Paulo Flores faz música para “que os jovens continuem a sonhar mudar o mundo”

Cantor e compositor angolano leva esta quarta-feira ao CCB canções do seu novo disco à mistura com clássicos da sua carreira criativa.

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Paulo Flores do CCB em 2010: um regresso a apelar à memória NUNO FERREIRA SANTOS

Ele conta um episódio recente, como justificação. “Há cerca de um ano ou dois eu estava a ensaiar com as minhas coristas, de Angola, que já cantam há mais de quinze anos, e estava a cantar o Makiezu, uma música do Ruy Mingas com poema do Viriato da Cruz. Quando chegou à parte do refrão, ‘rasga as estradinhas na areia’ elas deviam dizer ‘na areia’ mas não responderam. Então parei o ensaio, perguntei e elas disseram que não conheciam.” Erosão da memória, até da mais actual.

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Ele conta um episódio recente, como justificação. “Há cerca de um ano ou dois eu estava a ensaiar com as minhas coristas, de Angola, que já cantam há mais de quinze anos, e estava a cantar o Makiezu, uma música do Ruy Mingas com poema do Viriato da Cruz. Quando chegou à parte do refrão, ‘rasga as estradinhas na areia’ elas deviam dizer ‘na areia’ mas não responderam. Então parei o ensaio, perguntei e elas disseram que não conheciam.” Erosão da memória, até da mais actual.

Não só. Nos jornais ou na televisão ele vai ouvindo e lendo histórias que sabe que não se passaram assim. Paulo Flores, nascido em Luanda, a 2 de Julho de 1972, acha que “os jovens estão ávidos de conhecimento, de aprenderem tudo”, mas vê que as ligações ao passado estão a ficar ténues: “Cada vez vamos perdendo mais referências, ninguém conhece os poetas antigos, os escritores não lêem, os compositores não tocam e os autores fazem músicas com uma frase. Ninguém vai rebuscar o cancioneiro e é isso que eu tenho tentado fazer, é essa a minha preocupação maior.” Talvez por isso o novo disco de Paulo Flores, O País Que Nasceu Meu Pai (já nas lojas portuguesas), acentue essa necessidade de conhecimento. “Começo o disco com uma carta aos meus tetranetos. Porque no fundo estou a fazer uma homenagem à geração do meu pai, mas com o sonho de que possa chegar aos meus tetranetos uma memória mais presente do que a que temos hoje da nossa história.”

A história a que ele se refere é naturalmente, a de Angola. “Eu contava que, com o fim da guerra, nós abríssemos mais o país e recebêssemos mais informação da nossa cultura das províncias. Mas no fundo estamos a tornar-nos uniformes, estamos a tornar-nos MTV África.” É como se a capital, sob influência da globalização, ditasse as normas nacionais. “Há uma ideia, em Luanda, que somos internacionais. Então os músicos e criadores estão com padrões internacionais, que pouco ou nada divergem do que se faz cá fora em termos de sonoridade e até de propostas.” E disso ele também fala nas letras do disco. “Embora seja muito interessante perceber a criatividade dos jovens, por outro lado é importante para mim mostrar que não somos espelho do kuduro. Eu, por exemplo, não me revejo naquela linguagem, mas os meus filhos podem-se rever. Por isso eu canto: ‘Nada contra o kuduro/ sou da rebita/ sou da matriz/ no país que nasceu meu pai.’ É que chegou a um ponto em que parece que já nem divergir podemos. Então, é importante dar estes contributos.”

 

Aos “pais da nação”

Este discurso, essencialmente tributário das raízes e da matriz cultural angolana, corre o risco de parecer estranho. Paulo Flores diz, por exemplo, que este seu novo disco “é completamente paradoxal em relação ao que Angola significa hoje.” Aliás ele diz que assistiu, “do palco, um pouco à mudança dos hábitos e até do entendimento da própria língua portuguesa. Comecei a ver cada vez menos pessoas a entenderem o que eu estava a dizer. Daí eu também me ter identificado com os pais da nação que homenageio aqui, porque eles próprios também deixaram de se identificar com a liberdade pela qual eles tinham lutado. E começaram a sentir-se impotentes para continuar a lutar.”

Paulo Flores tenta, pelo seu lado, contrariar essa impotência. “Neste disco eu quis dizer a eles, aos que estão vivos principalmente, que para as pessoas da minha geração foi muito importante o contributo deles e serve de exemplo para nós. Como eu digo numa das músicas, A carta (querida mãe), ‘teu filho um dia sonhou mudar o mundo.’ E no fundo isso representa bem o que eu sinto hoje. Mas ainda sinto um alento de querer trabalhar para que os jovens continuem a sonhar mudar o mundo. E isso só se faz com memória, com referências, com motivos que os façam sentir um sustento maior para sonharem com o futuro, o que neste momento não acontece.”

Com Paulo Flores (voz e guitarra acústica) estarão no CCB João Ferreira (percussão), Mias Galheta (baixo), Ciro Bertini (piano e acordeão) Tedy Nsingi (guitarra solo), Pirika Duia (guitarra), Hélio Cruz (bateria), Armando Gobliss (teclas), Zizi Vasconcelos e Rita Damásio (coros). Nos concertos anteriores, Paulo Flores cantou mais os clássicos da música de Angola. Agora dedicará mais tempo aos seus próprios clássicos. Apelando, como sempre, à memória do “país que nasceu seu pai”.