Judeus portugueses: “Ainda aqui estou passados 500 anos”

Às comunidades israelitas de Lisboa e do Porto estão a chegar milhares de pedidos de informação de eventuais candidatos à concessão da nacionalidade por via da descendência sefardita.

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Os novos candidatos à nacionalidade são um testemunho vivo de uma história de que subsistem muito poucos vestígios NELSON GARRIDO

Apesar do seu nome não o revelar, Harlow descende de judeus sefarditas que, por motivos religiosos, foram expulsos de Portugal a partir do final do século XV e nessa condição poderá tornar-se também português. O decreto-lei que regulamenta esta possibilidade entrou em vigor no dia 1 de Março passado. No Ministério da Justiça, a quem compete a decisão, deram entrada, desde essa data, cinco pedidos de nacionalidade portuguesa de descendentes de judeus expulsos, informou o gabinete de imprensa.

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Apesar do seu nome não o revelar, Harlow descende de judeus sefarditas que, por motivos religiosos, foram expulsos de Portugal a partir do final do século XV e nessa condição poderá tornar-se também português. O decreto-lei que regulamenta esta possibilidade entrou em vigor no dia 1 de Março passado. No Ministério da Justiça, a quem compete a decisão, deram entrada, desde essa data, cinco pedidos de nacionalidade portuguesa de descendentes de judeus expulsos, informou o gabinete de imprensa.

Por e-mail, a partir dos Estados Unidos, Harlow resume assim a sua situação de partida: “É uma nacionalidade que nunca tive ou que, pelo contrário, já seria a minha, caso a coroa portuguesa não nos tivesse tirado tudo?”

Para Harlow, trata-se de “fechar um círculo”. Tornar-se também português significa restabelecer “o direito à nacionalidade que foi revogado à minha família há muitos séculos”. “Porque nós ainda aqui estamos! Eu ainda aqui estou passados 500 anos”, declara.

Por enquanto, é um dos 112 candidatos que já têm um certificado a comprovar a sua “tradição de pertença a uma comunidade sefardita de origem portuguesa”. Cerca de 100 destes certificados foram emitidos pela Comunidade Israelita do Porto (CIP). A outra dúzia foi passada pela Comunidade Israelita de Lisboa (CIL).

Este é um dos documentos que os descendentes dos judeus expulsos têm de apresentar ao Governo português. É uma das condições estipuladas no diploma que entrou em vigor em Março passado ou seja, quase dois anos depois de o parlamento ter aprovado, por unanimidade, uma alteração à Lei da Nacionalidade de modo a garantir-lhes o direito a serem portugueses sem que para tal tenham de cumprir os requisitos exigidos a outros candidatos (obrigação de residência legal no país e terem conhecimento da língua portuguesa).

Em contrapartida têm de provar a sua ligação a Portugal com base em “requisitos objectivos”, como o apelido, a genealogia, o idioma e as memórias familiares. Para o efeito, esclarece a CIL no seu site, deverão ter provas documentais que passam por “registos de família, arquivos relativos a nascimentos, casamentos e óbitos, cemitérios e listas de túmulos, registos de cerimónias religiosas ou arquivos governamentais que mostrem as chegadas de Portugal ou listas de navios e de passageiros” com origem em terras portuguesas.

Os sefarditas são uma das duas grandes comunidades judaicas. Descendem dos judeus que chegaram à Península Ibérica muito antes de Portugal ou a Espanha existirem. Na sua longa estadia em território ibérico muitos distinguiram-se pelos seus conhecimentos e riqueza, mas a chegada ao poder dos reis católicos de Espanha ditou o seu destino.

Foram expulsos de Espanha em 1492, muitos deles procuraram abrigo em Portugal, mas quatro anos depois o rei D. Manuel I, para conseguir casar com a herdeira dos monarcas espanhóis, ordenou também a expulsão de todos os judeus caso não se convertessem ao catolicismo.

Muitos foram forçados a fazê-lo, dando origem aos chamados cristãos-novos, que voltariam a ser perseguidos pela Inquisição desde que esta se instalou em Portugal em 1536. Foi a partir daí que se intensificou o êxodo dos judeus. Encontraram abrigo nos espaços mais tolerantes ocupados então pelo império otomano, em outros países europeus como a Holanda, Alemanha, Inglaterra e França, e também no norte de África.

Não existem dados seguros sobre o número de judeus que então viviam em Portugal. Falavam entre si o ladino, uma língua derivada do castelhano e do português, que ainda hoje é falada por cerca de 150 mil pessoas em comunidades espalhadas pelo mundo.

