Devemos ser bilingues?

Pais, professores e bilingues de várias idades contam uma experiência que alerta para os perigos de generalizar quando se diz apenas que saber mais do que uma língua é meio caminho para se ser bem-sucedido.

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Frederico Lourenço, escritor, professor catedrático, começou a falar duas línguas desde os dois anos, quando a família foi viver para Oxford, Inglaterra. “Já falava português, claro, quando partimos, mas como fiz a escolaridade em inglês até aos dez anos, posso dizer que o inglês se tornou a minha primeira língua. Na verdade, eu falava muito mal português até termos voltado para Portugal. Só me tornei bilingue a partir dos dez anos. Antes disso, basicamente eu era uma criança anglófona”, conta, antes de afirmar que agora, aos 51 anos, se sente verdadeiramente bilingue, ou seja, fala e escrita, razão e emoção, desenrolam-se com a mesma naturalidade em inglês e em português.

Thomas Manuel tem oito anos e quase desde que nasceu que está exposto a quatro línguas. O português do pai e do país onde vive, Portugal, o holandês — ou neerlandês — em que a mãe sempre lhe falou por ser holandesa, o inglês em que os pais comunicam entre si e o alemão que começou a aprender aos três anos quando por motivos profissionais os pais passaram um período da sua vida em Bamberg, uma pequena cidade no Norte da Baviera, e Thomas foi para uma creche. “Não falava uma palavra de alemão, mas ao fim de dois meses estava integrado e percebia tudo o que se lhe dizia”, conta o pai, o jornalista e escritor José Riço Direitinho (colaborador do PÚBLICO). Quando a família voltou a Portugal, um ano depois, e para “uma integração menos dolorosa”, Thomas entrou para a Escola Alemã de Lisboa onde estuda Alemão como língua-mãe. Agora escreve e fala as duas línguas. Não escreve em holandês, entende inglês, e no português que Thomas fala não se nota o mínimo sotaque. “Eu sou português”, diz sem hesitar ainda que veja na televisão os jogos de futebol do Borussia de Dortmund, mesmo sendo adepto do Futebol Clube do Porto, os desenhos animados sejam em holandês e em tempos tivesse confessado ao pai que sonhava em alemão. “Agora já não”, corrige, “sonho em português”.

As infâncias de Frederico e Thomas pertencem a tempos diferentes, com acesso e exposição também diferentes a diferentes línguas, mas na infância de um como na do outro já ecoava o pensamento de Wittgenstein expresso no seu Tractatus Logico-Philosophicus (1922): “Os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo”, uma frase que serviu à revista New Yorker para lançar uma série de estudos e um artigo publicado no início do ano, em que encetava uma discussão sob o título Ser bilingue é mesmo uma vantagem? Começava por inventariar as vantagens cognitivas de falar várias línguas. Não apenas como ferramenta profissional, social, cultural mas como algo que afecta de forma positiva a actividade cerebral. À partida parece pacífico defender esta ideia sem exclusões de parte, mas muitos professores, terapeutas de fala e educadores com quem a Revista 2 falou juntam-se numa conclusão em coro: “É perigoso generalizar.”

A ideia de partida
O princípio parece simples. Ellen Bialystok, neurocientista canadiana, vencedora do prestigiado Prémio Killam (a Fundação Killam premeia anualmente a excelência da investigação em várias áreas) pelo seu contributo para o desenvolvimento das ciências sociais, há cerca de 40 anos a estudar o modo como o bilinguismo activa a mente, é clara a defender as vantagens de ser fluente em mais do que uma língua numa entrevista publicada em 2011, também na New Yorker, e que serviu como ponto de partida para esta reflexão. “Se der a crianças de cinco ou seis anos um problema de idioma para resolver, verifica que, sejam monolingues ou bilingues, elas conhecem praticamente a mesma quantidade de linguagem. Mas perante uma pergunta verificou-se uma diferença. Perguntámos a todas as crianças se uma determinada frase ilógica era gramaticalmente correcta. ‘As maçãs crescem em narizes.’ As crianças monolingues não conseguiam responder. Diziam ‘isso é pateta’, e era tudo. Mas as crianças bilingues diziam por palavras suas: ‘isso é pateta, mas está gramaticalmente correcto’. Nas bilingues, o sistema cognitivo manifestou-se capaz de se concentrar na informação importante e ignorar a que menos importa.”

