A torre da polémica e o livro da melancolia
Uma entrevista que junta gestos de uma rara ambição, um livro sobre o papel da melancolia na arquitectura e uma torre de 17 andares. Em comum, Diogo Seixas Lopes, um dos arquitectos portugueses mais inquietos.
Diogo Seixas Lopes e Patrícia Barbas são um casal e uma parceria num atelier que funciona numa antiga garagem na zona de Campo de Ourique, em Lisboa. É um espaço ainda habitado por iconografia do antigo inquilino, recortado por uma cortina branca que desenha o saguão quadrangular. Às fotografias na parede de outras eras mecânicas juntam-se os computadores, os livros e as maquetes.
Deste lugar incomum saiu o projecto para uma torre de escritórios na esquina da Fontes Pereira de Melo com a Avenida 5 de Outubro, que acendeu uma polémica em Lisboa.
Entretanto, Diogo Seixas Lopes defendeu a tese de doutoramento na ETH Zurique que agora está publicada em livro, Melancholy and Architecture. On Aldo Rossi.
A torre e o livro remetem para uma “arquitectura científica”, no rigor com que o atelier quer erguer o edifício e no modo como Diogo Seixas Lopes fala e escreve sobre arquitectura. Diz-nos que a “serialidade e a repetição podem ser um futuro da profissão” e que “a autoria não pode ser descartada em função de um discurso muito banal sobre as maleitas do arquitecto-autor”.
Apesar da crise, as condições da arquitectura em Portugal continuam a permitir que, em Lisboa, um pequeno atelier como o vosso projecte um edifício desta envergadura…
PB – Essa foi uma opção que não é normalmente tomada pelos promotores para um edifício com esta escala e visibilidade. A questão do concurso e a forma como foi montado com o convite a sete equipas da mesma geração foi uma surpresa para nós porque não é usual. Este tipo de encomenda normalmente não está sujeita a concursos e é sempre entregue ao mesmo tipo de empresas de arquitectura.
Depois do Teatro Thalia como é que se projecta uma torre? É um exercício difícil…
PB – Nós encaramos qualquer projecto como um exercício de arquitectura, seja fazer a requalificação das ruínas do Teatro Thalia seja desenhar um edifício de escritórios. Não sentimos que estivéssemos a fazer uma coisa completamente diferente ou fora da nossa pele. É um exercício que inclui também uma intervenção no espaço urbano e isso é muito estimulante. Como também é projectarmos para a cidade onde vivemos e exercemos a profissão.
Uma torre coloca o problema da percepção à distância e da modulação que assumiram como tema…
PB – Propomos um módulo pequeno até por uma questão de escala. Não é um edifício tão alto como o Sheraton, ao lado, e portanto optámos por um desenho mais miúdo. E tentar com isso dar-lhe uma verticalidade que na verdade o edifício não tem. O facto de se usar esse módulo exaustivamente também permite que haja pequenas nuances, o que nos agrada. Não é genérico, é um módulo que se adapta à configuração do edifício. Há uma microescala que o Thalia tem e é repetida aqui. Tem a ver com a nossa prática.
DSL – Uma coisa muito curiosa neste processo, sobretudo do labor do projecto propriamente dito, é a aposta ser toda na pele e num conjunto de núcleos. É um exercício de arquitectura no seu estado mais puro porque se consegue isolar completamente os parâmetros. Que depois têm consequências gigantes. Esta questão da serialidade e da repetição é um futuro para a arquitectura. Há hoje um tipo de autoria altamente prestigiada, vamos pensar em figuras como o Studio Mumbai ou o Peter Zumthor, que estão minados por contradições internas que comprometem a integridade da obra a um certo nível. Há indícios aqui e noutros lugares, e já não é de agora, de pessoas que estão empenhadas numa arquitectura mais científica, por assim dizer.
A polémica gerada expôs uma cultura que não é amiga dos edifícios em altura…
PB - Isso é uma questão histórica em Lisboa. Antes de nós há imensos casos: o Siza em Alcântara, o Foster em Santos... Mesmo com o Sheraton foi aberta uma excepção para se poder construir aquele conjunto.
