Para além da imagem
Entre o visível das artes figurativas e o dizível da poesia, há um espaço cheio de potencialidades onde se ergue, com enorme pujança, este livro de João Miguel Fernandes Jorge
segue um processo de engendramento comum a outros livros de João Miguel Fernandes Jorge (por exemplo,
Museu das Janelas Verdes, de 2002): exceptuando um poema em que “de repente irrompe a rua”, todos os outros se referem a figuras visuais (pinturas, esculturas, calcários, madeiras policromadas, etc.), nomeadas e datadas em notas de rodapé, que estão no Museu Nacional Machado de Castro, em Coimbra.
Mirleos, informa-nos o autor numa nota introdutória, “correspondeu ao antigo fórum romano, espaço onde se reconstruiu em 1807 a Igreja de S. João, sucedânea de anterior igreja. Sobre todas estas ruínas, englobando muitas delas, está hoje o Museu Nacional Machado de Castro”. Trata-se assim de um livro-catálogo, classificação que, no entanto, só o apreende à superfície. E se partirmos para a sua leitura com a ideia de que, dados os antecedentes, já sabemos qual é o resultado, somos obrigados a revê-la (a não ser que o preconceito se interponha) porque João Miguel Fernandes Jorge chega aqui ao mais elevado nível que alguma vez atingiu a sua poesia parcialmente ecfrástica (isto é, onde há um princípio, nunca exclusivo, de descrição das imagens).
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segue um processo de engendramento comum a outros livros de João Miguel Fernandes Jorge (por exemplo,
Museu das Janelas Verdes, de 2002): exceptuando um poema em que “de repente irrompe a rua”, todos os outros se referem a figuras visuais (pinturas, esculturas, calcários, madeiras policromadas, etc.), nomeadas e datadas em notas de rodapé, que estão no Museu Nacional Machado de Castro, em Coimbra.
Mirleos, informa-nos o autor numa nota introdutória, “correspondeu ao antigo fórum romano, espaço onde se reconstruiu em 1807 a Igreja de S. João, sucedânea de anterior igreja. Sobre todas estas ruínas, englobando muitas delas, está hoje o Museu Nacional Machado de Castro”. Trata-se assim de um livro-catálogo, classificação que, no entanto, só o apreende à superfície. E se partirmos para a sua leitura com a ideia de que, dados os antecedentes, já sabemos qual é o resultado, somos obrigados a revê-la (a não ser que o preconceito se interponha) porque João Miguel Fernandes Jorge chega aqui ao mais elevado nível que alguma vez atingiu a sua poesia parcialmente ecfrástica (isto é, onde há um princípio, nunca exclusivo, de descrição das imagens).
Mas não é apenas no interior da obra de João Miguel Fernandes Jorge que encontramos boas razões para erguer este livro a um nível superior. Na verdade ele faz-nos ver os efeitos fecundos de uma enorme liberdade discursiva, algo em que a poesia portuguesa actual — medida por este padrão— não é muito pródiga. Aqui, parece não haver nenhum dos constrangimentos a que obrigam os puritanismos que se manifestam sob as formas crispadas das várias “ideias” de poesia: não há reduções e unicidades temáticas, há divagação sem fronteiras; não há uma exposição da primeira pessoa, o Eu apaga-se e é exclusivamente a imagem que fala, se aceitarmos como válida a ideia de que estes poemas têm origem no processo que consiste em submeter o visível ao regime do dizível; e não há arrebatamentos ou lugares de tensão concentrada, nem fogos-de-artifício de qualquer espécie, porque a música é contínua, subtil, em baixo tom, mas não monótona. É, aliás, sob o signo da subtileza, da discreta arte de compor “cenas”, onde o narrativo e o descritivo se conjugam para alcançar um superior nível de elaboração, que devemos colocar esta poesia. Ela não procura o “grande estilo”, nem os pequenos estilos narcísicos, ausenta-se do enfático, das ironias, dos cinismos, das problemáticas do Eu e das suas obsessões, que tendem a reconduzir a poesia, mesmo a que se quer avessa a todo o lirismo, à esfera da pessoalidade. E — coisa admirável e de longo alcance — leva-nos por