Mariano Gago, a ciência e a família
Mariano Gago conseguiu, em 1995, que houvesse pela primeira vez no país um ministério dedicado à ciência.
Era uma pessoa que via longe e com um pensamento inovador. Enquanto muitos responsáveis continuavam a ver o país como em vias de desenvolvimento, ele vê-o já como país industrializado. Nessa mesma altura, as Nações Unidas integram Portugal no grupo dos países industrializados. Enquanto muitos responsáveis tinham ainda na cabeça um modelo de mudança tecnológica já desacreditado e posto de lado, vendo-o como a sucessão investigação fundamental-investigação aplicada-desenvolvimento tecnológico e daí a inovação, ele tinha a ideia de que era um processo muito mais complexo.
Conjugando as duas perspectivas erróneas, muitos responsáveis preconizavam políticas paternalistas e redutoras, dando primazia à investigação aplicada. No entanto, quando, por exemplo, nas ciências da saúde se faz investigação para produzir um medicamento, é hoje frequente ter de haver investigação fundamental de ponta como em genética molecular. Mariano Gago ironizava: “Investigação aplicada, teremos de ver é se é aplicável.” E sabia também como o conhecimento científico cria oportunidades. Por exemplo, foram descobertas no domínio da física que conduziram à fibra óptica, de tão grande importância nas comunicações.
Dava ainda grande importância à inovação, pelo que propôs a criação da Agência da Inovação, organismo que com as dificuldades burocráticas e de procedimentos legislativos só veio a ser estabelecido mais tarde.
Vendo a ciência como uma base essencial do progresso, preocupavam-no a dificuldade de no nosso país se levar até ao fim projectos, pela instabilidade e descontinuidade de fundos. Indo buscar num sentido literal expressões vindas da sua formação inicial em Engenharia Electrotécnica, dizia que as políticas científicas em Portugal funcionam em regime de corrente alterna, pelo que temos de as pôr a funcionar em regime de corrente contínua.
Em meados de 1989, encontrei-o em Paris num acontecimento da UNESCO. Convidou-me para jantar, depois do qual fizemos uma longa caminhada pelo Quartier Latin e tivemos uma longa conversa na qual me disse que pensava há algum tempo falar comigo para me explicar as temáticas e pontos da sua orientação para a política científica. Eu estava na altura na Universidade de Manchester e tinha lido muita coisa da literatura em política da ciência, sociologia da ciência e economia da inovação. Tomei consciência de que essas questões eram enquadráveis em importantes aspectos teóricos e nas agendas de investigação nessas matérias. Esta conversa foi central para a minha tese, a qual veio a ser reconhecida. E disse-me ainda que gostaria que eu viesse a ser a cronista da política científica portuguesa.
Um aspecto que foi muito importante para o sucesso da sua acção foi com isenção mobilizar e estabelecer consensos entre investigadores e académicos de todas as correntes partidárias e ideológicas – o que lhe proporcionou actuar primeiro num alto cargo nomeado por um governo PSD e depois como ministro nos governos do PS que se sucederam.
Em 1995, num governo PS conseguiu que houvesse pela primeira vez no país um ministério dedicado à ciência, que incluiu as novas tecnologias da informação – Ministério da Ciência e da Tecnologia –, do qual foi o titular. Na delimitação do âmbito ministerial, desde início achou que a ciência e a inovação deveriam estar próximas, para se poder induzir o seu aproveitamento, mas nunca conseguiu que isso fosse aceite. E desde início também achava importante integrar aí o ensino superior. Mas na altura não houve condições. De facto, na fase actual o sector ensino superior é uma “fábrica” no sentido mais profundo de produção de novo conhecimento científico, de transferência de conhecimento para os utilizadores quer sejam da administração pública, da cultura ou das empresas e de difusão do conhecimento pelo ensino. A partir de 2005, o ministério que tutelou abrangeu o ensino superior. Nos governos PSD anteriores tinha havido essa junção e num deles, de breve duração, foi incluída a inovação.
