Cientistas conseguem criar a sensação de invisibilidade
É possível sentirmos o nosso próprio corpo invisível? Sim, mostram experiências de uma equipa. Agora os cientistas pretendem verificar se essa sensação afecta a forma como se lida com dilemas morais.
Há outros exemplos negativos, associados à invisibilidade, vindos da literatura: Frodo, o pequeno herói hobbit da trilogia de O Senhor dos Anéis, de J. R. R. Tolkien, carrega consigo um anel que dá o poder da invisibilidade, mas que é maligno e corrompe quem o possui; o cientista que ficou para sempre invisível em O Homem Invisível, escrito por Herbert George Wells, torna-se um criminoso.
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Há outros exemplos negativos, associados à invisibilidade, vindos da literatura: Frodo, o pequeno herói hobbit da trilogia de O Senhor dos Anéis, de J. R. R. Tolkien, carrega consigo um anel que dá o poder da invisibilidade, mas que é maligno e corrompe quem o possui; o cientista que ficou para sempre invisível em O Homem Invisível, escrito por Herbert George Wells, torna-se um criminoso.
Mas mesmo com tantos avisos no imaginário colectivo, a ideia de se ser invisível continua a atrair. Nos últimos anos, os cientistas têm procurado aproveitar os conhecimentos sobre luz e óptica para tentarem fabricar materiais que sejam invisíveis, e têm feito alguns avanços.
Por isso, é importante tentar compreender os efeitos psicológicos de ficarmos invisíveis. Uma equipa de cientistas da Suécia foi investigar se, por um lado, é realmente possível termos a percepção de que o nosso corpo é invisível e, por outro, quais são os efeitos dessa percepção na nossa consciência social. Os resultados mostram que quando alguém se sente invisível fica mais calmo à frente de um público, segundo um artigo publicado agora na revista Scientific Reports.
“Sabemos que o cérebro está constantemente a construir a percepção do nosso corpo no espaço, ligando a informação de diferentes sentidos, como a visão, o toque e a propriocepção [o sentido que permite ter a noção da posição relativa das diferentes partes do corpo]”, explica ao PÚBLICO Arvid Guterstam, co-autor do estudo, do Departamento de Neurociências do Instituto Karolinska, na Suécia.
Para testar a sensação de invisibilidade, os cientistas tiveram de jogar com a percepção que cada um tem do seu corpo, criando uma ilusão. Experiências anteriores, em já se fez isso com sucesso, mostraram que se pode sentir que se tem uma mão de borracha, um corpo que é o de um manequim ou uma mão invisível. As experiências de agora, coordenadas por Henrik Ehrsson, também do Departamento de Neurociências do Instituto Karolinska, e que envolveram no total 125 participantes, foram mais longe: criaram a sensação de que todo o corpo estava invisível.
Como foram as experiências
Para criar a ilusão de invisibilidade, a equipa pediu a cada um dos participantes no estudo para ficar em pé, com uns óculos especiais na cabeça, que, em vez de lentes, tinham ecrãs. Estes óculos estavam ligados a duas câmaras que filmavam em tempo real, permitindo ao participante ver o que estava a ser filmado naquele instante. Em frente do participante, a cerca de um metro de distância, as duas câmaras encontravam-se à mesma altura dos seus olhos. Montadas em cima de um tripé, as câmaras estavam ainda apontadas para baixo. Como entre elas e o chão não havia nada, filmavam um espaço vazio.
Ao mesmo tempo, cada participante tinha de olhar para baixo, como se olhasse para o próprio corpo. Mas em vez do corpo, o que o participante via era aquilo que era transmitido pelas duas câmaras — ou seja, um espaço vazio.
Depois, um elemento da equipa de investigadores utilizava dois pincéis grandes ao mesmo tempo, para assim criar a ilusão da invisibilidade.
Numa sequência bem definida, com tempos exactos, esse investigador tocava com os pêlos de um dos pincéis na barriga do participante, depois no braço direito, no braço esquerdo, na perna e no pé direitos, e na perna e no pé esquerdos. Ao mesmo tempo, com o segundo pincel, fazia o gesto simétrico e simultâneo na região vazia por baixo das câmaras. O local onde passavam os pêlos do segundo pincel correspondia precisamente à posição da barriga, dos braços, das pernas e dos pés de um corpo imaginário que estivesse por baixo da câmara.
Deste modo, o participante sentia os pêlos do pincel a passarem-lhe pela barriga e pelos outros locais do corpo ao mesmo tempo que via nos óculos, pelas imagens das câmaras, o segundo pincel a tocar no lugar da barriga e das outras partes do corpo, como se houvesse ali um corpo invisível.