DSL – Há dois aspectos que correm em paralelo. Por um lado, uma resistência da cultura portuguesa e em particular desta cidade ao moderno, por não ter passado por ele, como aconteceu no centro da Europa após a Segunda Guerra Mundial. É curioso o caso do Franjinhas do Teotónio Pereira, hoje um edifício classificado, que deu uma imensa polémica com a campanha dos “mamarrachos” no Diário Popular. Na altura, o João Gaspar Simões fez uma diatribe contra o Franjinhas, violentíssima, por oposição à nostalgia, já perdida obviamente, das avenidas novas. Há uma falta de preparação para uma certa cultura moderna. E depois tudo se precipitou muito rapidamente nos anos 1980 e 1990, de outra forma, pelo consumo. O que nós temos bem presente quando estamos envolvidos numa coisa deste gabarito é que a cidade em determinados momentos precisa de uma arquitectura que seja o espelho de uma época. Este espelho não acontece naturalmente e por isso há uma certa violência nestes gestos. Mas por estarmos envolvidos neste processo, ficamos completamente convictos de que a arquitectura daqui para a frente não pode ser só umas pequenas intervenções de carácter participativo. A arquitectura está inevitavelmente vinculada à grande forma da cidade. Os protestos que hoje existem e também aconteceram no caso deste projecto, não querendo desrespeitar o campo de convicções das pessoas, são mecanismos de escape para um problema muito maior que é o da não participação na vida pública da cidade.
A polémica sobre o projecto envolveu referências à criação de “barreiras à circulação dos ventos”…
PB – Um projecto desta dimensão é um trabalho de uma equipa interdisciplinar. O resultado não é um capricho dos arquitectos mas um gesto preciso que é informado por todas as especialidades, desde os conceitos bioclimáticos à estrutura. O LNEC também faz parte desta equipa para a execução de diversos ensaios incluindo testes em túnel de vento.
DSL – Não se podem tratar assuntos desta complexidade e escala com soundbytes. Houve apresentações públicas do projecto e o seu processo está disponível para consulta no site da CML. Acreditamos que estes procedimentos contribuem para um pensamento crítico. A arquitectura, afinal de contas, deve ser uma actividade edificante.
O livro da melancolia
Diogo, na tese de doutoramento agora transposta para este livro, Melancholy and Architecture. On Aldo Rossi, apareceu primeiro o tema da melancolia ou do Aldo Rossi?
DSL – Creio que apareceu primeiro o tema da melancolia. Quando me confrontei com a necessidade e a vontade de fazer um doutoramento, a primeira ideia que me surgiu foi a de fazer alguma coisa em relação a um determinado sentido de perda, do início dos anos 1970. Que era mais vasto do que a arquitectura e estava ligado àquilo que se chamou em Itália “os anos de chumbo”. Até que ponto essa conjuntura teria influenciado a arquitectura que se fez nessa época. Com isto havia uma preocupação metodológica de extravasar o campo da arquitectura e questionar até que ponto a historiografia da arquitectura não elimina do seu processo estes outros factores. Não era objectivamente a questão da melancolia mas no fundo estava muito próxima disso. Quando fiz as primeiras propostas para Zurique, para o meu orientador [Vittorio Lampugnani], surgiu o nome do Aldo Rossi, numa altura em que ainda causava muita surpresa voltar a esse tema.
O livro faz um levantamento do conceito de melancolia e há uma ideia que paira, a de que os melancólicos têm a melhor percepção do mundo...
DSL – Exacto, isso depois ficou mais claro com a investigação. Eu fiz quase duas investigações em paralelo. Comecei com a melancolia, porque no fundo a estrutura da tese é dedutiva: partir de uma hipótese geral e depois particularizar. E constatei que em vários momentos da história, a melancolia era pintada dessa forma. Como uma consciência aguda, crítica, da realidade, que atravessa a história da cultura ocidental porque é também um conceito muito popular. E que está em todos nós, potencialmente. Desde Aristóteles até ao Walter Benjamin há a recorrência dessa impressão.
É interessante que alguém ligado a problemas da contemporaneidade tenha decidido estudar o Aldo Rossi, porque me parece que há uma parede entre o nosso tempo e o tempo do Rossi. Haverá contaminações?
DSL – Sim, essa parede contribui para o próprio tema da melancolia. O Aldo Rossi interessava-me porque não é um tema estritamente do passado ou histórico, ainda partilhámos tempos de vida. Muitas vezes refere-se a objectos que também conhecemos bem, certos filmes ou certos livros. Mas já é um tema suficientemente distante para termos acesso a fontes classificadas. Por outro lado há uma estranha familiaridade, também fruto do protagonismo do Rossi. E finalmente queria entender o Rossi numa perspectiva de uma sociologia da profissão, numa arqueologia do star-system. Aquilo que eu defendo é que o Rossi é o primeiro de uma geração de estrelas globais, em meios de propagação não tão rápidos como os de hoje. E tentar perceber, através do caso dele, quais é que são as angústias, os dilemas e as contradições desse star-system.
