Os prós e contras de uma lei polémica

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A agora arguida trabalhava no tribunal cível do Porto Adriano Miranda/Arquivo

O acesso dos pais

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O acesso dos pais

O facto de a proposta do Governo prever a possibilidade, ainda que limitada, de os pais poderem saber se uma determinada pessoa faz parte da lista de agressores sexuais é o aspecto mais polémico deste diploma. A ministra lembra que “todos os dias a imprensa noticia abusos sexuais de menores” e que “em regra, quem tem filhos, menores a cargo, vive em cuidado”. Contudo, tanto o Conselho Superior de Magistratura, como o do Ministério Público e a Comissão Nacional de Protecção de Dados vêem perigos neste acesso. Num parecer o Conselho Superior do Ministério Público defende que a possibilidade de os pais terem acesso a dados da lista viola “princípios basilares do ordenamento jurídico, como seja o da reinserção do agente por força do cumprimento da pena”, previsto na Constituição, e “o carácter reservado do exercício das actividades de prevenção dos órgãos, serviços e forças de segurança”. Transpor esse exercício para os cidadãos em particular, diz-se, não tem em conta “os incontornáveis perigos para a segurança, ordem e tranquilidade pública” e pode constituir a “ignição de tresloucada agressão” contra quem fizer parte da lista. A CNPD repete o argumento: “A transferência da função estadual de prevenção criminal para a população em geral ou para um conjunto de cidadãos em especial, com os correspondentes poderes, traz consigo uma ameaça para os valores da segurança, ordem e tranquilidade pública”. Alerta ainda para que a criação de uma “sociedade civil policial” tem, aparentemente, implícita uma “legitimação da acção directa”. O Conselho Superior da Magistratura, que apenas se pronunciou sobre a primeira proposta do Governo que permitia o acesso à informação aos pais “sem a necessidade de apresentação de qualquer justificação plausível”, dizia que tal “poderia conflituar com o direito constitucionalmente protegido da reserva da intimidade da vida privada”

Receio fundado

Para que os pais possam ter a confirmação que uma determinada pessoas consta do registo é necessário que invoquem “um fundado receio”. O facto de a lei recorrer a um conceito indeterminado é criticado por alguns, já que  não se prevê explicitamente as situações em que os pais podem ter acesso a informações da lista. “Fica por saber – a proposta em nenhum momento o concretiza – qual o alcance do ‘fundado receio’ que legitima o acesso por terceiro” à identidade do prevaricador, critica o parecer. Poderá ser um rumor, uma conversa de vizinhos, uma desconfiança pessoal?”, interroga a Protecção de Dados. A comissão insiste que a possibilidade de se aceder a informação tão sensível “com base numa mera suspeita imaginária ou até em razões menos nobres” é de constitucionalidade muito duvidosa. A ministra precisou alguns exemplos do que poderia ser entendido como fundado receio. “Alguém seguir constantemente a sua filha ou o seu filho. Se alguém constantemente tocar numa criança”, exemplificou.

Dupla pena

A perpetuação deste registo para além do cumprimento da pena é muito criticado por várias entidades, que admitem a inconstitucionalidade desta solução. No entender da Comissão Nacional de Protecção de Dados a consulta pública deste registo consubstancia uma sanção acessória encapotada, que se soma às penas por abuso de menores já previstas. A comissão precisa que quem for sentenciado por mais de dez anos de prisão pode ficar até 20 na lista, o que, considera, viola o princípio legal da proporcionalidade, tendo em conta que quando se fala de crimes contra a vida a limpeza do registo criminal pode acontecer dez anos depois da extinção da pena. Manter activo durante tanto tempo um registo deste tipo “pode revelar-se numa perpetuação que não é compaginável com os ideais de reinserção social, orientadores de qualquer sistema penal moderno, onde se situa o português”. Também o Conselho Superior do Ministério Público vê nesta duração uma violação do princípio de “acompanhamento da reinserção” do agressor. “Afigura-se de constitucionalidade duvidosa a norma”, diz-se, e “para além de achacar o efeito ressocializador da pena a um nível inadmissível, prolonga os efeitos da condenação sobre uma vertente que se deve ter por satisfeita com o cumprimento da pena”. A ministra contrapõe com os direitos das vítimas. “Até hoje, o abusador cumpre pena, sai, recomeça a sua vida e o rasto foi apagado. Tudo em nome dos Direitos, Liberdades e Garantias de cada Cidadão. E as crianças que foram vítimas? Não têm direitos? Elas que têm a vida arruinada e vivem na sombra do estigma. Para sempre”, sublinha Paula Teixeira da Cruz.

Condenações passadas ou futuras

A proposta não prevê expressamente o universo de condenados que será objecto do registo, mas uma das normas diz que cabe à Direcção-Geral da Administração da Justiça promover a inscrição na lista “das decisões anteriores à criação deste registo”, o que indicia que a base de dados também incluirá os agressores condenados antes da sua entrada em vigor. O Conselho Superior da Magistratura defende que uma “matéria tão sensível” justifica uma “clarificação legal”. Para o Ministério Público a possibilidade da lista incluir nomes de agressores condenados antes da sua criação é inconstitucional, já que implica “a compressão de direitos individuais, de forma retroactiva”.  Uma posição reiterada pela Comissão Nacional de Protecção de Dados. “A inserção, no registo, de condenações anteriores à aprovação desta proposta viola o princípio da legalidade”, escrevem os membros da comissão, explicando que o direito penal estabelece a não retroactividade da lei.

E se o suspeito for desconhecido?

O diploma prevê que para confirmarem uma presença na lista, os pais têm que alegar uma “situação concreta que justifique um fundado receio de que determinada pessoa conste do registo”. Tal implica que os pais disponham de elementos de identificação dessa pessoa, o que poderá não acontecer em muitos casos. Esta questão é levantada pelo Conselho Superior do Ministério Público que aponta vários problemas na “operacionalização” desta lei. Podem os pais socorrer-se da polícia para conseguirem o nome dessa pessoa? — pergunta-se. Se sim, como se compatibiliza essa possibilidade com as limitações previstas na legislação penal para as identificações feitas pelas polícias, que obrigam, por exemplo, à existência de “fundadas suspeitas da prática de crimes” ou “da pendência de processo de extradição ou de expulsão”? — questiona-se.  E se a polícia se confrontar com a recusa do visado em se identificar? Até agora estas são perguntas sem resposta.