Para ver e quase tocar

No Museu do Chiado, o espectador vai confrontar-se com a memória de um país e com a perenidade da imagem fotográfica. Numa exposição de tesouros da fotografia do século XIX português. Para ver e quase tocar.

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Este pequeno e comovente objecto pode ser um portal para Tesouros da Fotografia Portuguesa do Século XIX, momentos significativo de 2015 no domínio das artes visuais. O propósito desta mostra, que inaugura na quinta-feira (dia 30), não é modesto: reunindo um conjunto impressionante de autores e obras provenientes de acervos de colecções públicas e privadas, visa revisitar o legado da fotografia produzida em Portugal entre 1840 e 1900. Um escopo quase inesgotável e que se desdobará pelo espaço da Galeria Municipal Almeida Garrett, no Porto, a partir do dia 23 de Maio.

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Este pequeno e comovente objecto pode ser um portal para Tesouros da Fotografia Portuguesa do Século XIX, momentos significativo de 2015 no domínio das artes visuais. O propósito desta mostra, que inaugura na quinta-feira (dia 30), não é modesto: reunindo um conjunto impressionante de autores e obras provenientes de acervos de colecções públicas e privadas, visa revisitar o legado da fotografia produzida em Portugal entre 1840 e 1900. Um escopo quase inesgotável e que se desdobará pelo espaço da Galeria Municipal Almeida Garrett, no Porto, a partir do dia 23 de Maio.

Até lá, as duas comissárias, Emília Tavares e Margarida Medeiros, continuarão a abrir caixas, a confirmar informações, a pensar sobre a fotografia para a mostrar. No piso 1 do Museu do Chiado, a exposição vai ganhando forma, com mistérios e incertezas. “De algumas imagens, só sabemos as datas através dos processos usados, e pouco mais. Algumas são de factos desconhecidas. Não sabemos o que foi fotografado, nem quem fotografou”. O comentário de Emília Tavares ressoa no entusiasmo de Margarida Medeiros: “Conseguimos, ao fim de muitos dias, encontrar uma data provável de uma fotografia do Jardim do Príncipe Real, sem árvores, sem grades. E descobrimos uma fotografia do Mosteiro de Jerónimos junto à água, antes de ganhar aquela parte ao rio. E imagens com o claustro fechado. Creio que nunca foram mostradas”.

O trabalho é de constante descoberta. Afinal não faltam tesouros, como o título, convincente, sugere. “É um bocado ambíguo”, atalha Emília Tavares. “Tem a ver com a falta de visibilidade deste património fotográfico. Está a ser cada vez mais estudado, felizmente, mas essa actividade poucas vezes transparece publicamente. Em termos de divulgação há muito pouco investimento. As instituições têm esse património, zelam por ele, mas a verdade é que depois não há uma mostra pública. Portanto, o termo ‘tesouro’ é, também no sentido de um certo entesouramento que também é confundido como preservação”.

Uma câmara escura

Feita a ressalva, as imagens e os objectos da exposição são, de facto, tesouros, do melhor que a fotografia portuguesa produziu ao longo do século XIX. E para a sua reunião no Museu do Chiado contribuiu, decisivamente, a colaboração de várias instituições públicas e colecionadores particulares. “Sem dúvida”, sublinha Margarida Medeiros. “Vamos ter dez a quinze acervos públicos e cinco particulares. Algumas fotografias nunca foram mostradas, nomeadamente as dos colecionadores. E ainda havia mais para mostrar. Há coisas incríveis, por exemplo, no Arquivo de Documentação Fotográfica da Ajuda e no Centro Português de Fotografia, no Porto”.

O espanto não protege todas as fotografias da erosão do tempo, pelo que as comissárias asseguraram a criação de uma sala especial. “Dada a sua fragilidade, algumas vão estar numa câmara escura especial. Têm sido ciosamente guardadas e, por exigência dos seus proprietários, vão estar protegidas, com iluminação própria”. Desse conjunto, destaca-se uma fotografia da autoria do inglês Frederick William Flower. Realizada, entre 1849-1859, com o recurso à técnica do calotipo, mostra-nos o negativo de um lugar “habitado” por pinheiros mansos, em Coimbrões, Vila Nova de Gaia. É uma imagem a que a qualidade artesanal da técnica, antecessora do processo fotográfico convencional, oferece um tom sinistro, irreal, nocturno.

A evolução técnica da fotografia – uma sucessão de passos, ora acelerados, ora lentos – e o seu impacto na percepção do real, na relação com o distante e inacessível, no domínio da ciência e da arte, surge como critério unificador da exposição. “Não seguimos a ordenação clássica, retrato, paisagem, natureza-morta”, esclarece Margarida. “A fotografia faz explodir essas categorias, que pertenciam à pintura. Quisemos mostrar as aplicações da fotografia. Há muitos álbuns que lidam com a impressão fotográfica, com a questão da aplicação da fotografia à gravura. Procurámos mostrar uma transversalidade. Mostrar a fotografia como um meio de aplicação técnica que tem uma componente artística e não artística”.