O Rossi enfrenta a crise da arquitectura com um recentramento da disciplina; na crise actual, a arquitectura é o alvo a abater…
DSL – Este processo de investigação também foi um processo de formação como arquitecto, que tem uma prática. Fez crescer em mim a convicção quanto à necessidade absoluta desse recentramento disciplinar, agora com outros dados e outras ferramentas culturais. A atitude típica do Rossi, algo exacerbada, mesmo histerizada, de uma autoria, que é necessariamente um programa culturalista, não pode ser descartada nos nossos dias num qualquer futuro da profissão. Não sendo a única coisa, não pode ser descartada em função de um discurso muito banal, ou que tende a ser bastante banal, sobre as maleitas do arquitecto-autor.
A programação, o “processo” e o activismo que hoje em dia se veiculam são modos de entender a arquitectura profundamente não-melancólicos…
DSL – Exactamente. Mas eu acho que isso é um sinal dos tempos, em que tudo tem de ser comportamental e esse crivo não admite a disrupção da melancolia. É por isso que a melancolia é potencialmente interessante como matéria de trabalho, porque é uma ruptura em relação a um paradigma taylorista, mecanicista. Mas ao mesmo tempo comporta uma série de riscos, que no caso do Rossi ficaram claros.
Mais do que o “fim da arquitectura”, o Rossi representa talvez uma etapa final dos vários ciclos do classicismo (antiguidade, renascimento, iluminismo). Mesmo que partilhemos em parte o mesmo tempo, o nosso tempo já não se revê no classicismo que Rossi tenta renegociar...
DSL – Eu não me identifico nada com o argumento do “fim da arquitectura”. É óbvio que a arquitectura continuará e acho que há hoje desenvolvimentos geracionais, obviamente fragmentados, que indiciam um novo interesse e novas metodologias pelo cerne da disciplina e da história da arquitectura. Acho que isso se está neste momento a passar, particularmente na Europa.
Mas já não com referência a um classicismo que o Aldo Rossi ainda exercitou...
DSL – Não num sentido de um exercício sobre um léxico, mas o sentimento de perda que ele acabou por expressar, uma certa falta de unidade entre o arquitecto e a arquitectura, acho que há toda uma arqueologia de reflexão a fazer sobre isso. Nesse aspecto, o contributo do Adolf Loos é bastante importante. É uma espécie de renegado que depois foi pintado de outra forma. Há já múltiplos momentos da história da arquitectura e da cultura, pelo menos do século XIX em diante, o Baudelaire é um bom exemplo, em que é expressa uma inquietação por este fim de uma qualquer ilusão sobre uma unidade que reporta a um ideal clássico.
No livro é clara a passagem de um voluntarismo inicial de Rossi para um programa autobiográfico, o que se poderia definir como a passagem de uma melancolia activa para uma melancolia passiva. Só na conclusão do livro surge a fase que se abre a partir dos anos 1980, em que as obras quadruplicam. Não há nada a descobrir nesse caminho de perdição que se abre aí?
DSL – Eu acho que há, e há conteúdos e projectos que pessoalmente aprecio, não os tratei com detalhe na conclusão porque me interessava apenas isolar um ou outro. A dada altura deste trabalho comecei a reparar que havia um renovado interesse pela obra do Aldo Rossi. Mas sobretudo em termos da produção académica pareceu-me que aquilo que estava a ser feito era uma vista muito parcial do contributo do Rossi. Os anos 1960 como os anos “heróicos”, quase transpondo uma lógica modernista. A mim interessava-me pôr em contraposição dois objectos que eram completamente diferentes, essa melancolia activa e melancolia passiva, que se cristalizam na Arquitectura da Cidade [1966] e na Autobiografia Científica [1981]. É uma espécie de mistério como é que um autor produz dois livros tão diferentes e que num certo sentido se anulam, em termos de método. O que contribuiu para a decisão de correr os arquivos todos, porque eu quis ter uma impressão completa e panorâmica do percurso do Rossi. Não apenas os anos “heróicos” mas também os outros. Porque o meu argumento jogava nesse balanço. E até ao fim há uma inquietação no Rossi, nos projectos e textos, ainda que muitos desses textos não sejam públicos, que é relevante e que é crítica.
No sentido em que ele continuava a pensar e a sentir, mesmo que houvesse já um desfasamento qualquer…
DSL – Exacto, continua a pensar e a reagir à cidade. Mas é de facto uma reacção muito pessimista e ensimesmada que coloca a questão da operatividade da sua arquitectura. Porque em limite não se pode ter uma crise de melancolia e fazer arquitectura.
O caso de estudo que tratas no livro é o cemitério de Modena. O cemitério dá-nos as respostas ou permite fazer as perguntas fundamentais sobre o Rossi?