A cientista explicava então o mecanismo de forma simples: “Temos um sistema no cérebro, o sistema de controlo executivo. A sua tarefa é a de nos manter focados no que é mais relevante, ignorando distracções. É o que possibilita guardar duas coisas distintas na mente ao mesmo tempo e escolher entre elas. Quando temos duas línguas e as usamos regularmente, as redes do cérebro que trabalham ao mesmo tempo que falamos activam-se e o sistema de controlo executivo salta por cima de tudo o resto e responde apenas ao que é relevante naquele momento. Os bilingues usam mais esse sistema e é esse uso frequente que o torna mais eficiente.”

É neste pressuposto que muitos especialistas sustentam a teoria de que ser bilingue ou multilingue tem efeitos no atraso da demência, na prevenção de doenças como o Alzheimer ou na ideia de que um bilingue é mais capaz em actividades criativas ou em cálculo matemático.

“Isso pode ser ou não verdade”, afirmou à Revista 2 Craig Monaghan, director da St. Julian’s School, uma escola inglesa em Carcavelos. “Se assim fosse, imagino que os rankings PISA [Programa Internacional de Avaliação de Alunos, coordenado pela OCDE desde 2000] ligassem os elevados resultados em Matemática ou Álgebra com estudantes multilingues. No nosso caso, não é algo que tenhamos explorado, mas a maioria dos nossos estudantes é bilingue e tem excelentes resultados a Matemática.” Poderiam concluir de forma um pouco simplista, acrescenta, que “existe uma correlação”.

Na Escola Alemã de Lisboa, a maioria dos alunos também é bilingue, mas mais do que ter essa característica ou capacidade, o maior ou menor desafio que se coloca a essas crianças parte dos pais, ou dos educadores; eles são os intérpretes “de uma aprendizagem que é simultaneamente cognitiva relativamente às realidades que se lhes deparam, mas também do próprio fenómeno do bilinguismo”, refere José Valentim, subdirector daquela escola onde é também responsável pelo departamento de Português. “A criança, de início, apresenta uma única representação cognitiva para duas traduções diferentes e quando começa a frequentar o jardim de infância o seu cérebro possui mais do dobro da actividade em comparação com o do adulto. É nessa altura que a criança se apresenta mais aberta a novas aprendizagens, às descobertas e à pesquisa. Embora tenham decorrido muitas décadas, a teoria de Bloomfield [Leonard Bloomfield, 1987-1949,linguista] de que o controlo nativo de duas línguas nos primeiros anos é mais efectivo continua actual”, defende, apresentando dados da sua própria experiência. “Aos cinco anos, a criança que não enveredou por esse processo já domina a sua própria língua. Apresenta-se desde o início com uma flexibilidade cerebral para os registos que lhe são transmitidos. Através da audição repetida, do reforço positivo e do estímulo, e através de uma metodologia motivante e diversificada, reage espontaneamente, estabelecendo-se uma interacção recíproca entre os intervenientes no processo e, não menos importante, entre as línguas faladas e as próprias culturas transmitidas.”

E, mais uma vez, a ressalva: “O sucesso depende muito de outros factores, como as condições sociais, económicas, históricas e psicológicas, mas temos de concordar que, uma vez conseguido, permite alargar horizontes e enfrentar novos desafios”. Tira, no entanto, uma conclusão: “Os alunos bilingues desenvolvem capacidades especiais por se verem confrontados com duas realidades linguísticas em simultâneo, exigindo deles uma estruturação mental e uma predisposição para um pensamento lógico, ainda mais apurado no caso do alemão, por se tratar de uma língua com essas características. As estruturas gramaticais, a construção sintáctica das frases e o próprio léxico da língua, bem como a forma como os alemães estruturam o seu pensamento e apresentam os seus argumentos, organizando, esquematizando e planeando antecipadamente, são contributo importante que favorece e potencia o sucesso desse tipo de alunos.”

