A arquitectura lida sempre com a memória, porque um lugar nunca é de um tempo só

Exposição da Garagem Sul do Centro Cultural de Belém junta dois arquitectos e um artista plástico, todos portugueses. E todos a olhar para a paisagem. Até 19 de Julho.

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Não é, adverte o paisagista João Gomes da Silva (Lisboa, 1962), uma exposição feita para mostrar a obra – é feita para “pensar a paisagem como uma forma de arquitectura”, mesmo quando é feita sem arquitectos. “A paisagem é o fenómeno mais importante da história da humanidade porque é profundamente colectiva, anónima, e está em permanente transformação”, defende. Paulo David (Funchal, 1959), que tem atelier na Madeira desde 2003, vê-a também como um marco autobiográfico já que, diz, citando o arquitecto Álvaro Siza, tem a felicidade de trabalhar na sua terra: “Quando falo de paisagem lembro-me imediatamente das minhas paisagens, dos meus lugares, e interrogo-me: porque é que nunca falamos dessa condição estranha que é vivermos no nosso lugar?”

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Não é, adverte o paisagista João Gomes da Silva (Lisboa, 1962), uma exposição feita para mostrar a obra – é feita para “pensar a paisagem como uma forma de arquitectura”, mesmo quando é feita sem arquitectos. “A paisagem é o fenómeno mais importante da história da humanidade porque é profundamente colectiva, anónima, e está em permanente transformação”, defende. Paulo David (Funchal, 1959), que tem atelier na Madeira desde 2003, vê-a também como um marco autobiográfico já que, diz, citando o arquitecto Álvaro Siza, tem a felicidade de trabalhar na sua terra: “Quando falo de paisagem lembro-me imediatamente das minhas paisagens, dos meus lugares, e interrogo-me: porque é que nunca falamos dessa condição estranha que é vivermos no nosso lugar?”

Paisagem como Arquitectura parte de uma série de projectos de David e de Gomes da Silva em Lisboa, na Madeira e no Alentejo – nuns são colaboradores, noutros trabalham a solo ou em co-autoria com outros arquitectos – e da cumplicidade que se estabelece entre ambos. Uma cumplicidade que é feita de um enorme respeito pelo que a paisagem guarda antes da chegada do desenho do arquitecto. É por isso, em parte, afirma o paisagista, que o vídeo de Cera abre a exposição. Contorno Azul  funciona como o prólogo de uma narrativa que se desenvolve em três núcleos que constroem um discurso coerente e que volta a ter duas propostas do artista plástico por epílogo. “No primeiro vídeo quis mostrar natureza, o mar, as mudanças de luz, aquele lado mais selvagem da Ilha da Madeira, o espaço antes deles”, explica ao PÚBLICO Nuno Cera. “Nos dois últimos quis que se visse a mão do arquitecto e tentei, ao mesmo tempo, captar o espírito dos lugares que criaram, mexendo na velocidade da imagem, em cortes e planos.” O artista refere-se aos vídeos de seis minutos que fecham Paisagem como Arquitectura – um é do projecto de João Gomes da Silva e João Ferreira Nunes para a Ribeira das Naus, em Lisboa, feito com base em imagens recolhidas entre o amanhecer e o meio-dia; o outro é o da Casa das Mudas, centro de artes na Madeira, obra de Paulo David que Cera filma, a partir do interior, entre o meio-dia e o entardecer.

Arquitectura invisível
Cera trouxe à exposição, cujo desenho foi concebido pelos dois arquitectos, o olhar exterior e subjectivo que faltava, defendem. Um olhar que veio reforçar o do comissário, Nuno Crespo, que esta terça-feira definiu a arquitectura como uma “forma de ver mais intensamente a paisagem”. Crespo, que não deixou de sublinhar que a suas áreas de especialidade são a arte (é crítico do PÚBLICO) e a filosofia, defende que o que lhe permitiu juntar Paulo David e João Gomes da Silva não foi o facto de os dois arquitectos já trabalharem juntos, mas de haver nos projectos de ambos “uma condição de invisibilidade”: “Neles a arquitectura não é uma imposição mas um esforço de devolver ao lugar o que lhe pertence.” Um esforço que se vê, por exemplo, na arquitectura de David, poética e agarrada à terra, e num projecto como o da Ribeira das Naus, que recupera a forma como, no passado, se ocupou aquele território ribeirinho, garante.