DSL – Acho que sim. É um projecto em que o Rossi leva ao limite uma certa forma de estar na vida, brutalmente obcecada com a morte. Nesse aspecto, na sua formulação de projecto enquanto tese, trata de facto sobre uma espécie de tabu da idade moderna que é a morte. A morte como ruptura ou fim de um ciclo de produção. E ele faz isso de uma forma extremamente provocatória e polémica e difícil para todos. Não é fácil visitar e formular um juízo empático com aquele sítio. O que tentei fazer foi eliminar esse problema da empatia e fazer uma micro-história do projecto e uma interpretação assente em fontes históricas. O Rossi, com o cemitério, inscreve-se naquele raciocínio, mais uma vez do Loos, que só no monumento e no túmulo é que a arquitectura é arte. Comparando com alguns contemporâneos do Rossi, como o cemitério de Brion, do Carlo Scarpa, é completamente diferente, não oferece qualquer tipo de consolo ou de redenção, é um espelho da morte industrializada tal como ela verdadeiramente é. Mas isso não quer dizer que seja o melhor contrato com uma sociedade para fazer face à morte.
Ao mesmo tempo que o Rossi está a fazer o cemitério de Modena e depois a tentar “esquecer a arquitectura”, está-se a erguer uma figura chamada Rem Koolhaas, que pega nos cacos e relança-os para o século XXI. O Koolhaas é um anti-melancólico radical…
DSL – Isso tem a ver com biografia dele, há um aspecto antropológico e cultural. O Rossi mesmo com o seu fascínio pelo norte é claramente um homem do sul, faz parte de uma geração que se seguiu ao pós-guerra, com dúvidas mas também com convicções. O Koolhaas é um homem do norte. Um norte que pode ser bastante impiedoso no seu pragmatismo, no seu calvinismo, e que representa o arquitecto possível de uma idade pós-humanista. É uma solução natural por antinomia.
Numa passagem do livro, o sprawl urbano é relacionado com o spleen, no sentido de que a cidade e a melancolia cresceram em paralelo. A questão da cidade foi superada, como não tendo remédio. A melancolia não estará hoje sem objecto?
DSL – Como qualquer artefacto ou bem material da idade moderna e capitalista, a melancolia ela própria, mesmo tendo em conta o seu factor disruptivo, pode ser domesticada por uma lógica de mercantilização. Aquilo que se passa é que deixou de haver um discurso cultural suficientemente forte para, tendo em conta os possíveis riscos mas também os ganhos, advogar um estado de espírito melancólico como forma de consciência superior ou crítica. E isso tudo passou a ser mais uma vez gerido por um crivo comportamental e medicalizado. Voltámos outra vez ao fim do século XIX, antes do Freud. Gere-se no domínio privado e com registo de vergonha e estritamente medicalizado.
A melancolia regressou a uma esfera privada e não enquanto produção cultural...
DSL – Exacto. Obviamente há exemplos e houve exposições que trataram isso, nas artes. Mas na arquitectura parece-me que esta seria uma possibilidade, a melancolia não como uma coisa puramente expressiva ou formal, mas como um discurso sobre o mundo, tingido por esse sentimento e por essa ideia. Acho que não há espaço hoje para esse tipo de reflexão ou de meditação construída, para essas dúvidas.
O livro está escrito em inglês, é publicado em Zurique, é sobre o Aldo Rossi. Tem apenas uma referência a Portugal, que é a epígrafe com uma citação do Livro do Desassossego. Os melhores pensadores em Portugal sempre pensaram sobre Portugal. Há aqui uma ruptura assumida?
DSL – Acho que a questão da epígrafe é muito importante, é curta mas é primeira coisa que se lê, e foi a minha forma de vincar a minha proveniência e a minha origem, a minha casa e o meu país. Quanto ao resto foi fruto do processo. Mas de facto, desde o princípio, o processo era centrífugo porque queria ter outra margem de manobra, outro campo de acção e de pensamento. Mas estamos irredutivelmente aqui e por outros meios tentamos também ter uma participação activa nos locais.
Será este o momento dos nossos autores e críticos se libertarem da inevitabilidade de pensarem sobre nós?
DSL – Acho que sim, acho que é uma consequência da democracia em Portugal, mesmo muito mal tratada como está, e de outros acontecimentos nomeadamente tecnológicos que vieram franquear muitas portas. E, já agora, uma delas e importantíssima foi o programa de bolsas desenvolvido pelo Mariano Gago na Fundação para a Ciência e Tecnologia, um programa que está a ser desmantelado. Eu devo também este trabalho a esse programa, que possibilitou uma outra relação dos portugueses com o mundo. Cronicamente há uma certa escassez de massa crítica ou de recursos para alimentar essa massa crítica. Isso por sua vez produz uma série de vícios de funcionamento que podem cercear a carreira intelectual ou mental das pessoas. Não é uma coisa tipo Thomas Bernard na sua relação com a Áustria de ódio puro, mas o facto, por exemplo, de ter feito estas piscinas entre duas cidades tão diferentes como Lisboa e Zurique permitiu-me dar o devido valor às especificidades de cada uma.