Hoje, voltar a inserir o ensino superior na Educação foi um retrocesso, assim como aí integrar a ciência, quando em Portugal desde o final dos anos 1960 se procurou que a coordenação e o financiamento das actividades de investigação científica estivessem inseridos na orgânica governativa de forma a poderem apoiar todos os sectores (laboratórios do Estado, universidades, instituições privadas sem fins lucrativos e empresas).
De grande generosidade, abriu-me as portas da sua casa e a da casa de seus pais. E assim vim a conhecer a mulher, a investigadora Karin Wall, de famílias de origem inglesa e norueguesa estabelecidas no Porto e socióloga da família, a filha, a arquitecta Catarina Wall Gago, que conheci com três anos de idade, o pai, já falecido, o advogado Eduardo Pires Gago, nascido no Algarve, e a mãe, Maria das Dores Rebelo Gago, que na juventude em Setúbal esteve ligada a movimentos de voluntariado social e que, quando se preparava para iniciar o curso de serviço social, se apaixonou e se casou.
Reconheci-lhes logo inteligência, saber, dedicação ao trabalho, integridade, generosidade e imenso sentido de família. Participei durante alguns anos nos almoços de família aos domingos ou na sua casa ou na dos pais e nesta em ceias e almoços de Natal e em almoços de Páscoa na casa de Pechão.
Com uma vida atribulada, perdi a ligação com o Zé Mariano e a sua família. Mas fui sempre seguindo todos os acontecimentos atentamente. Apesar de terem passado muitos anos, na memória vejo sempre os Gago como a minha família afectiva.
E, como muitos comentadores têm dito, a melhor homenagem a Mariano Gago é prosseguir a sua acção. Desta vez, deveria ser criado um Ministério da Ciência, da Inovação e do Ensino Superior. E continuar o apoio ao desenvolvimento do sistema científico, pois que nenhum corpo pode funcionar sem ser continuadamente alimentado.
Doutorada em Política de Ciência e Tecnologia pela Universidade de Manchester (1991)
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Era uma pessoa que via longe e com um pensamento inovador. Enquanto muitos responsáveis continuavam a ver o país como em vias de desenvolvimento, ele vê-o já como país industrializado. Nessa mesma altura, as Nações Unidas integram Portugal no grupo dos países industrializados. Enquanto muitos responsáveis tinham ainda na cabeça um modelo de mudança tecnológica já desacreditado e posto de lado, vendo-o como a sucessão investigação fundamental-investigação aplicada-desenvolvimento tecnológico e daí a inovação, ele tinha a ideia de que era um processo muito mais complexo.
Conjugando as duas perspectivas erróneas, muitos responsáveis preconizavam políticas paternalistas e redutoras, dando primazia à investigação aplicada. No entanto, quando, por exemplo, nas ciências da saúde se faz investigação para produzir um medicamento, é hoje frequente ter de haver investigação fundamental de ponta como em genética molecular. Mariano Gago ironizava: “Investigação aplicada, teremos de ver é se é aplicável.” E sabia também como o conhecimento científico cria oportunidades. Por exemplo, foram descobertas no domínio da física que conduziram à fibra óptica, de tão grande importância nas comunicações.
Dava ainda grande importância à inovação, pelo que propôs a criação da Agência da Inovação, organismo que com as dificuldades burocráticas e de procedimentos legislativos só veio a ser estabelecido mais tarde.
Vendo a ciência como uma base essencial do progresso, preocupavam-no a dificuldade de no nosso país se levar até ao fim projectos, pela instabilidade e descontinuidade de fundos. Indo buscar num sentido literal expressões vindas da sua formação inicial em Engenharia Electrotécnica, dizia que as políticas científicas em Portugal funcionam em regime de corrente alterna, pelo que temos de as pôr a funcionar em regime de corrente contínua.
