Quando desci à cave de Ulrich Seidl
O desfile de uma parada, a dos que reganham vida nas suas caves, reino da liberdade em relação ao controlo social – contra a propaganda da “normalidade”. Preparemo-nos para descer à cave com Ulrich Seidl – In the Basement, IndieLisboa.
Durante um breve período, colaborei com a equipa de pesquisa do filme In the Basement/Im Keller/Na Cave, de Ulrich Seidl, que passa dia 27 de Abril no IndieLisboa.
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Durante um breve período, colaborei com a equipa de pesquisa do filme In the Basement/Im Keller/Na Cave, de Ulrich Seidl, que passa dia 27 de Abril no IndieLisboa.
Foi há alguns anos, e a oportunidade deste trabalho surgiu assim como num pequeno país como a Áustria, com um panorama cinematográfico ainda mais pequeno, tantas coisas surgem. O gabinete de produção de Seidl fica perto do canal do Danúbio, em Viena, rodeado de grandes blocos de apartamentos de um amarelo-ocre sujo. Ali as casas escondem-se entre as brumas que pairam perto das instalações de aquecimento urbano – curiosamente, também no Verão. No restaurante que ficava a duas ou três ruas de distância, havia excelentes semanas da caça selvagem e, por vezes, o aroma da sopa de miúdos chegava ao chamado mezanino, o piso intermédio do cinzento edifício burguês com uma porta pesada. Isto parece tudo mais triste do que é na realidade. Ou talvez não. Talvez eu goste simplesmente desta atmosfera.
Sempre que a equipa se encontrava para conversar à volta da grande mesa de madeira da cozinha do gabinete, tomávamos o pequeno-almoço. Uma tarde, quando lanchávamos café e pão com compota, um colega mostrou-nos algo espantoso: a foto de um bebé no seu telemóvel. O praticamente recém-nascido, de grandes olhos azuis, estava com um ar bem-disposto. “Isto não pode ser verdade.” O colega voltou a olhar para o telemóvel, com ar incrédulo, abanando a cabeça. Nós não percebíamos.
“Encontrámos uma mulher que tem estes bebés. Produ-los e depois vende-os.”
“Na cave dela?”
“Não, mas o que não existe ainda pode vir a existir.”
Na Cave não é um documentário. Nunca foi pensado como tal e também não é errado dizer que ele já utilizou o seu “método ficcionalizante” nos seus outros “documentários”. O exemplo da “mulher dos bebés” é ilustrativo: no filme, ela fecha-se na sua cave e tira os corpos de plástico de caixas de cartão. Para lhes pegar, para os acariciar, para os levar aos pisos da casa onde entra a luz do sol e lhes explicar certas coisas: “Aqui é onde normalmente se senta o papá e, quando aqui está, não quer ser incomodado”, diz, mostrando ao bebé de silicone o escritório. De regresso à cave, volta a guardar cuidadosamente os objectos da sua afeição e fecha a porta. Tem de ficar lá em baixo o que deve permanecer enterrado.
A perversão é normal
“Não pediria aos actores que fizessem algo que lhes fosse completamente alheio”, diz Seidl sobre a génese desta sequência. A mulher, a cave, os bonecos, esses existem e condizem uns com os outros; Seidl limita-se a ordenar as coisas no filme de forma diferente de como se apresentam na realidade. Na melhor das hipóteses, mostra com elas mais do que a verdade – em todo o caso, mais do que poderia ver a “mosca na parede. “Por vezes, conheço as pessoas ao longo de meses, passo tempo com elas e observo como fazem o seu dia-a-dia”, observa Seidl. “A partir desta experiência e reflectindo sobre ela – o que poderia fazer esta mulher na sua cave com as suas bonecas –, tive a ideia desta história e fi-la representar. Também concebo bem este método no sentido do actor, no sentido da história. Continuar com as coisas, ficcionalizá-las. Onde deveremos traçar o limite? Para mim, ele está na minha responsabilidade para com os actores. Quando penso que algo retira dignidade a alguém, ou que alguém é forçado a fazer alguma coisa de que, mais tarde, pudesse vir a envergonhar-se, não o faço.”
Seidl fica frequentemente surpreendido com a pesquisa, como ele diz, e o mesmo aconteceu connosco. Vimos muita coisa enquanto procurámos caves, sobretudo em Viena e nos arredores, em que as pessoas pudessem fazer coisas bizarras. Foi nessa altura que estive pela primeira e – se depender de mim – última vez numa feira de sexo. Encontrámos sempre, sem excepção, nuances da normalidade.
Por exemplo, o casal em que ela manda o amado lamber o assento da tampa da sanita, para depois o recompensar pendurando-o pelos testículos, talvez não pratique a sua sexualidade como a maioria (dos austríacos?). Mas nem sempre não fazemos aquilo que não queremos.
