De Caligari a Fassbinder
Dois filmes, incluídos na secção Director’s Cut, levam-nos ao encontro de épocas e figuras determinantes na história do cinema alemão – do tempo da república de Weimar ao tempo de Rainer Werner Fassbinder.
Sem ser uma ilustração tintim por tintim, o essencial da tese de Kracauer é recuperado: o cinema de Weimar, com a sua atracção por Caligaris, Mabuses e outras figuras demoníacas, teria sido uma longa premonição da catástrofe hitleriana que haveria de surgir. Há aqui, evidentemente, um lado mitológico – quase “poético” – que não entra necessariamente em choque com o rigor da análise histórica, nem com o facto de o próprio Caligari (no filme de Robert Wiene feito em 1920) não ter nascido do nada e ter ele próprio uma genealogia a precedê-lo. Essa questão mitológica, o modo como a cinematografia de Weimar insistiu na reiteração de uma série de traços e fantasias eminentemente germânicas, cultural e psicologicamente, ocupa uma boa parte das preocupações do filme de Suchsland. Mas, ao mesmo tempo, interessa-lhe falar de um país que “desapareceu”, essa Alemanha de Weimar, mas que ficou inscrito no seu cinema, e é também à procura do “rosto” da República de Weimar que Suchsland parte.
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Sem ser uma ilustração tintim por tintim, o essencial da tese de Kracauer é recuperado: o cinema de Weimar, com a sua atracção por Caligaris, Mabuses e outras figuras demoníacas, teria sido uma longa premonição da catástrofe hitleriana que haveria de surgir. Há aqui, evidentemente, um lado mitológico – quase “poético” – que não entra necessariamente em choque com o rigor da análise histórica, nem com o facto de o próprio Caligari (no filme de Robert Wiene feito em 1920) não ter nascido do nada e ter ele próprio uma genealogia a precedê-lo. Essa questão mitológica, o modo como a cinematografia de Weimar insistiu na reiteração de uma série de traços e fantasias eminentemente germânicas, cultural e psicologicamente, ocupa uma boa parte das preocupações do filme de Suchsland. Mas, ao mesmo tempo, interessa-lhe falar de um país que “desapareceu”, essa Alemanha de Weimar, mas que ficou inscrito no seu cinema, e é também à procura do “rosto” da República de Weimar que Suchsland parte.
Muitos realizadores e muitos filmes são evocados, mas dois pólos são encontrados entre Fritz Lang – a racionalidade pessimista – e Friedrich Wilhelm Murnau – o romantismo fantasmático. Apesar da fama “demoníaca” do cinema de Weimar, Suchsland não esquece o outro lado, seja o cinema de género (como o musical, que seria aquele que mais perduraria no cinema do nazismo) seja a tradição do filme realista, como o maravilhoso Mennschen am Sontag (Homens ao Domingo). Resulta, portanto, num objecto de considerável valor pedagógico, sobretudo para espectadores pouco iniciados na história do cinema alemão, bem escorado numa quantidade infindável de excertos de filmes da épocas, quase todos apresentados em imagens imaculadas – é daqueles filmes que dá vontade de partir para a visão (ou revisão) de outros filmes, e essa é uma virtude que não deve ser nada desprezada.
Flash-forward, e alguns anos depois, sensivelmente um mês depois do suicídio de Adolf Hitler, nascia Rainer Werner Fassbinder. É ele o sujeito de Fassbinder – To Love without Demands, realizado por Christian Braad Thomsen, de há muito um especialista na obra fassbinderiana (a sua monografia sobre o cineasta foi traduzida e publicada pela Cinemateca em 2006, por ocasião da integral Fassbinder). O filme é, de certa forma, uma história de Fassbinder, entre a biografia, a obra, e as relações entre a biografia e a obra. E, obviamente, mais uma vez, a História, sendo certo que muito do trabalho de Fassbinder foi um ataque directo, cheio de som e fúria, ou uma decomposição fria como uma autópsia, da geração precedente, a geração dos “pais”, a geração que permitiu Hitler e provavelmente, pelo menos nalgum ponto, simpatizou com ele.
Para além do profundo conhecimento que Thomsen tem da obra de Fassbinder, e que lhe permite estruturar o filme numa série de capítulos tematicamente definidos com todo o rigor, o grande ponto de interesse de To Love Without Demands é a quantidade de material com a presença de Fassbinder em discurso directo, parte considerável dele filmado pelo próprio Thomsen nos anos 70. Vê-se Fassbinder em muitos estados diferentes, do jovem enragé ao homem prematuramente envelhecido, prestes a sucumbir àquilo a que um dia Godard chamou “uma overdose de obrigações criativas”. Mas Thomsen convoca também alguns dos sobreviventes da “família alternativa” de Fassbinder, aquele grupo de actores que o foi acompanhando de filme a filme durante os escassos 13 anos que durou a sua vida de realizador – e é particularmente interessante o depoimento de uma das figuras mais discretas dessa troupe, a silenciosa Irm Hermann. Como To Love Without Demands também é um objecto de devoção, Thomsen conclui o filme a narrar uma fantasia sua: que encontrava Fassbinder e que este lhe dizia que tinha estado de férias prolongadas na Nova Zelândia a recarregar as baterias, estando agora pronto a voltar à actividade. Nesse ponto pensamos com os nossos botões: “a falta que fazia um Fassbinder no cinema contemporâneo”. Para quem tenha um conhecimento superficial da obra do realizador alemão (que faria em 2015 setenta anos, seria ainda um homem “jovem”), este filme explica bem que falta é essa.