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Diogo Seixas Lopes e Patrícia Barbas são um casal e uma parceria num atelier que funciona numa antiga garagem na zona de Campo de Ourique, em Lisboa. É um espaço ainda habitado por iconografia do antigo inquilino, recortado por uma cortina branca que desenha o saguão quadrangular. Às fotografias na parede de outras eras mecânicas juntam-se os computadores, os livros e as maquetes.
Deste lugar incomum saiu o projecto para uma torre de escritórios na esquina da Fontes Pereira de Melo com a Avenida 5 de Outubro, que acendeu uma polémica em Lisboa.
Entretanto, Diogo Seixas Lopes defendeu a tese de doutoramento na ETH Zurique que agora está publicada em livro, Melancholy and Architecture. On Aldo Rossi.
A torre e o livro remetem para uma “arquitectura científica”, no rigor com que o atelier quer erguer o edifício e no modo como Diogo Seixas Lopes fala e escreve sobre arquitectura. Diz-nos que a “serialidade e a repetição podem ser um futuro da profissão” e que “a autoria não pode ser descartada em função de um discurso muito banal sobre as maleitas do arquitecto-autor”.
Apesar da crise, as condições da arquitectura em Portugal continuam a permitir que, em Lisboa, um pequeno atelier como o vosso projecte um edifício desta envergadura…
PB – Essa foi uma opção que não é normalmente tomada pelos promotores para um edifício com esta escala e visibilidade. A questão do concurso e a forma como foi montado com o convite a sete equipas da mesma geração foi uma surpresa para nós porque não é usual. Este tipo de encomenda normalmente não está sujeita a concursos e é sempre entregue ao mesmo tipo de empresas de arquitectura.
Depois do Teatro Thalia como é que se projecta uma torre? É um exercício difícil…
PB – Nós encaramos qualquer projecto como um exercício de arquitectura, seja fazer a requalificação das ruínas do Teatro Thalia seja desenhar um edifício de escritórios. Não sentimos que estivéssemos a fazer uma coisa completamente diferente ou fora da nossa pele. É um exercício que inclui também uma intervenção no espaço urbano e isso é muito estimulante. Como também é projectarmos para a cidade onde vivemos e exercemos a profissão.
Uma torre coloca o problema da percepção à distância e da modulação que assumiram como tema…
PB – Propomos um módulo pequeno até por uma questão de escala. Não é um edifício tão alto como o Sheraton, ao lado, e portanto optámos por um desenho mais miúdo. E tentar com isso dar-lhe uma verticalidade que na verdade o edifício não tem. O facto de se usar esse módulo exaustivamente também permite que haja pequenas nuances, o que nos agrada. Não é genérico, é um módulo que se adapta à configuração do edifício. Há uma microescala que o Thalia tem e é repetida aqui. Tem a ver com a nossa prática.
DSL – Uma coisa muito curiosa neste processo, sobretudo do labor do projecto propriamente dito, é a aposta ser toda na pele e num conjunto de núcleos. É um exercício de arquitectura no seu estado mais puro porque se consegue isolar completamente os parâmetros. Que depois têm consequências gigantes. Esta questão da serialidade e da repetição é um futuro para a arquitectura. Há hoje um tipo de autoria altamente prestigiada, vamos pensar em figuras como o Studio Mumbai ou o Peter Zumthor, que estão minados por contradições internas que comprometem a integridade da obra a um certo nível. Há indícios aqui e noutros lugares, e já não é de agora, de pessoas que estão empenhadas numa arquitectura mais científica, por assim dizer.
A polémica gerada expôs uma cultura que não é amiga dos edifícios em altura…
PB - Isso é uma questão histórica em Lisboa. Antes de nós há imensos casos: o Siza em Alcântara, o Foster em Santos... Mesmo com o Sheraton foi aberta uma excepção para se poder construir aquele conjunto.
DSL – Há dois aspectos que correm em paralelo. Por um lado, uma resistência da cultura portuguesa e em particular desta cidade ao moderno, por não ter passado por ele, como aconteceu no centro da Europa após a Segunda Guerra Mundial. É curioso o caso do Franjinhas do Teotónio Pereira, hoje um edifício classificado, que deu uma imensa polémica com a campanha dos “mamarrachos” no Diário Popular. Na altura, o João Gaspar Simões fez uma diatribe contra o Franjinhas, violentíssima, por oposição à nostalgia, já perdida obviamente, das avenidas novas. Há uma falta de preparação para uma certa cultura moderna. E depois tudo se precipitou muito rapidamente nos anos 1980 e 1990, de outra forma, pelo consumo. O que nós temos bem presente quando estamos envolvidos numa coisa deste gabarito é que a cidade em determinados momentos precisa de uma arquitectura que seja o espelho de uma época. Este espelho não acontece naturalmente e por isso há uma certa violência nestes gestos. Mas por estarmos envolvidos neste processo, ficamos completamente convictos de que a arquitectura daqui para a frente não pode ser só umas pequenas intervenções de carácter participativo. A arquitectura está inevitavelmente vinculada à grande forma da cidade. Os protestos que hoje existem e também aconteceram no caso deste projecto, não querendo desrespeitar o campo de convicções das pessoas, são mecanismos de escape para um problema muito maior que é o da não participação na vida pública da cidade.