Da Ribeira das Naus Gomes da Silva trouxe pedras e outros sedimentos arrastados pelo rio - lioz, basalto, tijolo -, dos abrigos ecológicos que desenhou para o Pico do Areeiro Paulo David trouxe madeira de um cedro centenário, caído durante um incêndio. Mas na grande mesa que ocupa o núcleo central há mais: rocha vulcânica, cartas geológicas de Lisboa com informações pouco tranquilizadoras sobre os pilares da Ponte 25 de Abril, tijolos de adobe, betão colorido do projecto das Salinas e até folhas do Herbário da Macaronésia, com espécies que crescem na Madeira, cedidas pelo Museu de História Natural. Todos estes materiais estão relacionados com os projectos que, nos dois núcleos laterais, assumem a sua forma mais analítica e objectiva em maquetes e desenhos técnicos. “Trouxemos para aqui tudo isto porque os materiais têm uma força poética, transportam cheiros, sons, um tempo. Interessa-nos muito o envelhecimento destes materiais”, diz o arquitecto madeirense, garantindo que preferem “encontrar objectos do que produzir objectos”: “Estamos sempre a tentar reduzir a arquitectura a um gesto sereno, o João e eu. É preciso ver e ouvir a paisagem e não impor nada que ela não aceite com o desenho.”

Foi o que fizeram no projecto das Salinas, em Câmara de Lobos, na Madeira. Podiam ter insistido num desenho preciso para o arranjo paisagístico e a construção das piscinas, mas desde logo perceberam que o melhor seria acordarem em princípios construtivos gerais, adaptando o traço à medida das condições que fossem surgindo ao longo da construção. A natureza não deixava que fosse de outra maneira. A falésia que se vê na fotografia de Nuno Cera (o artista assina as fotografias que registam a obra de Gomes da Silva), cuja derrocada importava conter, é um pretexto para o paisagista falar de identidade: “É preciso respeitar sempre o que se encontra, mesmo sabendo que, depois, a arquitectura redesenha a paisagem. Esta falésia tem vários estratos geológicos sobrepostos – todos os lugares são assim, com camadas sucessivas de história. É por isso que a arquitectura lida sempre com a memória. Um lugar nunca é de um tempo só.”

Essa sucessão de camadas históricas encontram-na os arquitectos no projecto para a Herdade do Barrocal, uma propriedade nos arredores de Monsaraz, que estiveram a estudar (Gomes da Silva assina o paisagismo de um projecto que inclui um hotel de Eduardo Souto de Moura e unidades de habitação de Paulo David, Manuel Aires Mateus, João Pedro Falcão de Campos e do inglês John Pawson). Está implantada num território que é ocupado desde o neolítico (do X ao III milénio a.C.), que foi uma villa rústica romana com uma barragem, terra de olival e de culturas de regadio abandonada na Idade Média, quando a população se refugiou nas muralhas ali bem perto. No século XIX o monte, onde hoje está em construção o empreendimento turístico, regressou aos espaços ocupados na pré-história. Nele Paulo David fez algo a que não está habituado – trabalhou a partir de uma planície. “A Madeira é uma pirâmide cheia de arestas, acidentes geográficos, muito agreste. No Alentejo tive de lidar com a monotonia, com variações muito subtis no terreno.” E para lidar com elas é preciso conhecê-las, acrescenta Gomes da Silva: “A criação não se faz da abstracção, mas do conhecimento.”

Paisagem como Arquitectura termina a 19 de Julho e inclui um programa de visitas guiadas e uma conferência sobre intervenção no espaço público que será anunciado em breve.