O bafo do dragão
Kazuo Ishiguro desperdiça a sua escrita imaculada num romance caótico.
Axl e Beatrice, um casal com uma idade já avançada, decidem deixar para trás a sua comunidade e viajar em busca de um filho há muito perdido. Depois dos necessários preparativos, lançam-se à aventura, apoiados um no outro e nos seus cajados de caminhantes. As terras que atravessam são inóspitas, agrestes, desoladas e cheias de perigos. Encontram pessoas que se mostram indiferentes, hospitaleiras ou ameaçadoras. A viagem não é linear nem agradável, os obstáculos surgem constantemente, é necessário procurar abrigo, encontrar comida. Os costumes, normas e rituais dos que vão encontrando pelo caminho são diferentes, incompreensíveis. Axl e Beatrice, cristãos em terras pagãs, estão estreitamente ligados por uma força (o amor, a fé?) que os impele nesta viagem que serve de fio condutor a O Gigante Enterrado, o mais recente romance de Kazuo Ishiguro — uma saga épica, facilmente encarada como um pastiche da obra de Tolkien e da sua literatura fantástica com raízes folclóricas, não fosse a espartilhada contenção narrativa minimalista deste escritor inglês nascido em Nagasáqui em 1954.
A aventura de Axl e Beatrice poderia, também, ter algo em comum com as demandas de Marco Polo ou de Fernão Mendes Pinto, com a sua saborosa mistura de factos reais e inventados, estranhas aparições e animais fantásticos, num universo simultaneamente novo, para eles, e demasiado antigo, para nós, revelado à medida dos passos dados por esta versão idosa de Romeu e Julieta. Ishiguro escolheu como cenário uma Grã-Bretanha pós-arturiana, ocupada por saxões e bretões — regressados às suas querelas depois da fugaz pacificação levada a cabo pelos cavaleiros da Távola Redonda —, ameaçada por ogres, feiticeiros e feiticeiras, cavaleiros, monges demoníacos e sábios descendentes de Merlim, em que um dragão, Querig, é a causa do mal maior que assola aquelas terras: o seu bafo apaga a memória daqueles que o respiram.
Esta ideia da “névoa” que produz o esquecimento e potencia a confusão na memória (é possível que os especialistas em patologias do cérebro descubram, neste livro, indícios semelhantes aos dos pacientes com Alzheimer) é mais um dos artifícios de Ishiguro para criar cenários deslocados da realidade e personagens presas de confusão e de uma incapacidade para discorrer e reagir, paralisadas por ameaças mais ou menos veladas que não lhes permitem a clareza da experiência, da maturidade. No extraordinário Nunca me Deixes (2005), onde o escritor colocava em debate a questão da clonagem, assiste-se ao desenrolar de um processo terrífico de “criação” de crianças e de jovens que aceitam fatalisticamente o seu destino, o de serem mortas para fornecerem órgãos aos “bons” cidadãos britânicos. Recorde-se, ainda, o mordomo Stephens, de Os Despojos do Dia (1989), que mantém um controlo rigoroso das emoções, escondidas por trás de um cenário construído por regras fantasistas como as dos jogos infantis do “faz-de-conta”, tal como acontece em Quando Éramos Órfãos (2000), em que o detective Christopher Banks assenta a sua reputação numa quimera.
Em O Gigante Enterrado o texto desenrola-se num tom de devaneio, ao correr de um tempo sem referências. A paisagem tem uma grande importância — que Inglaterra é aquela, tão desolada, sem prados verdes nem caminhos entre sebes floridas? —, tal como determinantes são certas referências surpreendentes, como a do encontro de Axl e Beatrice com diversas personagens que evocam lendas e mitos bem conhecidos: o pérfido Brennus assemelha-se ao xerife de Nottingham, e a floresta bem poderia ser a de Sherwood; o jovem Edwin, como tantos outros seres especiais, Harry Potter incluído, é possuidor de uma marca indelével no corpo; Sir Wistan é um destemido e imprudente cavaleiro que tem dificuldade em saber qual o seu propósito; e Sir Gawain, sobrinho do rei Artur, é uma relíquia do passado, descarnado, a armadura ferrugenta, com dificuldade em movimentar-se, montado numa pileca de nome Horace que compete em decadência com Rocinante, eternamente condenado a deambular em busca de feitos improváveis, e que evoca, evidentemente, Dom Quixote. (Um dos melhores momentos do romance acontece quando Sir Gawain tem um encontro extremamente incómodo com um grupo de “viúvas”, arrepiantemente parecidas com as bruxas do Macbeth shakesperiano.)