A polémica sobre o projecto envolveu referências à criação de “barreiras à circulação dos ventos”…
PB – Um projecto desta dimensão é um trabalho de uma equipa interdisciplinar. O resultado não é um capricho dos arquitectos mas um gesto preciso que é informado por todas as especialidades, desde os conceitos bioclimáticos à estrutura. O LNEC também faz parte desta equipa para a execução de diversos ensaios incluindo testes em túnel de vento.
DSL – Não se podem tratar assuntos desta complexidade e escala com soundbytes. Houve apresentações públicas do projecto e o seu processo está disponível para consulta no site da CML. Acreditamos que estes procedimentos contribuem para um pensamento crítico. A arquitectura, afinal de contas, deve ser uma actividade edificante.
O livro da melancolia
Diogo, na tese de doutoramento agora transposta para este livro, Melancholy and Architecture. On Aldo Rossi, apareceu primeiro o tema da melancolia ou do Aldo Rossi?
DSL – Creio que apareceu primeiro o tema da melancolia. Quando me confrontei com a necessidade e a vontade de fazer um doutoramento, a primeira ideia que me surgiu foi a de fazer alguma coisa em relação a um determinado sentido de perda, do início dos anos 1970. Que era mais vasto do que a arquitectura e estava ligado àquilo que se chamou em Itália “os anos de chumbo”. Até que ponto essa conjuntura teria influenciado a arquitectura que se fez nessa época. Com isto havia uma preocupação metodológica de extravasar o campo da arquitectura e questionar até que ponto a historiografia da arquitectura não elimina do seu processo estes outros factores. Não era objectivamente a questão da melancolia mas no fundo estava muito próxima disso. Quando fiz as primeiras propostas para Zurique, para o meu orientador [Vittorio Lampugnani], surgiu o nome do Aldo Rossi, numa altura em que ainda causava muita surpresa voltar a esse tema.
O livro faz um levantamento do conceito de melancolia e há uma ideia que paira, a de que os melancólicos têm a melhor percepção do mundo...
DSL – Exacto, isso depois ficou mais claro com a investigação. Eu fiz quase duas investigações em paralelo. Comecei com a melancolia, porque no fundo a estrutura da tese é dedutiva: partir de uma hipótese geral e depois particularizar. E constatei que em vários momentos da história, a melancolia era pintada dessa forma. Como uma consciência aguda, crítica, da realidade, que atravessa a história da cultura ocidental porque é também um conceito muito popular. E que está em todos nós, potencialmente. Desde Aristóteles até ao Walter Benjamin há a recorrência dessa impressão.
É interessante que alguém ligado a problemas da contemporaneidade tenha decidido estudar o Aldo Rossi, porque me parece que há uma parede entre o nosso tempo e o tempo do Rossi. Haverá contaminações?
DSL – Sim, essa parede contribui para o próprio tema da melancolia. O Aldo Rossi interessava-me porque não é um tema estritamente do passado ou histórico, ainda partilhámos tempos de vida. Muitas vezes refere-se a objectos que também conhecemos bem, certos filmes ou certos livros. Mas já é um tema suficientemente distante para termos acesso a fontes classificadas. Por outro lado há uma estranha familiaridade, também fruto do protagonismo do Rossi. E finalmente queria entender o Rossi numa perspectiva de uma sociologia da profissão, numa arqueologia do star-system. Aquilo que eu defendo é que o Rossi é o primeiro de uma geração de estrelas globais, em meios de propagação não tão rápidos como os de hoje. E tentar perceber, através do caso dele, quais é que são as angústias, os dilemas e as contradições desse star-system.
O Rossi enfrenta a crise da arquitectura com um recentramento da disciplina; na crise actual, a arquitectura é o alvo a abater…
DSL – Este processo de investigação também foi um processo de formação como arquitecto, que tem uma prática. Fez crescer em mim a convicção quanto à necessidade absoluta desse recentramento disciplinar, agora com outros dados e outras ferramentas culturais. A atitude típica do Rossi, algo exacerbada, mesmo histerizada, de uma autoria, que é necessariamente um programa culturalista, não pode ser descartada nos nossos dias num qualquer futuro da profissão. Não sendo a única coisa, não pode ser descartada em função de um discurso muito banal, ou que tende a ser bastante banal, sobre as maleitas do arquitecto-autor.
