Olivier Morice bebe à nossa liberdade
Os advogados podem falar livremente nos tribunais. Mas não só...
Morice era o advogado da viúva do juiz francês Bertrand Borrel que, em 1995, apareceu meio nu e com o corpo parcialmente queimado no Djibuti, onde estava numa missão de cooperação entre os dois países. As autoridades djibutianas rapidamente se encaminharam para a tese do suicídio e o processo que correu em França seguia pelo mesmo caminho. A juíza de instrução francesa e um juiz auxiliar não deram importância ao depoimento de uma testemunha djibutiana que procurara asilo na Bélgica e que afirmava que a morte do juiz Borrel era um assassinato político com origem no Governo do Djibuti e menosprezaram a posição da viúva, representada por Olivier Morice, nomeadamente não os convocando para uma reconstituição dos factos no Djibuti.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Morice era o advogado da viúva do juiz francês Bertrand Borrel que, em 1995, apareceu meio nu e com o corpo parcialmente queimado no Djibuti, onde estava numa missão de cooperação entre os dois países. As autoridades djibutianas rapidamente se encaminharam para a tese do suicídio e o processo que correu em França seguia pelo mesmo caminho. A juíza de instrução francesa e um juiz auxiliar não deram importância ao depoimento de uma testemunha djibutiana que procurara asilo na Bélgica e que afirmava que a morte do juiz Borrel era um assassinato político com origem no Governo do Djibuti e menosprezaram a posição da viúva, representada por Olivier Morice, nomeadamente não os convocando para uma reconstituição dos factos no Djibuti.
Morice conseguiu o afastamento da juíza e do seu auxiliar, mas, algum tempo depois, detectou que uma cassete vídeo com a reconstituição não tinha sido transmitida pela juíza ao seu substituto. E, pior ainda, quando a cassete apareceu, por reclamação sua e um mês depois, tinha a acompanhá-la um bilhetinho, em tom familiar, do procurador da República do Djibuti dirigido à juiza de instrução em que afirmava que a viúva Borrel e os advogados ”estavam determinados a continuar a orquestrar a sua manipulação” dos factos.
Morice e outro advogado não gostaram nada do que viram e escreveram, em 6 de Setembro de 2000, uma carta ao ministro da Justiça, queixando-se da juíza de instrução e do seu auxiliar, cujo comportamento estava “em absoluta contradição com os princípios da imparcialidade e da lealdade” e pedindo uma investigação pela Inspecção-Geral de Justiça a diversos aspectos da investigação judicial.
No dia seguinte, surgiu um artigo no jornal Le Monde que relatava todos as “peripécias” do processo transcrevendo a carta dirigida por Olivier Morice ao ministro da Justiça e que continha ainda alguns comentários dos advogados. Morice afirmava, por exemplo, em relação ao bilhetinho do colega djibutiano, que “esta carta mostra a extensão da conivência entre o Ministério Público djibutiano e os juízes franceses” e que a mesma era “ultrajante”.
Os juízes não gostaram e participaram criminalmente contra Olivier Morice, acusando-o, bem como ao jornalista autor do artigo e ao director do Le Monde, do crime de difamação de funcionário público e, após diversas sentenças e recursos, Morice foi condenado no referido pagamento de uma multa de 4000 euros e de uma indemnização de 7500.
Queixou-se, então, Olivier Morice ao TEDH de ter sido violada a sua liberdade de expressão, mas não teve sorte. A decisão, proferida em 11 de Junho de 2013, considerou que a França não se excedera ao condenar o advogado por difamação, já que este não se limitara a relatar factos, mas exprimira uma opinião que ultrapassava os limites do que um advogado podia dizer em público ao criticar o sistema judiciário. As afirmações de Morice punham em causa a confiança na imparcialidade do sistema judiciário desnecessariamente.
Olivier Morice não se ficou e requereu, tendo em conta a importância da decisão, que o processo fosse levado ao Tribunal Pleno do TEDH, o que foi aceite. E foram os 17 juízes deste Tribunal Pleno que vieram reconhecer que, afinal, fora a França que se excedera ao condenar Morice.
Numa notável decisão que será, a partir de agora, referência para a liberdade de expressão no espaço europeu, o TEDH veio dizer que, embora os advogados não possam ser equiparados aos jornalistas em termos de liberdade de expressão na discussão de assuntos de interesse público, nem por isso podem ser impedidos de participar no debate público de questões relevantes sobre o funcionamento do sistema judicial. E, embora, também, seja necessário manter a confiança na imparcialidade do poder judicial, nem por isso as opiniões críticas que tenham bases factuais, mesmo que expressas por advogados, devem ser punidas. E, tendo ainda em conta o valor da multa e da indemnização, o TEDH considerou que a condenação de Morice constituíra uma interferência desproporcionada no seu direito à liberdade de expressão, assim condenando a França a pagar-lhe as despesas que tivera e ainda uma indemnização por danos morais de 15 mil euros. Olivier Morice, de seguida, abriu uma garrafa de champanhe...
Advogado; ftmota@netcabo.pt