Ishiguro parece querer encenar uma pantomima aparentemente ingénua, onde introduz a sua bem conhecida ironia subtilíssima, (como fez no kafkiano Os Inconsolados), com referências, comicamente deturpadas, a outros momentos marcantes da literatura universal (as “provas de amor” a que são sujeitos os amantes ao atravessarem um rio semelhante ao Lethes nas mãos de um sinistro barqueiro, tal como acontece nos romances de cavalaria; os monges satânicos que parecem saídos de O Nome da Rosa de Umberto Eco, etc.), como se houvesse a intenção de avivar a memória para outros textos, em vários estratos temporais, e para a finalidade primeira da escrita, isto é, o exercício da imaginação.
De salientar, ainda, outro (falso) paradoxo relacionado, também, com a questão da memória, esse “gigante enterrado” nas convulsões da História: um ser humano ou uma comunidade que esquecem estão condenados à inércia e à escuridão (como Axl e Beatrice na caverna da sua aldeia); a tentativa de recuperar o passado impulsiona a acção, mas esta não é isenta de perigos. Por outro lado, o esquecimento preserva, supostamente, a paz e a concórdia (os saxões e os bretões já não recordam o motivo das suas lutas, o casal não discute porque não reconhece os motivos de eventuais discórdias, etc.). Ishiguro coloca Axl e Beatrice como heróis determinados, contrariando personagens como o pintor Ono em An Artist of the Floating World (1986), ou, de novo, Stephens em Os Despojos do Dia — narradores não fiáveis, reprimidos por infames segredos do passado (os “dragões” e ogres atávicos) e incapazes de os enfrentar. Resta acrescentar que O Gigante Enterrado, com a sua escrita imaculada, tão delicada quanto a caligrafia japonesa, peca por se perder em longos devaneios, tão opacos quanto os dos antigos bretões e saxões, num universo caótico e, no final, tristemente enredado em divagações insondáveis.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Axl e Beatrice, um casal com uma idade já avançada, decidem deixar para trás a sua comunidade e viajar em busca de um filho há muito perdido. Depois dos necessários preparativos, lançam-se à aventura, apoiados um no outro e nos seus cajados de caminhantes. As terras que atravessam são inóspitas, agrestes, desoladas e cheias de perigos. Encontram pessoas que se mostram indiferentes, hospitaleiras ou ameaçadoras. A viagem não é linear nem agradável, os obstáculos surgem constantemente, é necessário procurar abrigo, encontrar comida. Os costumes, normas e rituais dos que vão encontrando pelo caminho são diferentes, incompreensíveis. Axl e Beatrice, cristãos em terras pagãs, estão estreitamente ligados por uma força (o amor, a fé?) que os impele nesta viagem que serve de fio condutor a O Gigante Enterrado, o mais recente romance de Kazuo Ishiguro — uma saga épica, facilmente encarada como um pastiche da obra de Tolkien e da sua literatura fantástica com raízes folclóricas, não fosse a espartilhada contenção narrativa minimalista deste escritor inglês nascido em Nagasáqui em 1954.
A aventura de Axl e Beatrice poderia, também, ter algo em comum com as demandas de Marco Polo ou de Fernão Mendes Pinto, com a sua saborosa mistura de factos reais e inventados, estranhas aparições e animais fantásticos, num universo simultaneamente novo, para eles, e demasiado antigo, para nós, revelado à medida dos passos dados por esta versão idosa de Romeu e Julieta. Ishiguro escolheu como cenário uma Grã-Bretanha pós-arturiana, ocupada por saxões e bretões — regressados às suas querelas depois da fugaz pacificação levada a cabo pelos cavaleiros da Távola Redonda —, ameaçada por ogres, feiticeiros e feiticeiras, cavaleiros, monges demoníacos e sábios descendentes de Merlim, em que um dragão, Querig, é a causa do mal maior que assola aquelas terras: o seu bafo apaga a memória daqueles que o respiram.