Comunicar com palavras e gestos
A quantidade e qualidade de informação sobre o tema é enorme. Uma busca rápida por livrarias e pela Internet apresenta dezenas de estudos internacionais a defender a relação entre bilinguismo e sucesso num momento em que há um padrão mundial de mobilidade cada vez mais comum. “Cada vez mais as pessoas trocam de cidade, de país, de profissão e a exposição a diferentes culturas e línguas faz parte dessa mobilidade. Isso é um facto. O que é que podemos concluir? Primeiro, que é preciso que as sociedades sejam capazes de dar resposta aos desafios que isso coloca e que tanto podem ser estímulos como barreiras, dependendo de cada caso”, refere Daniela Santos, professora e responsável pelo ensino de Português no Colégio do Sagrado Coração de Maria (CSCM), em Lisboa, um colégio privado numa zona da cidade, Arroios, com uma população cada vez mais internacional.

Tiveram de ser “um pouco criativos” para conseguir integrar o número cada vez maior de alunos estrangeiros que lhes iam chegando. Várias nacionalidades, vários níveis de identificação com o português, a língua de ensino naquela escola. Além de aulas adaptadas a cada situação, perceberam que o segredo era começar o quanto antes, com alunos que não sabem uma palavra de português e que, muitas vezes, pouco falam ainda na língua onde nasceram. São os casos de Melissa, Tiago e Angelina.

Melissa tem quatro anos. Tiago e Angelina, três. São chineses e estão em Portugal desde Janeiro. Todos no jardim de infância do Sagrado Coração de Maria, onde aprendem as primeiras palavras em português. Angelina está impaciente. Canta em mandarim e dança ao ritmo da sua melodia enquanto a terapeuta da fala do colégio, Filipa Ferreira da Costa, mostra imagens às três crianças, pedindo a cada uma que repita com ela a palavra correspondente. Angelina desperta do seu alheamento quando vê a imagem de um boné. “Boooonééé”, vai repetindo em sotaque nasalado com gestos que indicam que é para pôr na cabeça. Esquece por momento o mandarim com que continua a desafiar o primo Tiago. Mostra que também já sabe dizer “menina”, “banana” e “leite”; arrasta o ‘s’ de sopa e fecha as vogais de “casaco” que sai num português quase imperceptível. Melissa já é capaz de construir frases simples, pondo o verbo no tempo certo e Tiago pede a atenção de Angelina. Diz “o menino bebe leite”, imitando a terapeuta e baralha o cartão com as imagens de palavras novas na mesa.

Em três meses de escola já são capazes de comunicar em português usando palavras e gestos, “um feito”, considera Catarina André, directora pedagógica do Jardim Infantil do CSCM, tão surpreendida quanto expectante em relação aos resultados de um trabalho que começou agora e só terá efeitos visíveis a médio e longo prazo, à medida que os alunos forem avançando na escolaridade. “O objectivo menos ambicioso é que além de falarem e escreverem sejam capazes de compreender matérias e testes.” Perfeito, no entanto, seria eles tornarem-se bilingues, isto é, fluentes na língua de origem e, neste caso, no português, sem sentirem o esforço da tradução mental.

Melissa, Tiago e Angelina começam agora literalmente do zero nesse percurso. “Onde está o menino a vestir o casaco?”, pergunta Filipa a Angelina. Ela aponta, acerta na imagem do cartão. Todos batem palmas, ela entra em festa. Em mandarim, mais uma vez. “O mandarim é muito mais acentuado em termos nasais, ou de ressonância”, explica a terapeuta, referindo, no entanto, que mais difícil do que isso é a impossibilidade de comunicar com os pais destes meninos, que só falam mandarim. Quero recomendar trabalhos de casa, exercícios, e os pais não me entendem, é impossível. O mandarim é a língua-mãe, ponto. E se houver um irmão mais velho, então serve de intérprete.”

