No íntimo, sem deus nem diabo

O homem no amor e na guerra e o paradoxo da sobrevivência sem heroísmo são os grandes temas do romance que valeu a Richard Flanagan o Man Booker Prize

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Richard Flanagan abeira-se do trauma do seu pai, sobrevivente de um campo de prisioneiros japonês na Segunda Guerra Mundial
A Senda Estreita para o Norte Profundo

, o livro vencedor do último Man Booker Prize, é o sexto romance do australiano Richard Flanagan — conhecido sobretudo pelo romance 

O Livro dos Peixes de Gould

 (D. Quixote, 2006). Demorou 12 anos a escrever, teve cinco versões, e é o resultado de uma luta pessoal com o trauma: a do escritor perante o horror de um campo de prisioneiros de guerra de que o pai foi sobrevivente.

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A Senda Estreita para o Norte Profundo

, o livro vencedor do último Man Booker Prize, é o sexto romance do australiano Richard Flanagan — conhecido sobretudo pelo romance 

O Livro dos Peixes de Gould

 (D. Quixote, 2006). Demorou 12 anos a escrever, teve cinco versões, e é o resultado de uma luta pessoal com o trauma: a do escritor perante o horror de um campo de prisioneiros de guerra de que o pai foi sobrevivente.

Richard Flanagan (Tasmânia, 1961) nasceu 16 anos depois da Segunda Guerra Mundial. Nunca combateu, mas cresceu com o sofrimento do pai e o trauma passou a ser comum, embora experimentado de formas distintas. A declaração de Dorrigo Evans, o protagonista, assume neste contexto um carácter bastante autobiográfico: “Sou parte de tudo o que conheci.” Flanagan sente-se herdeiro desse conhecimento, soube o que era nascer e crescer filho de um sobrevivente da “Linha” — assim chama ao caminho-de-ferro, 450 quilómetros entre o Norte de Banguecoque e a Birmânia, construído em 1943 pelos japoneses, recorrendo a mão-de-obra escrava e a 60 mil prisioneiros feitos entre as forças Aliadas durante o conflito. A “ferrovia da morte” fazia parte do plano nipónico de chegar à Índia e exercer aí o seu domínio. Ninguém parece saber quantas pessoas morreram ao longo da construção da via férrea. 50 mil, 100 mil, 200 mil. O pai de Flanagan, prisioneiro australiano número 335, sobreviveu e morreria aos 98 anos, no dia em que o filho entregava o original deste livro ao seu editor.

Richard Flanagan situa a acção principal deste romance no mesmo cenário de A Ponte sobre o Rio Kwai, livro de Pierre Boulle de 1952 que David Lean adaptou ao cinema, com o mesmo título, em 1957. É uma história de amor e de guerra, de morte e de perda, com muitas características de clássicos do género. Flanagan não inventa nem inova o género, mas dá-lhe um enorme sentido de intimidade além de uma desesperança muito actual. Há também um realismo extremo, o foco no detalhe, na descrição da brutalidade e da dor, de um sintoma de fome ou do modo como um homem é amputado sem qualquer tipo de anestesia. Uma longa náusea. A vida pode ser mostrada, mas nunca explicada, acredita Dorrigo Evans, e Flanagan carrega a crença da personagem como tarefa sua enquanto autor. Revelar por palavras. Como o hospital de campanha numa vista de rotina: “Levantou um pano de lona a desfazer-se e Dorrigo Evans seguiu-o através da narina dilatada da tenda na atmosfera fétida, tresandando a pasta de anchova e a merda, tão adstringente que lhes queimava as bocas. A chama vermelha e viscosa de uma lanterna de querosene dava a Dorrigo Evans a impressão de que a desolação saltava e se contorcia numa dança estranha e vaporosa, como se o bacilo da cólera fosse uma criatura no interior de cujos intestinos eles vivessem e se deslocassem. No extremo mais fundo do abrigo, um esqueleto, que exibia uma deterioração particularmente marcada, sentou-se e sorriu.”