Depois desta experiência, os participantes responderam todos positivamente, num questionário, que sentiram ter um corpo invisível. “Na ilusão do corpo invisível, o cérebro funde a visão do movimento do pincel no meio do ar com a sensação do toque no corpo real do participante, que não está a ser visto. Os participantes fazem a ligação da sensação do toque a um local vazio, sentindo assim terem um corpo invisível naquela posição”, explica Arvid Guterstam, acrescentando que não estava a espera de que os resultados fossem tão evidentes. “Fiquei surpreendido ao ver que a ilusão funciona realmente”, frisa. “Se considerarmos que nascemos e vivemos toda a vida a sentir que temos um corpo sólido, é bastante surpreendente que o cérebro seja enganado numa questão de segundos e passe a aceitar um corpo invisível associado à ideia do ‘eu’.”
Para testar se esta ilusão de invisibilidade era mesmo verdadeira, os cientistas submeterem os participantes do estudo a segunda experiência. Desta vez, quando cada um dos participantes olhava para baixo, com os óculos especiais postos, via uma faca a aproximar-se de um corpo invisível (filmada pelas duas câmaras), em vez do pincel. Ao mesmo tempo, os cientistas analisavam se o participante estava a sentir ansiedade, medindo se a pele suava mais ou menos.
“Descobrimos que os participantes suavam quando viam a faca (...), o que sugere que o cérebro interpretava a ameaça no espaço vazio como uma ameaça ao seu próprio corpo”, interpreta o investigador. Assim, a ilusão da invisibilidade estava criada e confirmada.
De seguida, os cientistas testaram os efeitos da ilusão da invisibilidade na consciência social dos participantes. Para isso, utilizaram dois grupos de participantes e uma plateia com 11 pessoas. Sabe-se que estar à frente de muitas pessoas costuma provocar ansiedade. Por isso, os cientistas queriam saber qual o efeito da ilusão de invisibilidade nesta situação.
No primeiro grupo, cada participante era levado a sentir que tinha um corpo invisível. Logo de seguida, tinha de olhar em frente e ver as 11 pessoas a olhar na sua direcção.
No segundo grupo, em vez de cada participante ser submetido à ilusão da invisibilidade, era submetido à ilusão do seu corpo ser o de um manequim. Para isso, passava pela mesma experiência: tinha os óculos ligados às duas câmaras e sentia ser tocado pelo pincel. Mas desta vez, havia por baixo das câmaras um manequim e o participante via o pincel a tocar no manequim. Por isso, o cérebro do participante assumia que o seu corpo era o de um manequim, em vez de ser invisível. Depois, este participante olhava também para a plateia das 11 pessoas.
A diferença nesta ilusão é que o corpo de manequim transmitia a noção de um corpo que pode ser visto por terceiros, ao contrário da ilusão de um corpo invisível. Para saber a reacção dos participantes dos dois grupos, a equipa mediu-lhes o batimento cardíaco durante o teste e fez um questionário sobre o nível de stress de cada participante no fim da experiência.
Efeitos na moralidade?
Os resultados foram claros. Em média, os participantes submetidos à ilusão da invisibilidade tinham um batimento cardíaco mais lento e diziam sentir-se menos stressados quando estavam diante das 11 pessoas. Pelo contrário, os participantes da ilusão do manequim diziam sentir-se mais ansiosos e tinham um batimento cardíaco mais acelerado. “O estudo apoia a hipótese de que a representação do próprio corpo influencia os processos de cognição social”, concluem os autores no artigo.
E será que há alterações na moralidade das pessoas que se sentem invisíveis? “A literatura está cheia de narrativas de indivíduos que são corrompidos moralmente após ganharem o poder da invisibilidade”, lembra Arvid Guterstam. “Num dos nossos próximos estudos, planeamos testar esta questão, expondo participantes que estão sob a ilusão da invisibilidade a um número de dilemas morais, e comparar essa resposta com a resposta desses mesmos participantes num contexto em que sentem ter o seu corpo normal.”
Mas estes trabalhos também poderão ser benéficos para levar pessoas que foram amputadas a sentirem como seus os membros prostéticos. Ou para compreender a origem de problemas relacionados com a percepção que temos do nosso corpo. “As ilusões corporais (...) fornecem-nos algumas informações sobre como o cérebro constrói a experiência de se estar dentro de um corpo físico”, considera ainda o investigador. “Ter conhecimentos sobre estes processos poderá ajudar a compreender as causas de distúrbios relacionados com a imagem corporal em doentes psiquiátricos ou neurológicos, ou por que é que há pessoas que sentem membros-fantasma no lugar dos seus antigos membros amputados.”