A programação, o “processo” e o activismo que hoje em dia se veiculam são modos de entender a arquitectura profundamente não-melancólicos…
DSL – Exactamente. Mas eu acho que isso é um sinal dos tempos, em que tudo tem de ser comportamental e esse crivo não admite a disrupção da melancolia. É por isso que a melancolia é potencialmente interessante como matéria de trabalho, porque é uma ruptura em relação a um paradigma taylorista, mecanicista. Mas ao mesmo tempo comporta uma série de riscos, que no caso do Rossi ficaram claros.
Mais do que o “fim da arquitectura”, o Rossi representa talvez uma etapa final dos vários ciclos do classicismo (antiguidade, renascimento, iluminismo). Mesmo que partilhemos em parte o mesmo tempo, o nosso tempo já não se revê no classicismo que Rossi tenta renegociar...
DSL – Eu não me identifico nada com o argumento do “fim da arquitectura”. É óbvio que a arquitectura continuará e acho que há hoje desenvolvimentos geracionais, obviamente fragmentados, que indiciam um novo interesse e novas metodologias pelo cerne da disciplina e da história da arquitectura. Acho que isso se está neste momento a passar, particularmente na Europa.
Mas já não com referência a um classicismo que o Aldo Rossi ainda exercitou...
DSL – Não num sentido de um exercício sobre um léxico, mas o sentimento de perda que ele acabou por expressar, uma certa falta de unidade entre o arquitecto e a arquitectura, acho que há toda uma arqueologia de reflexão a fazer sobre isso. Nesse aspecto, o contributo do Adolf Loos é bastante importante. É uma espécie de renegado que depois foi pintado de outra forma. Há já múltiplos momentos da história da arquitectura e da cultura, pelo menos do século XIX em diante, o Baudelaire é um bom exemplo, em que é expressa uma inquietação por este fim de uma qualquer ilusão sobre uma unidade que reporta a um ideal clássico.
No livro é clara a passagem de um voluntarismo inicial de Rossi para um programa autobiográfico, o que se poderia definir como a passagem de uma melancolia activa para uma melancolia passiva. Só na conclusão do livro surge a fase que se abre a partir dos anos 1980, em que as obras quadruplicam. Não há nada a descobrir nesse caminho de perdição que se abre aí?
DSL – Eu acho que há, e há conteúdos e projectos que pessoalmente aprecio, não os tratei com detalhe na conclusão porque me interessava apenas isolar um ou outro. A dada altura deste trabalho comecei a reparar que havia um renovado interesse pela obra do Aldo Rossi. Mas sobretudo em termos da produção académica pareceu-me que aquilo que estava a ser feito era uma vista muito parcial do contributo do Rossi. Os anos 1960 como os anos “heróicos”, quase transpondo uma lógica modernista. A mim interessava-me pôr em contraposição dois objectos que eram completamente diferentes, essa melancolia activa e melancolia passiva, que se cristalizam na Arquitectura da Cidade [1966] e na Autobiografia Científica [1981]. É uma espécie de mistério como é que um autor produz dois livros tão diferentes e que num certo sentido se anulam, em termos de método. O que contribuiu para a decisão de correr os arquivos todos, porque eu quis ter uma impressão completa e panorâmica do percurso do Rossi. Não apenas os anos “heróicos” mas também os outros. Porque o meu argumento jogava nesse balanço. E até ao fim há uma inquietação no Rossi, nos projectos e textos, ainda que muitos desses textos não sejam públicos, que é relevante e que é crítica.
No sentido em que ele continuava a pensar e a sentir, mesmo que houvesse já um desfasamento qualquer…
DSL – Exacto, continua a pensar e a reagir à cidade. Mas é de facto uma reacção muito pessimista e ensimesmada que coloca a questão da operatividade da sua arquitectura. Porque em limite não se pode ter uma crise de melancolia e fazer arquitectura.
O caso de estudo que tratas no livro é o cemitério de Modena. O cemitério dá-nos as respostas ou permite fazer as perguntas fundamentais sobre o Rossi?