Esta ideia da “névoa” que produz o esquecimento e potencia a confusão na memória (é possível que os especialistas em patologias do cérebro descubram, neste livro, indícios semelhantes aos dos pacientes com Alzheimer) é mais um dos artifícios de Ishiguro para criar cenários deslocados da realidade e personagens presas de confusão e de uma incapacidade para discorrer e reagir, paralisadas por ameaças mais ou menos veladas que não lhes permitem a clareza da experiência, da maturidade. No extraordinário Nunca me Deixes (2005), onde o escritor colocava em debate a questão da clonagem, assiste-se ao desenrolar de um processo terrífico de “criação” de crianças e de jovens que aceitam fatalisticamente o seu destino, o de serem mortas para fornecerem órgãos aos “bons” cidadãos britânicos. Recorde-se, ainda, o mordomo Stephens, de Os Despojos do Dia (1989), que mantém um controlo rigoroso das emoções, escondidas por trás de um cenário construído por regras fantasistas como as dos jogos infantis do “faz-de-conta”, tal como acontece em Quando Éramos Órfãos (2000), em que o detective Christopher Banks assenta a sua reputação numa quimera.
Em O Gigante Enterrado o texto desenrola-se num tom de devaneio, ao correr de um tempo sem referências. A paisagem tem uma grande importância — que Inglaterra é aquela, tão desolada, sem prados verdes nem caminhos entre sebes floridas? —, tal como determinantes são certas referências surpreendentes, como a do encontro de Axl e Beatrice com diversas personagens que evocam lendas e mitos bem conhecidos: o pérfido Brennus assemelha-se ao xerife de Nottingham, e a floresta bem poderia ser a de Sherwood; o jovem Edwin, como tantos outros seres especiais, Harry Potter incluído, é possuidor de uma marca indelével no corpo; Sir Wistan é um destemido e imprudente cavaleiro que tem dificuldade em saber qual o seu propósito; e Sir Gawain, sobrinho do rei Artur, é uma relíquia do passado, descarnado, a armadura ferrugenta, com dificuldade em movimentar-se, montado numa pileca de nome Horace que compete em decadência com Rocinante, eternamente condenado a deambular em busca de feitos improváveis, e que evoca, evidentemente, Dom Quixote. (Um dos melhores momentos do romance acontece quando Sir Gawain tem um encontro extremamente incómodo com um grupo de “viúvas”, arrepiantemente parecidas com as bruxas do Macbeth shakesperiano.)
Ishiguro parece querer encenar uma pantomima aparentemente ingénua, onde introduz a sua bem conhecida ironia subtilíssima, (como fez no kafkiano Os Inconsolados), com referências, comicamente deturpadas, a outros momentos marcantes da literatura universal (as “provas de amor” a que são sujeitos os amantes ao atravessarem um rio semelhante ao Lethes nas mãos de um sinistro barqueiro, tal como acontece nos romances de cavalaria; os monges satânicos que parecem saídos de O Nome da Rosa de Umberto Eco, etc.), como se houvesse a intenção de avivar a memória para outros textos, em vários estratos temporais, e para a finalidade primeira da escrita, isto é, o exercício da imaginação.
De salientar, ainda, outro (falso) paradoxo relacionado, também, com a questão da memória, esse “gigante enterrado” nas convulsões da História: um ser humano ou uma comunidade que esquecem estão condenados à inércia e à escuridão (como Axl e Beatrice na caverna da sua aldeia); a tentativa de recuperar o passado impulsiona a acção, mas esta não é isenta de perigos. Por outro lado, o esquecimento preserva, supostamente, a paz e a concórdia (os saxões e os bretões já não recordam o motivo das suas lutas, o casal não discute porque não reconhece os motivos de eventuais discórdias, etc.). Ishiguro coloca Axl e Beatrice como heróis determinados, contrariando personagens como o pintor Ono em An Artist of the Floating World (1986), ou, de novo, Stephens em Os Despojos do Dia — narradores não fiáveis, reprimidos por infames segredos do passado (os “dragões” e ogres atávicos) e incapazes de os enfrentar. Resta acrescentar que O Gigante Enterrado, com a sua escrita imaculada, tão delicada quanto a caligrafia japonesa, peca por se perder em longos devaneios, tão opacos quanto os dos antigos bretões e saxões, num universo caótico e, no final, tristemente enredado em divagações insondáveis.