No quadro geral, a guerra surge como cenário, tão longínquo quanto presente nas suas consequências, agente causador do que lhe interessa enquanto autor: o desespero e a solidão do homem, ou de alguns homens em particular, perante o horror, quando já não é possível acreditar no diabo porque há muito se deixou de crer que deus existe. “Um livro pode conter o horror, dar-lhe forma e sentido. Mas na vida o horror tem tão pouco de forma como de sentido. O horror limita-se a existir. E, enquanto reina, é como se nada mais houvesse no universo.” Estamos na intimidade do protagonista, um homem em fim de vida, cirurgião, alguém que não acredita na virtude porque, diz ele, a virtude não tem nada de redentor — “A virtude é a virtude, e, tal como o sofrimento, é inexplicável, irredutível, ininteligível” —, um homem tão paradoxal no comportamento quanto paradoxais e ambíguos são os sentimentos que assaltam quem está no limite da sobrevivência, como ele esteve quando chefiava uma unidade de 14 mil prisioneiros australianos em Sião (actual Tailândia) em 1943.

Dorrigo Evans não tem muito de virtuosismo nem de bravura. Muitas vezes cobarde, mulherengo, joga o jogo que é chamado a jogar como se espera que jogue. É alguém que assume a imagem que esperam que tenha e que vê reflectir-se no espelho num dia em que se barbeia, quando um homem barbeado parece não fazer qualquer sentido num campo de estropiados, famintos, moribundos. “Dorrigo Evans não é um representante típico da Austrália, como o não são os outros prisioneiros, voluntários vindos das margens, dos tugúrios e das regiões espectrais do seu grande país: pastores, armadilhadores, estivadores, caçadores de cangurus, empregados de escritório, laçadores de dingos e tosquiadores. São empregados bancários e professores, caixeiros, serventes e moços de fretes, beneficiários dos serviços sociais, vigaristas, gatunos, rufias, criados de mesa, criminosos, idiotas e tipos duros e assacanados filhos da depressão, criados em barracas e casebres sem electricidade, cujos pais tinham morrido ou enlouquecido na Grande Guerra e cujas mães sobreviviam de lições e esperança, em instalações militares, campos de acolhimento, bairros de tugúrios e barracas, num mundo do século XIX que subsistia em meados do século XX.”

Como Flanagan e o seu pai, Evans é da Tasmânia, e tal qual o pai de Flanagan foi o primeiro de uma família pobre a conseguir estudar. Antes da guerra, casa com a filha de um homem abastado, Ella, mas pouco depois apaixona-se pela segunda mulher do tio, Amy, durante a preparação das tropas para combater em Singapura. Essa paixão é central no livro, pretensamente descrita com a mesma intensidade usada na acção no campo de prisioneiros, trágica e cúmplice, mas sem o seu efeito demolidor, acabando por funcionar quase como uma novela autónoma no conjunto. A ideia de um contínuo, a de Amy enquanto obsessão eterna de Dorriga, falha em eficácia narrativa. Mas é também como se o amor de Dorrigo Evans e Amy fosse mais um sinal dessa falta de bravura que Evans revela — ou que Flanagan revela acerca de Evans —, um protagonista nada avassalador que parece sempre por se cumprir quando corre de mulher para mulher sem nunca abandonar Ella, sem nunca esquecer Amy, a quem recitava o Ulysses de Tenysson, incapaz de se achar merecedor dos louvores que lhe querem prestar enquanto herói de guerra depois de chegar vivo à Tasmânia em 1945 e até ao resto da vida.

E é nesse resto de vida que Dorrigo começa por chegar aos leitores, falando de um poeta japonês, Shisui, que desenhou um círculo enquanto poema de morte. Este livro é o poema final de Dorrigo Evans, amante da poesia de Kipling, Celan e de Basho, o poeta do século XVII a quem Flanagan retirou o título do romance como síntese de um espírito de sabedoria. Ele partilhava o gosto por esse poeta com os carrascos do campo de prisioneiros, mas divergiam na sua interpretação. A “Linha”, para aqueles militares japoneses, iria levar “a beleza e a sabedoria de Basho à vastidão do mundo”. O círculo de Evans é traçado com avanços e recuos temporais numa cronologia muito própria, e, nesse caminho, fechar o círculo sem deixar pontas soltas é o desafio pessoal, que acaba por ser o grande desafio deste romance.