"Este é um filme sobre os mecanismos da violência"
O sueco Göran Olsson realiza um filme sobre a violência. Colonial, policial, doméstica. Ou qualquer outra, que perdure e obedeça a um padrão. A Respeito da Violência passa na quarta-feira na Aula Magna, em Lisboa.
Em comum: o serem um produto do colonialismo em África que Frantz Fanon, o filósofo, psiquiatra e revolucionário marxista anti-colonialista, natural da Martinica, descreve como “violência no seu estado natural”, “violência que só sucumbirá quando confrontada com uma violência maior”.
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Em comum: o serem um produto do colonialismo em África que Frantz Fanon, o filósofo, psiquiatra e revolucionário marxista anti-colonialista, natural da Martinica, descreve como “violência no seu estado natural”, “violência que só sucumbirá quando confrontada com uma violência maior”.
O choque que Fanon, um descendente de escravos, sente na sua chegada a França transforma-se num desejo de entender a colonização. A sua tese Peles Negras, Máscaras Brancas (1952) é rejeitada por uma universidade francesa. O seu livro Os Condenados da Terra, escrito em plena Guerra da Argélia, é banido em França em 1961, ano em que o ensaísta morre com uma leucemia, com apenas 36 anos.
A partir dessa obra, ou através dela, Göran Hugo Olsson realizou Concerning Violence/A Respeito da Violência (2014), título dado por Fanon a um dos capítulos de Os Condenados da Terra. O filme foi aplaudido pela crítica em França como “um testemunho denso e espantoso sobre as guerras de descolonização em África” (Le Monde), portador de “uma actualidade incendiária” (Libération). O IndieLisboa organiza uma sessão especial do filme e que será seguida de debate, na Aula Magna da Reitoria da Universidade de Lisboa, esta quarta-feira, 29 de Abril. Esta semana chega também às salas de cinema.
A Respeito da Violência: Nove cenas de auto-defesa anti-imperialistaé um tributo, uma ilustração de
Os Condenados da Terra, diz, no prefácio do documentário, a professora Gayatri Chakravorty Spivak da Universidade de Columbia, que, em certos aspectos, compara Frantz Fanon a Du Bois e a Mandela. Sobre imagens de um arquivo histórico único da televisão sueca – que captam a transformação imposta em África pelas revoluções e as independências – ecoam as palavras de Fanon. São excertos do capítulo
Concerning Violencee de dois outros,
Colonial Ware
Mental Disorders, lidos por Lauryn Hill, cantora e actriz norte-americana. Como estes: “O homem colonizado encontra a sua liberdade na violência”; “A violência ilumina porque aponta para os meios e para os fins”.
Voz para um profeta
Ouvir não é o mesmo que ler. “Tudo o que quero é que as pessoas ouçam este homem”, diz Göran Olsson (n. 1965, Lund, na Suécia). O realizador está ao telefone, a partir de Oslo. “Fanon era um psiquiatra, e por isso era tão interessante. Fala da alma, da mente, dos efeitos psicológicos da violência.”
Por isso, a escolha da voz era tão crucial. “Lauryn Hill estava na prisão [a cumprir pena por evasão fiscal], quando lhe escrevi uma carta a perguntar se podia considerar fazer a voz. Ela respondeu logo a dizer: ‘Não vai acreditar. Estou na prisão a ler Fanon na minha cela’. Ela já era leitora de Fanon, e eu sabia disso. Por isso lhe fiz esse pedido. Ela realmente entendeu o texto”, conta o realizador ao PÚBLICO.
“Este é um filme sobre a violência estrutural, sobre o mecanismo da violência e não apenas sobre a violência colonial. É sobre o que acontece quando uma pessoa está exposta a uma violência que perdura". É quando a brutalidade ou a opressão obedecem a um padrão. “Como a violência policial nos Estados Unidos, ou a violência doméstica na Suécia. Penso que os mecanismos não são os mesmos, mas semelhantes", continua.
“Fanon não reflectiu apenas sobre a colonização. Queria fazer algo a esse respeito”, frisa Gayatri Spivak no prefácio. Como psiquiatra, “Fanon empregou o seu tempo e perícia a curar os que foram alvo de violência”, nota. E sugere: “É no contexto do rescaldo do colonialismo que se deve considerar cuidadosamente a tragédia do que se vê neste filme.”
Registo intemporal
Tragédia ou tragédias, também de hoje. “Sim, ele era um profeta. Se as pessoas o ouvissem, não penso que teríamos hoje o autoproclamado Estado Islâmico, com a violência que vemos. Uma violência que nós classificamos como ‘não compreensível’”, continua Göran Olsson, que antes realizou
The Black Power Mixtape (1967 – 1975), também com os arquivos da televisão sueca.
Em Concerning Violence, já projectado em festivais mas também em salas, por exemplo, em Londres, o realizador começou por pensar juntar à recolha de arquivo imagens filmadas hoje. No fim, debruçou-se exclusivamente sobre películas de arquivo. “Estas são imagens que se podem traduzir para os dias de hoje, entendidas na perspectiva presente.”