Diz um ditado, “quando tiveres vontade de rir, vai para a cave”, o que significa ir para um esconderijo quando não quisermos que ninguém veja que a vida nos corre bem e estamos felizes. Respeitabilidade, conservadorismo e catolicismo: assim se produz uma imagem austríaca, também adequada ao eleitorado do país, por oposição à liberalidade e até à libertinagem sexual.
“Penso que, nos extremos, mostramos sempre algo de normal”, nota Seidl. O realizador de 62 anos é tímido e reservado, e não o faz por pose. É considerado um interlocutor difícil, em parte porque é muitas vezes empurrado para uma posição em que tem de se “justificar” por um olhar que “expõe”.
Os retratos humanos universalmente válidos, por assim dizer, representam nos filmes de Ulrich Seidl uma via de acesso importante. Precisamente numa sociedade em que são correntes as visões absolutamente heróicas de como devemos ser, sendo, ao mesmo tempo, senhores de nós próprios – em termos económicos, sujeitos que gerem as suas vidas, mas são também “dominados” pela sua economia pulsional –, as pessoas são interessantes como seres com instintos e pulsões que são e sempre continuarão a ser. Nesta medida, as pessoas que encontramos nos filmes de Seidl contrariam uma utopia burguesa, uma propaganda daquilo a que se chama “normalidade” – e, naturalmente, a polémica é um dever da arte.
Esta polémica artística não requer um esforço teórico particular. A sua força reside em tornar visível como as pessoas – se não sobretudo, pelo menos em parte – também são. Designadamente, também são inestéticas, escravizadas por obsessões.
Isto resulta, em grande parte, do facto de entre a busca da felicidade e o seu atingimento se interporem obstáculos (individuais e sociais) que quase as forçam a ter comportamentos desviantes; simultaneamente, porém, esses comportamentos são inevitáveis.
Se assim é, teremos de admitir que as chamadas perversões são, em larga medida, normais. Esta normalidade que, como todas as outras normalidades, pode resvalar para o abominável – por exemplo, o crime –, é o que mostram os filmes de Seidl, embora não se deva retirar daqui a conclusão de que este artista queira “apresentar” indivíduos como fenómenos marginais para os tornar desprezíveis.
Os temas de Seidl são “sensacionais”, em primeiro lugar, porque lançam luz sobre o que está oculto e, em segundo, porque trabalham com sensações fortes. Uma das estratégias estéticas do realizador consiste em eliminar as fronteiras entre a comercial tentativa de chamada de atenção (por exemplo, através da exibição da sexualidade) e a investigação profunda de um fenómeno.
Por conseguinte, no caso de Na Cave, não é importante saber se estas pessoas existem realmente pois, na autenticidade encenada de Seidl, elas representam algo que existe: a mais absoluta solidão. Desejo. Luto. “Absoluto” quer literalmente dizer desligado, separado, e o filme mostra como recorremos a substitutos quando nos sentimos isolados e como a satisfação substitutiva, na sua irrealidade fantasmagórica, nos gratifica. “Uma vez”, diz o realizador, “reparei que as caves da maior parte das casas estão muito mais bem decoradas que as áreas sociais. Isto não diz muita coisa?”
Na casa em que Seidl cresceu, na região denominada Waldviertel, perto da fronteira com a República Checa, também havia uma cave: “Quando éramos pequenos, tínhamos um medo terrível de lá ir. Era fria, escura, um bom sítio para fechar alguém. Eu próprio fui lá fechado muitas vezes.”
Numa casa domina, por si só, uma tensão dialéctica que, nalguns casos, só na cave se desfaz. Trata-se da dialéctica entre o que é acessível publicamente e aquilo que, por razões privadas, permanece fechado. Pela obra de Seidl desfila uma parada de pessoas que reganham vida na cave, onde reina a liberdade em relação ao controlo social.
A estratégia do realizador – a sua arte de agir eficazmente por meio das sensações – trabalha Na Cave com uma espécie de bilhetes-postais em movimento que, não raro, se transformam em mandados de captura e formam um panorama de comportamentos. Na montagem, através dos espaços em branco que deixa e da ordem que encontra, Seidl dá mais um passo rumo à abstracção.
Num ponto central no filme, o trompetista Josef Ochs toca-nos um tema popular e confessa, já visivelmente etilizado: “Eu bebo demais.” Comunica com a mulher a partir da cave batendo num tubo de aquecimento que vai até ao piso de cima. Do lado dela, por exemplo, duas pancadas significam que a comida está na mesa.
Pouco depois, Ochs conta-nos, comovido, como na altura teria gostado de trazer imediatamente para a cave o seu presente de casamento, um retrato do Fuhrer, para ali o pendurar na parede. “As colecções devocionais não são crime”, declara para a câmara, bem informado. Políticos locais de um partido popular que, mais tarde, festejam alegremente com Ochs numa pequena divisão da cave, sob o retrato de Hitler, fazendo acaloradas saúdes, tiveram de se demitir após o lançamento do filme. Lamentavam, disseram. Deixarem-se filmar num espaço de culto nazi fora “uma péssima ideia”.