Filipa Ferreira da Costa trabalha em mais escolas, com crianças das mesmas idades e de outras nacionalidades e fala em experiências totalmente distintas. “O que está escrito é que uma criança exposta a duas línguas começa a falar mais tarde, mas, a partir do momento em que o faz, as duas línguas estão dominadas. A grande erupção dá-se aos quatro anos. Com eles, ainda não tenho tempo para dizer, mas em relação ao inglês acho que sim. Em termos cerebrais, nota-se um maior desenvolvimento. Geralmente ficam à frente dos outros. Em termos cognitivos falar mais do que uma língua é um grande estímulo.” E dá o exemplo de um aluno israelita. “Fala hebraico, inglês, porque está na escola inglesa, e português, porque vive em Portugal. Tem quatro anos, nasceu cá, os pais querem ficar e ele domina as três línguas. A terapia da fala é importante nesta altura, para o português e para a estrutura da língua.”

Em relação ao mandarim é muito difícil porque a estrutura da língua é completamente diferente. “Nesta idade, o que mais nos preocupa é o bem-estar deles, que sejam capazes de se defenderem, de se salvarem e serem felizes. Sem o domínio da linguagem, isso é muito complicado”, conclui por sua vez Catarina André.

As irmãs Malou e Luena Gama, seis e três anos, conversam com a mãe entre português e holandês. Quando Malou era pequena, só falava holandês. “Acho que as crianças começam a falar a língua da mãe. Deve ser por isso que se chama materna. Mas sobretudo desde que entrou no 1.º ciclo, este ano, o português domina completamente o modo como comunica. Antes, ela não tinha sotaque quando falava holandês, era como se tivesse vivido sempre na Holanda, mas isso está a mudar. Faz agora mais erros em holandês e sente-se muito portuguesa. Isso é engraçado, apesar de até aos quatro anos falar um português muito menos bom do que os outros meninos da idade dela”, conta Inge Ruigrok, holandesa, casada com um português, a viver em Portugal há dez anos. Essa aparente demora no português levou os pais a tomarem uma decisão. “Teve algumas sessões com um logopedista para corrigir a pronúncia e ver se a fonética dela se adaptava ao português. Isso foi ultrapassado em meio ano. Agora está a experimentar ler livros em holandês, mas é difícil, porque quando se aprende a ler e a escrever isso é feito com uma fonética e a fonética do português é diferente da do holandês.”

Malou está num colégio privado em Sintra onde aprende inglês. “No inglês, ela também está num bom nível. Começou quase desde bebé.” Luena fala muito holandês. “Ainda precisa muito da mãe”, comenta Inge num português fluente, com sotaque, respondendo aos pedidos das crianças, numa conversa onde surgem palavras das duas línguas. As interjeições são em português, as cores das flores que colhem num parque de Sintra também. Pede a Luena que conte. Ela conta: “um, dois, três, quatro, cinco” em português e faz o mesmo em holandês. “Para ela, contar é sempre em duas línguas”, sorri a mãe. “Acho que é uma sorte para elas poderem crescer com duas línguas. Dá-lhes uma perspectiva das coisas muito mais abrangente. Elas são crianças que crescem no mundo.” As aventuras do dia, como foi a escola, são contadas em português. As emoções são em português. Luena ouve buzinas na estrada e diz: “É música.”

As emoções da língua
Exposto a uma diversidade de línguas pouco comum, Thomas Manuel também disse a sua primeira palavra em holandês, a língua da mãe. Foi “medo”, quando se assustou com uma onda na praia. Seguiram-se muitas palavras soltas e só a partir dos três anos começou a construir frases. “Normalmente começa-se por essa familiaridade. Emoções, vontades”, refere agora Daniela Santos, lançando a questão da artificialidade da língua. “Muitas vezes os pais, preocupados com que os filhos sejam muito fluentes numa língua que não a sua, cometem alguns excessos.” Sem referir nomes, dá um exemplo. “Imagine-se que um pai português e uma mãe sul-americana ou asiática começam a falar inglês em casa quando nenhum deles tem essa língua como materna e só comunicam em inglês com o seu filho para que ele aprenda a língua. Na maioria dos casos, acontece que ele vai aprender um inglês sem emoção, clínico. Isso vai interferir no modo como se expressa, como lida com as próprias emoções e pode ter efeitos complicados no seu desenvolvimento. É como se não pertencesse a nenhuma língua.”