caminhos da imaginação, da faculdade de suscitar ou produzir representações, que raramente a poesia hoje nos oferece, numa época em que o romance parece ter sido o género que tomou a seu cargo as instâncias da fantasia (e chamamos aqui fantasia à faculdade das imagens, da imaginação), enquanto a poesia tendia a encerrar-se noutras virtudes poéticas mais reconhecíveis nos códigos epocais. Este livro ajuda-nos a perceber um paradoxo que habita muita poesia portuguesa actual: com frequência ela evoca e reinvidica o real, mas isso não obsta a que haja nela uma ausência de mundo, uma perda de cosmos. Ora, em Mirleos o horizonte alarga-se, o mundo expande-se. E, parodiando uma frase de René Char, vai-se pelo mundo através dos caminhos das obras de arte; e chega-se às forças activas do presente pelas relações que o poeta estabelece com a História. Uma das tarefas da poesia de João Miguel Fernandes Jorge é a de religar tempos e espaços diferentes, cruzar objectos determinados, praticar anacronias, instituir constelações. E isto transforma-se num grande exercício de liberdade. Há quanto tempo um livro de poesia não reclamava de maneira flagrante, como acontece neste, as faculdades da imaginação? E isto quer dizer: capacidade de nos libertar do peso e do fechamento do real, e consequente abertura do horizonte do conhecimento. Desengane-se, então, quem pense que os poemas deste livro estão limitados no seu horizonte pela figura visual de onde nascem. Experimentemos ler uma Pietà (e, formulando as coisas desta maneira, estamos a estabelecer uma relação entre o ver e o ler a que convida Mirleos): “O corpo não pertence à mãe/ é ainda domínio do filho morto. O/ corpo não se refere à natureza do divino/ somente ao homem é estreme —/ repouso de erro e ilusão sem os quais/ nenhuma arte sabe viver./ No corpo morto do filho não/ há som nem forma não há cor nem o/ olhar avança pouco a pouco p’/ lo interior das coisas. Indiferente/ a todo o interesse// o corpo morto é agora, ainda mais,/ abismo por revelar dos mundos/ alvo sempre em movimento. Choro/ sem visagem uma vela ilumina/ em clarão descuidoso, picado a fumo.// A mãe, pertença desse filho no abandono/ do corpo —/ na feroz dor repousa a/ natureza que vem do espírito/ sem a qual nenhuma arte sabe morrer.”
Não seria necessário recorrer a esta Pietà para percebermos que os poemas tocam muitas vezes o sinistro e o inquietante, mas sempre sem grande ruído, no mesmo movimento subtil com que se aventuram pelos caminhos da imaginação e rejeitam todas as “poses”, ganhando as qualidades da transparência e da sobriedade que nada vem perturbar. Este livro é o resultado não apenas desse exercício de liberdade, que abre à poesia um vasto horizonte de possibilidades, mas também de uma enorme capacidade de fazer falar as imagens. Não aquela competência iconológica, aprendida com um Panofsky, mas uma competência propriamente poética, que sabe muito bem que há uma radical heterogeneidade entre o visual e o verbal; e que toda a imagem é, afinal in-fans, não fala, e aquilo que se vê não está nunca naquilo que se diz. É dessa irredutibilidade que nascem estes poemas. É certo que eles não são alheios ao exercício da écfrase, da descrição das imagens, mas há neles muito mais do que isso. Narrar a imagem, traduzir a imagem, imaginar a imagem: muitos são os modos de fazer resplandecer as figuras na sintaxe dos versos, libertas das limitações da visão, de modo a construir uma sucessão discursiva que é de outra ordem. O poeta não é nem quer ser um iconólogo nem um historiador da arte, mas um inventor de cenas de uma grande sensibilidade, criadoras de mundos e determinadas por um princípio narrativo que se suspende para se abrir ao ilimitado da poesia, com uma destinação profundamente incerta. A poesia dá-se então como uma arte de ler e imaginar, perante uma matéria — a sua “matéria de Bretanha” — que solicita quase sempre uma de duas atitudes: a contemplação muda ou analfabeta; ou a estridência verbal do saber disciplinado.