Em sintonia com aquilo que era a posição neutra da Suécia, fora da NATO e de apoio às independências em África, a televisão sueca recolheu entrevistas e captou momentos das lutas de libertação ainda em curso nesta última fase, como as de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Na maioria das vezes, atrás da câmara estavam Robert Malmer e Ingela Romare – a dupla que realizou documentários como The Birth of a Nation (1973), que regista a declaração unilateral da independência pelo PAIGC, ou In Our Country the Bullets Begin to Flower (1971), sobre Moçambique.
Com imagens escolhidas desse imenso arquivo – “este material tem a qualidade de filmes documentários, não é material noticioso” – o realizador acompanha as ideias de Fanon. E fá-lo num “registo de intemporalidade”. Em vida Fanon assistiu à independência do Gana (em 1957) e de vários outros países (em 1960). Mas não viveu para ver o que se seguiu. Concluiu Os Condenados da Terra nas últimas semanas antes de morrer.
A obra, que Olsson sentiu que não podia deixar de tratar em filme, quando a releu em 2012, evoca “o saque de recursos naturais”, "os muitos assassínios”, mesmo os que não tinham ainda acontecido: Martin Luther King é assassinado em 1968, Amílcar Cabral em 1973, Thomas Sankara em 1987 – o revolucionário e primeiro Presidente do Burkina Faso, conhecido como o “Che africano”, que criticou o FMI e recusou a ajuda alimentar, foi morto num golpe de Estado apoiado pelos Estados Unidos e pela França
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Mugabe, libertador
“Entristece-me perceber que Fanon viu tantas coisas e que muito poucas pessoas prestaram atenção ao que ele disse. O saque de recursos naturais continua e ainda mais hoje na nova estrutura global com as companhias a substituírem-se aos estados”, diz Olsson. “Na Nigéria, onde vimos a corrupção, o petróleo, é claro que temos o Boko Haram. Não é difícil perceber porquê. Era possível ver isto antes de acontecer. A reacção ao que acontece na Nigéria ou no Iraque é racional. Não defendo o que a Frente Islâmica está a fazer. Mas para pararmos isto temos de perceber o que estão a fazer”, justifica o realizador.
“Os privilégios baseados na cor foram-se. Se [os colonos] perceberem isso, podem ficar.” É Robert Mugabe quem fala, o ainda Presidente do Zimbabwe, antes do activista Tonderai Makoni que dá corpo à luta, dizendo ter-se tornado indiferente à tortura nos cinco anos em que esteve na prisão, em imagens a preto e branco.
As declarações de líderes ou revolucionários cruzam os sorrisos desprendidos de colonos de fato e chapéu a jogar golfe ou a descansar em piscinas onde criados negros servem refrescos. Um fazendeiro que chama “estúpido” ao criado que o serve, explica numa entrevista que vai ser impossível continuar a viver neste país: “O mundo inteiro apoia os terroristas.”
Na cena a que o realizador dá o título Pobreza de Espírito, um casal de missionários na Tanzânia, com trabalhadores negros em fundo, regozija-se pela presença do cristianismo e expansão das suas igrejas em aldeias destruídas onde não existe uma escola ou um hospital.
As entrevistas alternam com imagens de guerra, ou de greves de trabalhadores, como os que se revoltaram em 1966 na companhia mineira Lamco na Libéria: os sindicalistas são levados para a temida cadeia de Belle Yella ou as suas famílias deixadas à sua sorte, no meio da noite, depois de expulsas do complexo industrial onde viviam.
Ao lado de MPLA e Frelimo
O material de arquivo inclui uma incursão com o MPLA (Movimento Popular para a Libertação de Angola) em Cabinda, entrevistas a guerrilheiros e jovens guerrilheiras na Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) “ao serviço do povo”, porque “a luta armada é a única forma de alcançarem os seus direitos”.
Num hospital, uma jovem mãe e o seu bebé são filmados depois de um bombardeamento com napalm sobre uma aldeia durante a guerra que opunha as forças coloniais portuguesas à Frelimo em Moçambique. A expressão silenciosa da violência é a mais perturbadora, diz Göran Olsson. Mãe e bebé ficaram feridos. “O dano não é compreensível. É tão profundo e tão terrível”, insiste o realizador. “A cena é absolutamente horrível. Mas eu sabia que a queria ter no filme. É muito importante. Ao termos uma imagem como esta não podemos não a usar por ser demasiado violenta. Seria autocensura.”
O relato da explosão da bomba feito por um residente, na cena anterior, não é único. A cena no hospital é. Seria preciso mostrá-la. “Isto é o que acontece quando se lança uma bomba", defende Olsson.
Na cena Derrota, os destroçados são também portugueses: o corpo ferido de um soldado jaz no chão, enquanto se ouve Vai dizer à minha mãe que eu não vou p’rá guerra, da canção de Luís Cília O canto do desertor. A câmara capta o momento em que, na cerimónia da proclamação unilateral da independência da Guiné-Bissau, em Setembro de 1973, os presentes, em silêncio, ouvem um discurso de Amílcar Cabral.
Na cena final, de novo as palavras de Fanon: “Para muitos de nós, o modelo europeu era o mais inspirador. Mas quando procuramos a humanidade na técnica e no estilo da Europa, vemos apenas uma sucessão de negações da humanidade.” E ainda: “A Europa assumiu a liderança do mundo com ardor, cinismo e violência. Vejam como a sombra dos seus palácios se alonga e multiplica. Temos de nos livrar da escuridão pesada em que fomos lançados, e deixá-la para trás.”