Frederico Lourenço conta a sua história nessa perspectiva de pertença. “Em Inglaterra, os meus pais falavam entre si em português e a nossa mãe falava connosco em português, mas tanto eu como a minha irmã respondíamos em inglês. O nosso pai começou cedo a falar connosco em inglês, para aprimorar o nosso vocabulário e pronúncia — ele tinha um jeito incrível para línguas. O português estava presente nas nossas vidas, mas tanto a minha irmã como eu não tínhamos a mínima vontade de o falar.”

A relação com uma língua e outra — e mais tarde com o alemão que também fala e escreve de forma fluente — foi-se construindo com a vida e obedece a fases emocionais, racionais, relacionais. “Escrevi a minha tese de doutoramento em inglês. Como namorei durante 18 anos com um inglês, foi também a língua das emoções durante esse período. Não há uma língua que seja racional e outra emocional. Ambas são ambas as coisas. Neste momento, há uma preferência da minha parte pela escrita em português, mas continuo a ler quase exclusivamente em inglês. Leio mais grego e alemão do que português, por exemplo.” Mas, continua, “só sei contar em inglês. Tabuada e alfabeto só sei em inglês. Os meus sonhos são trilingues: sonho em português, em inglês e em alemão. Mas eu próprio não me posso considerar trilingue, pois embora fale muito bem alemão, o nível não está no mesmo patamar do inglês e do português. Tenho uma grande amiga austríaca e por isso o alemão está muito presente na minha vida actual. Além de que a segunda família do meu pai era também austríaca. O alemão teve desde muito cedo — 12 anos — uma importância fulcral”.

Frederico acrescenta um ponto considerado por todos determinante: gostar de falar línguas. E isso é algo que se manifesta cedo e que José Valentim contextualiza desta forma: “O papel da criança na aprendizagem precoce da língua é fundamental. Ela tem de possuir apetência linguística e mostrar permanente curiosidade pela novidade, pelo jogo, por aprender a ‘brincar’, ser organizada e criar mecanismos de autonomia, que acaba por enriquecer nas mais diversas vertentes da sua formação. Ultrapassada essa barreira inicial, aquilo que a priori poderia ser um handicap torna-se um reforço e um processo de evolução gradual de múltiplos estímulos que conduzem ao sucesso”, sublinha. Essas são condições “indispensáveis para que se ultrapassem barreiras, como o facto de o alemão não ser a língua oficial, ser uma língua pouco ouvida no contexto social português e ainda o facto de a criança viver em ambiente estritamente português”.

Ana Bayan ensina português a estrangeiros na mesma zona onde está o CSCM, mas numa escola pública, no agrupamento de escolas Nuno Gonçalves, onde está a antiga Escola Secundária D. Luísa de Gusmão, com um população de estudantes que, além de portugueses, tem muitos alunos chineses, eslavos, paquistaneses, nepaleses ou do Bangladesh. A sua função é a de que eles entendam e se façam entender na língua em que estudam. Se conseguir que sejam bilingues, é fantástico, mas sabe que para muitos talvez seja tarde. “Seja pela cultura ou idade, mas sobretudo por causa da predisposição social e cultural para ser fluente em português”, além dos meios de que as escolas dispõem para oferecer um ensino à medida das necessidades. “Os nossos alunos estrangeiros, tanto os adolescentes como os adultos, são um grupo muito heterogéneo ao nível da língua mas também dos estímulos e estilos de aprendizagem. Muitos têm alfabetos completamente diferentes. Quem tem uma língua materna muito afastada da portuguesa demora mais tempo a aprender o português, mas nos eslavos essa diferença atenua-se porque há uma apetência académica maior e um maior acompanhamento por parte das famílias.”