Em meados de 1989, encontrei-o em Paris num acontecimento da UNESCO. Convidou-me para jantar, depois do qual fizemos uma longa caminhada pelo Quartier Latin e tivemos uma longa conversa na qual me disse que pensava há algum tempo falar comigo para me explicar as temáticas e pontos da sua orientação para a política científica. Eu estava na altura na Universidade de Manchester e tinha lido muita coisa da literatura em política da ciência, sociologia da ciência e economia da inovação. Tomei consciência de que essas questões eram enquadráveis em importantes aspectos teóricos e nas agendas de investigação nessas matérias. Esta conversa foi central para a minha tese, a qual veio a ser reconhecida. E disse-me ainda que gostaria que eu viesse a ser a cronista da política científica portuguesa.
Um aspecto que foi muito importante para o sucesso da sua acção foi com isenção mobilizar e estabelecer consensos entre investigadores e académicos de todas as correntes partidárias e ideológicas – o que lhe proporcionou actuar primeiro num alto cargo nomeado por um governo PSD e depois como ministro nos governos do PS que se sucederam.
Em 1995, num governo PS conseguiu que houvesse pela primeira vez no país um ministério dedicado à ciência, que incluiu as novas tecnologias da informação – Ministério da Ciência e da Tecnologia –, do qual foi o titular. Na delimitação do âmbito ministerial, desde início achou que a ciência e a inovação deveriam estar próximas, para se poder induzir o seu aproveitamento, mas nunca conseguiu que isso fosse aceite. E desde início também achava importante integrar aí o ensino superior. Mas na altura não houve condições. De facto, na fase actual o sector ensino superior é uma “fábrica” no sentido mais profundo de produção de novo conhecimento científico, de transferência de conhecimento para os utilizadores quer sejam da administração pública, da cultura ou das empresas e de difusão do conhecimento pelo ensino. A partir de 2005, o ministério que tutelou abrangeu o ensino superior. Nos governos PSD anteriores tinha havido essa junção e num deles, de breve duração, foi incluída a inovação.
Hoje, voltar a inserir o ensino superior na Educação foi um retrocesso, assim como aí integrar a ciência, quando em Portugal desde o final dos anos 1960 se procurou que a coordenação e o financiamento das actividades de investigação científica estivessem inseridos na orgânica governativa de forma a poderem apoiar todos os sectores (laboratórios do Estado, universidades, instituições privadas sem fins lucrativos e empresas).
De grande generosidade, abriu-me as portas da sua casa e a da casa de seus pais. E assim vim a conhecer a mulher, a investigadora Karin Wall, de famílias de origem inglesa e norueguesa estabelecidas no Porto e socióloga da família, a filha, a arquitecta Catarina Wall Gago, que conheci com três anos de idade, o pai, já falecido, o advogado Eduardo Pires Gago, nascido no Algarve, e a mãe, Maria das Dores Rebelo Gago, que na juventude em Setúbal esteve ligada a movimentos de voluntariado social e que, quando se preparava para iniciar o curso de serviço social, se apaixonou e se casou.
Reconheci-lhes logo inteligência, saber, dedicação ao trabalho, integridade, generosidade e imenso sentido de família. Participei durante alguns anos nos almoços de família aos domingos ou na sua casa ou na dos pais e nesta em ceias e almoços de Natal e em almoços de Páscoa na casa de Pechão.
Com uma vida atribulada, perdi a ligação com o Zé Mariano e a sua família. Mas fui sempre seguindo todos os acontecimentos atentamente. Apesar de terem passado muitos anos, na memória vejo sempre os Gago como a minha família afectiva.
E, como muitos comentadores têm dito, a melhor homenagem a Mariano Gago é prosseguir a sua acção. Desta vez, deveria ser criado um Ministério da Ciência, da Inovação e do Ensino Superior. E continuar o apoio ao desenvolvimento do sistema científico, pois que nenhum corpo pode funcionar sem ser continuadamente alimentado.
Doutorada em Política de Ciência e Tecnologia pela Universidade de Manchester (1991)