Ainda bem que é proibido usar espadas no Parlamento de Londres

Na quinta-feira há eleições no Reino Unido e o Parlamento já se prepara para o discurso da rainha, que inaugura a legislatura e o novo governo. O espelho para Isabel II fazer a toilete já está no lugar. Resta saber quando poderá ir a Westminster. Não há memória de umas eleições tão disputadas como estas.

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Westminster foi construído para ser um palácio, não um parlamento Paul McErlane/Reuters

Faltam meia dúzia de dias para umas eleições históricas. “Que excitação”, diz Andrew, que já tem cabelos brancos e já se sentou nas cadeiras dos legisladores, quando fez parte de uma comissão de cidadãos. O grupo de visitantes tem americanos, um casal do País de Gales, duas senhoras londrinas que sabem tudo sobre a rainha, uma jornalista portuguesa e dois escoceses que só se identificam no fim da visita – “Ficaram calados de propósito, para eu não dizer piadas à vossa conta”, diz Andrew.

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Faltam meia dúzia de dias para umas eleições históricas. “Que excitação”, diz Andrew, que já tem cabelos brancos e já se sentou nas cadeiras dos legisladores, quando fez parte de uma comissão de cidadãos. O grupo de visitantes tem americanos, um casal do País de Gales, duas senhoras londrinas que sabem tudo sobre a rainha, uma jornalista portuguesa e dois escoceses que só se identificam no fim da visita – “Ficaram calados de propósito, para eu não dizer piadas à vossa conta”, diz Andrew.

O Parlamento, diz o guia que não é só turístico – “vou-vos explicar o sistema político britânico, o sistema eleitoral, contar-vos a história arquitectónica deste palácio e falar de História” –, ficará irreconhecível depois de 7 de Maio. Mas seja quem for que chegue, e 200 deputados devem ser estreantes, há tradições imutáveis.  “Por exemplo: não podem comer ou beber dentro do edifício, não podem mastigar pastilhas elásticas e não podem fumar porque foi sempre proibido fumar aqui dentro; em 300 anos, nunca ninguém fumou aqui dentro. Estas regras são para vocês e para os deputados , a diferença entre vocês e eles é que vocês não se podem sentar e eles podem”. Andrew desata a rir – a visita dura duas horas.

Entra-se pela grande sala de Westminster, o que resta do palácio original construído há 600 anos. A partir dali, mergulhamos num puzzle de pedaços que foram acrescentados a uma estrutura que foi sendo destruída por fogos (dois) e por bombardeamentos – as bombas de Hitler arrasaram a Câmara dos Comuns. Por ordem de Winston Churchill, o recinto foi todo reconstruído (modestamente, porque a Inglaterra do pós-guerra estava em austeridade), menos o arco gótico da porta, que ficou danificado para os legisladores eleitos pelo povo não perderem da memória a chuva de bombas que caiu sobre Londres na II Guerra Mundial – o Blitz.

Resumo da aula de arquitectura de Andrew: Westminster, “criado para ser um palácio e não um Parlamento”, foi reconstruído nos 64 anos de reinado da rainha Vitória. As marcas de Vitória estão por todo o lado, nos florões nas paredes, nos ornamentos sobre as lareiras, nas pinturas que cobrem quase todos os tectos. “A ideia com que ficamos, quando olhamos para todos estes símbolos VR, que significam Victoria Regina, é que não lhes ocorreu que depois dela haveria outros monarcas”, comenta Andrew.

O guia define o estilo excessivo do conjunto de edifícios a que hoje chamamos de Casas do Parlamento, um pastiche de barroco e gótico, como “clássico gótico vitoriano”.

O Parlamento de Westminster divide-se em duas partes. A visita começa na zona mais nobre, literalmente e figurativamente falando. Estamos na “sala de vestir do monarca”, ricamente ornamentada e usada pelos reis quando inauguram mais um ano legislativo com o “discurso de Estado”, ou “discurso do rei ou da rainha” – há 63 anos que é da rainha, Isabel II iguala Vitória em anos de reinado em Setembro. Andrew explica rapidamente que não é a rainha quem o escreve, mas o primeiro-ministro – o que quer dizer que, sempre que o Governo muda de cor política, a rainha ou é trabalhista, ou é conservadora. Os dois partidos têm dividido o poder entre si e, este ano, apesar de não se saber quem irá sair vencedor das legislativas de 7 de Maio, devido à forte repartição dos votos por partidos já existentes e por novas formações, continuará a ser um dos dois grandes a chefiar o executivo.

Mal chega ao Parlamento, a rainha segue para a sala de vestir. “Ela chega de carruagem, já com o seu vestido de cerimónia, mas é aqui que coloca o manto e a coroa imperial”, diz Andrew. Debaixo de grandes medidas de segurança, a coroa, habitualmente exposta na Torre de Londres, mora três dias em Westminster; chega na véspera do discurso, parte no dia seguinte.

Na sala de vestir, Andrew chama a atenção para um espelho de pé em madeira, vitoriano, que já está na sala, preparado para a toilete de Isabel II. “No dia do discurso também põem um biombo para a resguardar, apesar de só quatro pessoas poderem entrar aqui dentro: a rainha, duas damas de companhia e um funcionário que tem a missão de acompanhar o processo”.