O primeiro passo para se ser bem-sucedido nessa aprendizagem é começar pela rotina e pela identificação, sustenta: “Há que ensinar uma língua estrangeira recorrendo a exemplos da realidade dos alunos. Seja através de textos adaptados à idade, seja com o quotidiano. A prioridade deve ser a da linguagem do dia-a-dia, recorrendo a imagens. A imagem é o grande auxiliar. Se isso não for feito de uma forma progressiva tal qual se ensina a matemática, o aluno não chega aos objectivos”.

Ana Bayan ensina português a estrangeiros desde 1987. Primeiro na Guiné-Bissau (onde apesar de a língua oficial ser o português são poucos os que o falam ou escrevem), em Espanha e agora em Lisboa. Implementou o ensino do Português como língua não-materna no D. Luísa de Gusmão, “mesmo antes de ter sido instituído como uma disciplina pelo Ministério da Educação”. Em 2012, para responder às necessidade escolares criadas pelo número de imigrantes em Portugal, o Governo promulgou um despacho que estabelecia aulas de 90 minutos três vezes por semana a alunos de nível de iniciação ou intermédio de Português e uma para o nível avançado, de modo a trabalhar o português “enquanto língua veicular de conhecimento para as outras disciplinas do currículo” e para desenvolver competências literárias. Ana Bayan lamenta a falta de meios provocados por cortes orçamentais para que a sua tarefa e a de outras escolas seja bem executada. “Se estes alunos tiverem um bom acompanhamento e elasticidade cognitiva, os resultados escolares serão muito superiores aos de um aluno que só saiba uma língua.” Aponta exemplos concretos: “Nos alunos asiáticos, isso vê-se sobretudo em áreas onde já são bons, as ciências exactas. Nos alunos que têm um nível académico mais estruturado, como os eslavos, isso manifesta-se de forma mais transversal.”

“Quem aprende línguas estrangeiras terá um cérebro preparado para aprender qualquer outra coisa”, disse recentemente ao PÚBLICO Pasi Sahlberg, conselheiro do Ministério da Educação finlandês — o sistema de educação da Finlândia é apontado como um exemplo para o mundo e é bilingue, finlandês e sueco. No fórum sobre inovação e ensino da língua, que se realizou em Boston, em Março, Paola Ucelli, professora em Harvard, tal como Sahlberg, afirmou que “a proficiência linguística é um factor-chave para a equidade do sistema educativo”. Ao contrário da OCDE que não estabelece comparação entre aquisição de conhecimento e domínio de línguas, a Education First, organizadora da conferência de Boston, publica um índice de proficiência em inglês. Nele, Portugal aparece em 21.º lugar entre 63 países. Para o ano, a avaliação irá reflectir as alterações efectuadas pelo Ministério da Educação e Ciência, com testes a nível internacional que avaliam os conhecimentos no 9.º ano. Falamos do ensino público em Portugal.

A experiência de Craig Monaghan no St. Julian’s é distinta. “A maioria dos nossos alunos são portugueses e muita da nossa cultura informal tem raízes em Portugal e não no Reino Unido”, sublinha, antes de dizer que a principal vocação do ensino naquela escola é a internacionalização. O grande desafio apontado por Craig Monaghan é desenvolver a língua académica numa criança. Na escola que dirige, isso pode conseguir-se com o inglês e ou com o português. Não se faz apenas com a aprendizagem de terminologia, mas com o cultivo de um estilo na escrita. “O nosso maior esforço vai no sentido de assegurar que a linguagem académica se reflicta numa prosa analítica e concisa e que isso se conjugue com uma voz própria da criança”, nota, enquanto faz a distinção dos objectivos que advêm de ter inglês como primeira ou segunda língua, opções que a escola oferece. “Na primeira língua estuda-se muito mais literatura. Na segunda, os estudantes tendem a olhar mais de perto para os mecanismos da linguagem. Contudo, no fim do seu percurso no St Julian’s, todos os estudantes aprenderam literatura na sua segunda língua.”

Simples aprendizagem
Juno e Ari ainda não sabem ler. Têm cinco e três anos. A mãe é coreana e o pai é português. Em casa, entre os quatro fala-se português, e, quando a mãe está só com as filhas, coreano. Mas isso é cada vez mais complicado, como sublinha Yang Yunseong, dizendo: “Elas já me respondem muitas vezes em português.”

