguiria vencer.”
É um conto com dois narradores. Quem conta o quê a quem? Por carta, entrevista, monólogo, o narrador irrompe, por vezes interpelando ou dirigindo-se directamente ao leitor, revelando-se no seu papel de sabedor e contador da acção que muitas vezes remete para clássicos da literatura, como Dickens, Rocambole, Flaubert, Balzac ou Racine, ou para os contos para crianças.
Há bibliotecas escondidas em mulheres que se educam à margem e para quem os livros oferecem identidade. Moral, estética, social, amorosa ou sexual. Além de Natacha, que se educa a ler no sótão, há Maria da Purificação, em A Casa Abandonada, que “já lera Madame Bovary aos catorze anos, iludindo a confiança dos pais”, Clarissa emNegra Sombra que me Assombras, ou a rapariga que escreve a Sherlock Holmes acordando-o do torpor, uma carta que se revela um mistério resolvido através de um jogo de associações entre literatura e psicologia no conto O Dia em Que Sherlock Holmes Foi Salvo.
A literatura está na essência destas histórias sem que nunca isso soe pretensioso ou queira mostrar uma erudição vazia. Esse pedantismo não existe. É uma literatura ao serviço do íntimo, sem auxiliares fáceis que o adocem; rigorosa na escolha das palavras, no uso contido de metáforas; clássica porque válida em qualquer tempo: “Enquanto o sono não vinha e às vezes durante o sono, que não era o sono dela mas o da pessoa em que se transformara ao vestir os seus trajes de noite, Manuela tinha outra família, outro corpo, outros pensamentos, e se em certos aspectos descia a requintes de introspecção e não se importava de gastar noites como se tivesse uma vida de centenária à sua frente, toda entregue ao prazer de compor uma personagem, outras fazia de homem, de mulher, de malandrim, de cigana, de violoncelista, de jogadora de ténis, de cantor de cabaret, de empregada de restaurante, tudo na mesma noite, com o resultado de acordar com umas olheiras e um ódio ao colégio que a faziam desejar um tremor de terra…”
Os contos deste volume são exemplares do fulgor literário de Teresa Veiga. Não são iguais no modo como se fixam na memória de quem os lê. Mas quase todos ficam, revelando-se a espaços nas suas marcas, perseguidores de consciência, inquietantes, melancólicos, irónicos, de uma sensualidade solitária e desesperada. Uns serão contos mais exemplares do que outros, mas o livro fica como mais um fundamental.