“Não vejo os meus filmes como instrumentos de denúncia, nem mesmo em relação à política actual”, diz Seidl. “Vejo os meus filmes como políticos, sim, mas não quero lançar o descrédito sobre os meus actores ou fazê-los cair em desgraça. Os meus actores representam a generalidade das pessoas. Afinal, pego em coisas que acontecem na realidade e enceno-as. Capturo a realidade intencionalmente, não surpreendo os actores; só filmo aquilo que os vi fazerem. É assim que vejo Josef Ochs na sua cave, rodeado dos seus objectos de devoção nazis, eu e muitas pessoas na Áustria – acontece o mesmo um pouco por todo o lado.”
Num olhar mais ou menos sistematizador, podemos aperceber-nos de que é feito na cave um retrato do Estado e da sociedade: o amor de mãe – uma célula nuclear do Estado; a instituição de uma arte sem escala – um desejo de arte em ponto morto que funciona através da imaginação; a obscenidade política, que mantém letais pretensões ao poder a coberto da convivialidade; e, por último mas não menos importante, uma sexualidade que tem de ser encenada para ser vivida voluptuosamente: “Quando eu quero ser muito dominadora, vou com ele para a cave”, diz a amantíssima dominatrix ao seu limpador orgânico de sanitas. E se olharmos para as cenas de sexo tal como Seidl as olha com a sua câmara, temos de reconhecer que elas são antipornográficas.
O momento mais forte de Na Cave pertence, de resto, a uma mulher. Frente a uma parede fracamente iluminada, está numa divisão subterrânea e conta como perdeu o homem que sempre lhe bateu. Bem, ela também o esfaqueou, mas isso é outra história. Segundos antes vimo-la curvada sobre uma mesa, com as nádegas nuas oferecidas ao seu senhor, para que a chicoteie. “Preciso disto”, diz, e os seus gemidos de prazer ecoam no pensamento quando ela, diante da parede e com o corpo todo artisticamente amarrado, encoraja outras mulheres a seguirem o seu exemplo: “Deixem os vossos maridos violentos, há sempre uma saída.” (E, com isto, talvez ela queira dizer uma saída sem violência.)
Nesta sequência culmina muito daquilo que o trabalho global de Seidl constitui: ele confronta o espectador com uma ambivalência que incomoda, que irrita, que suscita questões em vez de lhes dar resposta. Um incómodo que acontece e que, em certas circunstâncias, também é agradável. Seidl sabe que deve isso às suas personagens, porque as ama: ele não trai a sua dignidade; pelo contrário, porque elas puderam retirar-se a sua singularidade, o seu tratamento exige um respeito fundamental.
“As pessoas que mostro não são freaks”, diz Seidl. “São pessoas normais que não estão totalmente ancoradas na norma social. Mas é assim que a maioria aparenta ser. Acho que é uma perspectiva arrogante, tanto de um certo público como dos críticos, quando se distanciam deles e os consideram freaks.”
Quando vi Ulrich Seidl beber café, era sempre forte e negro. O café e as roupas que veste. Casaco preto, calças pretas e botas de pele. Um autêntico cowboy citadino num gabinete de produção, um pouco como um proxeneta acanhado, provindo do meio intelectual.
“Não procuro de modo nenhum fazer filmes psicologizantes”, diz, “com o lema, esta pessoa agora é assim porque viveu isto e aquilo na sua infância. Não, isso seria demasiado simples. O espectador retira muito mais quando é convidado e desafiado a relacionar consigo próprio aquilo que vê. Quero, sim, que o espectador olhe para si mesmo através daquilo que vê. Ao princípio, isso pode ser doloroso, porque conduz ao conhecimento. Mas o conhecimento também é libertador, e muitas pessoas ficam gratas por isso.”
Seidl sente-se muito próximo de Thomas Bernhard. “Também ele tematizou verdades desagradáveis, como eu, com muito humor. Quando leio Bernhard, muitas vezes não consigo impedir-me de rir alto.”
O próximo trabalho de Seidl será um filme histórico, baseado num argumento que escreveu há já 20 anos com o realizador austríaco Michael Glawogger, que morreu inesperada e tragicamente em 2014. A figura retratada será Grasl, herói lendário que era conhecido e temido há 200 anos, na Áustria, como uma espécie de Robin dos Bosques. Em tempos de monarquia e guerras napoleónicas, lutou com os seus próprios meios contra as enormes diferenças entre ricos e pobres. “Era um ladrão e um criminoso. Durante muito tempo, ninguém o conseguiu apanhar, mas acabaram por o enforcar aos 26 anos.” Um dos temas centrais do filme será “a criminalidade que surge porque não se consegue viver de outra maneira ou porque não se pode viver com dignidade”.
As pessoas são também rebeldes, nas suas caves? “Não creio”, responde Seidl. “Essas estão presas lá em baixo, com os seus problemas e as suas ânsias. E tenho muita, muita simpatia por elas.”