DSL – Acho que sim. É um projecto em que o Rossi leva ao limite uma certa forma de estar na vida, brutalmente obcecada com a morte. Nesse aspecto, na sua formulação de projecto enquanto tese, trata de facto sobre uma espécie de tabu da idade moderna que é a morte. A morte como ruptura ou fim de um ciclo de produção. E ele faz isso de uma forma extremamente provocatória e polémica e difícil para todos. Não é fácil visitar e formular um juízo empático com aquele sítio. O que tentei fazer foi eliminar esse problema da empatia e fazer uma micro-história do projecto e uma interpretação assente em fontes históricas. O Rossi, com o cemitério, inscreve-se naquele raciocínio, mais uma vez do Loos, que só no monumento e no túmulo é que a arquitectura é arte. Comparando com alguns contemporâneos do Rossi, como o cemitério de Brion, do Carlo Scarpa, é completamente diferente, não oferece qualquer tipo de consolo ou de redenção, é um espelho da morte industrializada tal como ela verdadeiramente é. Mas isso não quer dizer que seja o melhor contrato com uma sociedade para fazer face à morte.
Ao mesmo tempo que o Rossi está a fazer o cemitério de Modena e depois a tentar “esquecer a arquitectura”, está-se a erguer uma figura chamada Rem Koolhaas, que pega nos cacos e relança-os para o século XXI. O Koolhaas é um anti-melancólico radical…
DSL – Isso tem a ver com biografia dele, há um aspecto antropológico e cultural. O Rossi mesmo com o seu fascínio pelo norte é claramente um homem do sul, faz parte de uma geração que se seguiu ao pós-guerra, com dúvidas mas também com convicções. O Koolhaas é um homem do norte. Um norte que pode ser bastante impiedoso no seu pragmatismo, no seu calvinismo, e que representa o arquitecto possível de uma idade pós-humanista. É uma solução natural por antinomia.
Numa passagem do livro, o sprawl urbano é relacionado com o spleen, no sentido de que a cidade e a melancolia cresceram em paralelo. A questão da cidade foi superada, como não tendo remédio. A melancolia não estará hoje sem objecto?
DSL – Como qualquer artefacto ou bem material da idade moderna e capitalista, a melancolia ela própria, mesmo tendo em conta o seu factor disruptivo, pode ser domesticada por uma lógica de mercantilização. Aquilo que se passa é que deixou de haver um discurso cultural suficientemente forte para, tendo em conta os possíveis riscos mas também os ganhos, advogar um estado de espírito melancólico como forma de consciência superior ou crítica. E isso tudo passou a ser mais uma vez gerido por um crivo comportamental e medicalizado. Voltámos outra vez ao fim do século XIX, antes do Freud. Gere-se no domínio privado e com registo de vergonha e estritamente medicalizado.
A melancolia regressou a uma esfera privada e não enquanto produção cultural...
DSL – Exacto. Obviamente há exemplos e houve exposições que trataram isso, nas artes. Mas na arquitectura parece-me que esta seria uma possibilidade, a melancolia não como uma coisa puramente expressiva ou formal, mas como um discurso sobre o mundo, tingido por esse sentimento e por essa ideia. Acho que não há espaço hoje para esse tipo de reflexão ou de meditação construída, para essas dúvidas.
O livro está escrito em inglês, é publicado em Zurique, é sobre o Aldo Rossi. Tem apenas uma referência a Portugal, que é a epígrafe com uma citação do Livro do Desassossego. Os melhores pensadores em Portugal sempre pensaram sobre Portugal. Há aqui uma ruptura assumida?
DSL – Acho que a questão da epígrafe é muito importante, é curta mas é primeira coisa que se lê, e foi a minha forma de vincar a minha proveniência e a minha origem, a minha casa e o meu país. Quanto ao resto foi fruto do processo. Mas de facto, desde o princípio, o processo era centrífugo porque queria ter outra margem de manobra, outro campo de acção e de pensamento. Mas estamos irredutivelmente aqui e por outros meios tentamos também ter uma participação activa nos locais.
Será este o momento dos nossos autores e críticos se libertarem da inevitabilidade de pensarem sobre nós?
DSL – Acho que sim, acho que é uma consequência da democracia em Portugal, mesmo muito mal tratada como está, e de outros acontecimentos nomeadamente tecnológicos que vieram franquear muitas portas. E, já agora, uma delas e importantíssima foi o programa de bolsas desenvolvido pelo Mariano Gago na Fundação para a Ciência e Tecnologia, um programa que está a ser desmantelado. Eu devo também este trabalho a esse programa, que possibilitou uma outra relação dos portugueses com o mundo. Cronicamente há uma certa escassez de massa crítica ou de recursos para alimentar essa massa crítica. Isso por sua vez produz uma série de vícios de funcionamento que podem cercear a carreira intelectual ou mental das pessoas. Não é uma coisa tipo Thomas Bernard na sua relação com a Áustria de ódio puro, mas o facto, por exemplo, de ter feito estas piscinas entre duas cidades tão diferentes como Lisboa e Zurique permitiu-me dar o devido valor às especificidades de cada uma.