Yang, há dez anos em Portugal e com um português fluente, está apostada em que as filhas tenham duas línguas. As meninas andam numa escola portuguesa, estão permanentemente expostas ao português, excepto quando estão com a mãe. A mais velha está numa escola coreana aos sábados, mas são apenas duas as alunas numa comunidade muito pequena em Portugal. “Somos 190”, diz Yang. O pai, Pedro, conhece apenas algumas “palavras básicas” e umas expressões em coreano. Viveu algum tempo na Coreia do Sul onde conheceu a mulher que estava a aprender português e já vivera no Porto. Às conversas em coreano entre a mulher e as filhas, Pedro sabe apenas responder, não entende pormenores. Mas muitas vezes é Yang quem fica a “falar sozinha”. “Quando elas não sabem explicar-se em coreano, falam-me em português e, como eu percebo, respondo. Abri um precedente. Muitas vezes elas acabam por falar comigo em português e eu com elas em coreano. Não as forço, mas tento que falem e pergunto-me por vezes se não deveria fingir que não percebo para elas tentarem falar. Mas não sei. Parece falso, não seria natural. A língua em que falo e me exprimo melhor com elas é o coreano e tenho de lhes passar isso de modo honesto. A ligação que temos faz-se em coreano.”

Amar, zangar-se, discutir, brincar faz-se na língua natural, parecem concordar muitos especialistas e, com eles, Pedro Ribeiro e Yang Yunseon. Mas um e outro ainda não conseguem perceber como será com as filhas. Para já, fazem-no nas duas línguas que conhecem. Se o português ganha no social, o coreano ainda está muito presente, “elas ainda precisam muito de mim”, nota Yang, achando que conseguir expressar-se bem em mais do que uma língua é uma vantagem, mas sem se ater em estudos acerca de capacidades cognitivas ou para uma melhor saúde mental.

“Nada pode ser visto a partir apenas de uma única perspectiva”, defende Daniela Santos, que desconhecia as conclusões do estudo de Angela de Bruin, uma holandesa professora na universidade de Edimburgo que ficou fascinada pelo universo bilingue e se doutorou com uma tese sobre a influência do bilinguismo no desenvolvimento cognitivo. Concluiu que por vezes o bilinguismo é sobrevalorizado. “Não digo, de modo algum, que não há vantagens em ser bilingue”, declarou à New Yorker, acrescentado, contudo, que essa vantagem pode ser diferente do modo como muitos investigadores a têm tratado: “Como um fenómeno que ajuda as crianças a desenvolver as suas capacidades, a saltar de uma tarefa para outra de forma mais eficaz, que melhora o controlo executivo das suas funções.” Para Angela de Bruin, essas capacidades resultam de uma única coisa, “da simples aprendizagem”.

Pedro e Yang falam das suas filhas individualmente. A abordagem de uma à linguagem é diferente da outra. A primeira palavra de Ari foi em português, a de Juno em coreano. Juno sabia todas as letras do alfabeto aos dois anos, Ari aos três ainda as vai aprendendo. “Uma não é mais inteligente do que a outra, mas são muito diferentes”, refere Pedro, e acrescenta que “Juno constrói gramaticalmente bem as frases, mas com sotaque estrangeiro em coreano. De vez em quando, constrói frases com traduções literais do português para o coreano”. Yang sintetiza: “É como se falasse coreano com a gramática portuguesa.”

Fala-se em aprender. Seja línguas ou matemática ou expressão plástica. É também com base nisso que Frederico Lourenço confessa ter acima de tudo “um preconceito fortíssimo” contra o monolinguismo. “Acho que toda a gente deve falar pelo menos uma outra língua superlativamente bem. Não é ‘arranhar’ um pouco de inglês ou de francês: é fazer um esforço para atingir um patamar elevadíssimo nessa língua. Ter só uma língua é muito pobre. Por outro lado, não vejo vantagem em saber mal e porcamente seis ou sete línguas, como é o caso de muitos auto-intitulados poliglotas. Dominar fantasticamente três línguas é o ideal. Toda a gente devia tentar.”