É este o caso, por exemplo, de um dos candidatos à nacionalidade a quem o CIL passou já o certificado a comprovar que é descendente de judeus expulsos de Portugal. “Tem como apelido Beja, nasceu no seio de uma família sefardita e ambos os pais falam ladino. Nasceram em comunidades que faziam parte do império otomano, Chios de Grécia e Izmir da Turquia”, conta Teresa Santos, uma das pessoas que tem estado a analisar os pedidos apresentados na CIL. Explica que o apelido, neste caso, teve um peso determinante para efeitos de prova da ligação a Portugal, já que entre as comunidades judaicas originárias da Península Ibérica, que se fixaram no império otomano, “era uma prática corrente apelidarem-se com os nomes das terras de onde vinham ou dar esse nome às terras em que se estabeleciam”.

Milhares de pedidos
Na Comunidade Israelita do Porto o processo de emissão dos certificados foi aberto a 15 de Dezembro de 2014. Na CIL este processo só arrancou há poucas semanas. “Já recebemos centenas de pedidos, dos quais 30 estão a ser tratados. Foram emitidos uma dúzia de certificados”, refere Teresa Santos.

Michael Rothwell, da CIP, indica que emitiram cerca de 100 certificados, mas os pedidos de informação já “superam os sete mil”. Só que a maior parte não terá efeitos. “Recusámos até agora cerca de 97% dos pedidos porque foram realizados por indivíduos que não têm quaisquer condições de obter o certificado: ou porque não são judeus (ou filhos ou netos de judeus), ou porque não são sefarditas ou porque não conseguem provar minimamente a sua origem portuguesa”, esclarece.

Entre os certificados emitidos pela CIP figura o de James Harlow, mas até agora a maioria foi atribuída “a judeus sefarditas da Turquia, que falam ladino, que têm na sua genealogia apelidos portugueses ou apelidos adoptados por judeus de origem portuguesa”. “Em geral são pedidos para famílias inteiras”, acrescenta.

À procura de um nome
Harlow tem 52 anos e nos últimos 30, desde que soube que este não era o apelido original da família, tem tentado perceber de onde veio, o que recentemente chegou a envolver testes de ADN. Buscas em registos de passageiros que chegaram aos Estados Unidos a partir do século XVIII levaram a que esbarrasse com um apelido que já tinha encontrado antes em ligação com sua família: “Dionis”. “Encontrei um registo da chegada de um Juan Dionis aos Estados Unidos em 1790, mas levei mais cinco anos até descobrir que este tinha também um nome português. Chamava-se João Moises Dionis Benabides”.

Pesquisas posteriores permitiram-lhe identificar o seu nome de família original como sendo Benabides Dinis e descobrir que, recuando mais no tempo, este se cruzava com judeus que viveram em Portugal desde a constituição do reino. Espera ter concluída toda esta árvore genealógica no próximo ano. Harlow descobriu ainda que, do lado materno, descende de judeus espanhóis que partiram para a costa adriática em 1492, depois da expulsão de Espanha. Várias dezenas de descendentes deste ramo seriam mortos séculos depois no campo de concentração de Jasenovac, na Croácia.

É outro traço comum às comunidades sefarditas da Europa: foram dizimadas quase por completo durante a II Guerra Mundial. Aconteceu em Amesterdão, Salonica, Hamburgo, Bordéus e nos Balcãs, “onde 85% dos judeus foram mortos, a maioria dos quais descendentes de portugueses e espanhóis que ainda falavam estas línguas nas ruas de Zagreb, Sarajevo ou Belgrado”, conta.

Também a mulher de Harlow descende de judeus portugueses que foram expulsos para os Açores e que dali partiram para o Hawai no século XIX. “A bisavó da minha mulher foi professora de Português na cidade de Hilo. No sabat (dia de descanso religioso dos judeus) continuamos a comer as refeições que ela preparava, que incluem bacalhau e sardinhas”, descreve.

Os novos candidatos à nacionalidade são também um testemunho vivo de uma história de que subsistem muito poucos vestígios em Portugal. Quantos mais virão bater à porta? Teresa Santos admite que é “muito difícil” fazer uma projecção, mas adianta que “haja algumas dezenas de milhares de potenciais candidatos”. Já o responsável da CIP arrisca que “não será um número muito elevado”. “Cremos, no entanto, que dentro de dois ou três anos será possível refazer a história da diáspora judaica portuguesa, pois temos pedidos da Austrália, Ásia, Europa. América, África”, especifica.