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No limiar que separava essa duas componentes, as imagens registavam, testemunhavam. Como a que revela, em primeiro plano, dois camponeses, enquanto ao fundo se vislumbra a estrutura de uma ponte. A fotografia, anónima ou assinada por Emílio Biel, documentava o choque entre escalas e mundos. “Há uma preocupação em muitas das encomendas e projectos [dos fotógrafos] em testemunhar a transformação da paisagem pelo desenvolvimento industrial, sobretudo através do caminho-de-ferro”, salienta Emília Tavares. “A relação, o confronto entre dois países, um mais antigo, o outro que se quer modernizar, está muito presente na exposição”.

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Quando as pessoas eram borrões

Um dos temas que merece um núcleo próprio é a fotografia patrimonial com imagens da reconstrução de monumentos como o Mosteiro dos Jerónimos, ou provenientes do álbum do
Convento do Lorvão, de Carlos Relvas. A nova técnica afirmava cedo a sua vocação arquivística e memorial na condição de instrumento que ajudaria a recriar e difundir, ao longo do século seguinte, uma ideia de identidade nacional e histórica.

Noutro registo, mais próximo da fotografia da paisagem, está uma imagem da autoria de João Francisco Camacho. Um homem descansa no interior de uma escarpa rochosa, junto ao mar, na Ilha de Madeira. Quem é? Um viajante? Um eremita? Ou próprio? Não se sabe. “É uma imagem belíssima”, acode Emília Tavares. “Ele começou por fotografar na Madeira, onde tem um atelier, e, na década de 60, acabou por se fixar em Lisboa. No seu trabalho, há um interesse muito particular pela imagem fotográfica, pelo potencial que a fotografia tem de testemunhar, de fazer a representação da realidade de uma outra forma. Mas é difícil perceber o fim da produção das suas fotografias”. Interrogação oportuna: nesta época, os fotógrafos portugueses ou em Portugal escreviam sobre o que faziam? “Não, infelizmente era muito raro. Entre nós, havia poucos casos assim, ao contrário do que acontecia nos Estados Unidos, Inglaterra e França onde existia outra dinâmica comercial e artística”.

A fotografia foi, entretanto, fazendo o seu caminho, servindo de auxílio ao trabalho de pintores, como Alfredo Keil, que nela procuravam enquadramentos, constrates e poses para as suas telas, ou produzindo retratos que supostamente tornaram imortais os retratados. Estava ainda distante a massificação que a Kodak viria a permitir no século XX, mas a produção fotográfica proliferava em estúdios e ateliers. Era dirigida a um público desejoso de proteger da morte os seus entes queridos e utilizada pelas classes mais abastadas que capturavam, à distância, o mundo dos outros. É neste “ambiente” que assomam retratos de conjunto como o realizado por J. M. Silva ou as fotografias que Carlos Relvas faz dos mendigos, transformando-os em seres pitorescos. O século XX estava, todavia, à porta e com ele uma outra fotografia, outros protagonistas. “Nas cenas de rua vemos já essa essa fotografia do anónimo, da multidão que entra em força com a imprensa. Os meios técnicos viriam permitir à fotografia a capacidade do instantâneo, de captar de forma mais eficaz o dia-a-dia dia. Mas nesta fase ainda há poucas fotografias de rua. Por causa dos limites da técnica, as pessoas, quando em movimento estão desfocadas, como borrões”.

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Com imagens inéditas ou anónimas, daguerreótipos nunca antes vistos, paisagens e pessoas irreconhecíveis, técnicas esquecida e depois recuperadas, Tesouros da Fotografia Portuguesa do Século XIX toma a forma de uma exposição anacrónica, teimosa. Que expõe um corpo, nem que seja de papel. “Para as gerações mais jovens, que já não têm uma relação física com as imagens, pode ser um choque. Este é um mundo arqueológico. Essa relação física com imagens originárias de processos e técnicas tão diferentes, com diferenças de tom e resolução tão intensas, faz parte de outro mundo. Mas a exposição permite às pessoas entenderem como foi a evolução da fotografia e terem consciência de que estas imagens sobreviveram mais de cem anos. Há aqui uma ideia de perenidade que está associada desde o primeiro momento à fotografia”.

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Frederick William Flower, entre 1849-1859, negativo de um lugar “habitado” por pinheiros mansos, em Coimbrões, Vila Nova de Gaia: a qualidade artesanal da técnica, antecessora do processo fotográfico convencional, oferece um tom sinistro, irreal, nocturno