Depois do discurso, os cavalos
Andrew, que no início da visita prometera mostrar um trono, conduz o grupo para a Câmara dos Lordes. É lá que está o trono folheado a ouro onde Isabel II se sentará e falará, quando houver governo. As sondagens dizem que conservadores (no poder) e trabalhistas (que lideram a oposição) estão praticamente empatados e sem maioria. O nome do próximo primeiro-ministro dependerá de coligações ou de alianças (e o Partido Nacional Escocês pode ser um pivot importante para os trabalhistas de Ed Miliband chegarem ao poder, por isso Andrew ficou com pena de não ter sabido que havia escoceses no grupo).

O discurso está marcado para 27 de Maio. O problema é se, nessa data, ainda não houver governo, dada a complexidade das possíveis coligações ou alianças. Muitos analistas prevêem um processo demorado – em 2010, quando os conservadores de David Cameron não conseguiram maioria, demorou cinco dias a formação da coligação com os liberais democratas de Nick Clegg.

Isabel II só faltou uma vez ao discurso de Estado, em 1963, quando estava quase a ter o terceiro filho. Mas em caso de atraso prolongado, está prevista uma solução – o discurso de Estado pode ser feito pelo lorde líder, a baronesa Stowell – “as mulheres nos lordes são lordes, não ladies” –, numa cerimónia discreta e igualmente rápida.

É que apesar de toda a pompa e de tanto protocolo, o discurso de Estado é pequenino, dura dez minutos e toda a operação (chegar, vestir-se, falar) não ocupa mais do que uma hora da vida da monarca que pode, depois, ir fazer outras coisas – há uns anos, passou pelo palácio para mudar de roupa e foi às corridas. Um tablóide aproveitou para mostrar a cara séria de Isabel II no Parlamento e a cara de entusiasmo e felicidade nas corridas quando o seu cavalo ganhou. As senhoras londrinas fãs de Isabel II lembravam-se muito bem dessa primeira página do jornal e disseram que ela estava muito mais contente com os cavalos.

A Câmara dos Lordes é um espaço pequeno, decorado a vermelho, e ouro, e nem todos os nomeados (são 800 os lordes) cabem lá dentro. Nos anos de 1950, os lordes, que no passado tinham que pertencer a uma família da nobreza, começaram a ser nomeados pelo governo. Mas foi o trabalhista Tony Blair quem aboliu totalmente a hereditariedade na câmara dos lordes (ainda há alguns que herdaram o lugar, o mais antigo deles tem 98 anos).

Por altura do discurso da rainha, a sala dos lordes tem que acolher também os Comuns, porque o monarca está proibido de entrar na sala dos que são eleitos pelo povo.

A culpa, explica Andrew, é de Carlos I, que num dia do seu reinado (século XVII) entrou no Parlamento com as tropas para prender cinco opositores. Por causa dele, existe um ritual: o funcionário conhecido por “bengala negra” vai aos Comuns em nome da rainha pedir-lhes para assistirem ao discurso. Mas porque é um enviado do monarca (o inimigo), ao aproximar-se da porta esta é violentamente fechada na sua cara, antes de finalmente ser convidado a entrar para passar a mensagem. Só depois os Comuns que quiserem vão ouvir a rainha, a maior parte deles da porta, por não caberem.

Sem lugares marcados
Os Comuns também não têm muito mais espaço na sua sala decorada a verde. Só há 430 lugares para 650 deputados eleitos. “Não há lugares marcados, quem quiser assistir à sessão tem que chegar cedo”, diz Andrew, que volta a entusiasmar-se quando explica a divisão dos lugares por partido. A ala destinada aos “outros” é muito pequenina, além de estar num cantinho escuro da sala.

A sala dos Comuns foi concebida numa lógica de confronto. Sentam-se frente a frente o governo e a oposição (os mais pequenos, os que não costumavam contar no jogo político, mas que durante a campanha prometeram fazer-se ouvir, estão num canto lateral). No Parlamento que cessou funções a 30 de Março, sentavam-se conservadores (303 lugares) e liberais-democratas (56) num lado; trabalhistas (257) do outro. Na zona lateral da sala, estavam os democratas unionistas da Irlanda do Norte (8), o galês Plaid Cymru (3), os sociais-democratas (3), o Partido da Indepência do Reino Unido (UKIP,2), os Verdes (1), os independentes (3), o Aliança (Irlanda do Norte, 1). O Sinn Feein, também norte-irlandês, elegeu seis deputados mas recusa sentar-se em Westminster.

E agora, quando as sondagens dizem que os nacionalistas escoceses podem eleger 50 ou mais deputados? E que o UKIP pode crescer, e os Verdes… “Provavelmente as zonas terão que ser reconfiguradas… não sei… não sei mesmo o que irão fazer”, diz Andrew.

O guia abre a sessão de perguntas e respostas. Se não cabem todos, como é que votam? Não votam na sala, votam entrando em corredores próprios: nos Lordes, há o corredor do “concordo” e o do “não concordo”, nos Comuns há o corredor do “não” e o do “yey”.

Independentemente do que acontecer, demore mais ou menos tempo a formação do próximo governo do Reino Unido, os deputados voltam ao trabalho a 18 de Maio.

E para que serve a risca desenhada no chão à frente de cada lado das bancadas dos Comuns, e que parece um traço contínuo numa estrada? Andrew faz o seu melhor sorriso em toda a visita guiada. “Das cadeiras à faixa da bancada oposta vai a distância de duas espadas”, responde, malicioso. Os visitantes comentam o Parlamento que vem ai, com tantos partidos antagónicos, e Andrew não resiste a um último comentário: “Lá em baixo, nas caves, ainda está a placa que diz: ‘Deixar aqui as espadas’”.