O devir-negro do mundo
O cientista político Achille Mbembe propõe reconciliar os múltiplos rostos da Humanidade.
A cada ameaça ou tendência nefasta, parece responder com um livro: “Aqui está. Podem ler.” Crítica da Razão Negra, de Achille Mbembe, é uma obra que exemplifica muito bem esse “cuidado” pedagógico, não paternalista, desta editora refractária. As crianças, as mulheres e os homens que desaparecem no Mediterrâneo, o recrudescimento do racismo na Europa e nos EUA, a mercantilização da vida que a marcha do capitalismo vai instalando são “realidades” que abrem, continuamente, as suas páginas.
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A cada ameaça ou tendência nefasta, parece responder com um livro: “Aqui está. Podem ler.” Crítica da Razão Negra, de Achille Mbembe, é uma obra que exemplifica muito bem esse “cuidado” pedagógico, não paternalista, desta editora refractária. As crianças, as mulheres e os homens que desaparecem no Mediterrâneo, o recrudescimento do racismo na Europa e nos EUA, a mercantilização da vida que a marcha do capitalismo vai instalando são “realidades” que abrem, continuamente, as suas páginas.
Como o autor sublinha, Crítica da Razão Negra não é uma história das ideias, nem um exercício de sociologia histórica. Consiste, antes, numa “sequência” de ensaios curtos que vão construindo uma crítica política da raça, do racismo e do colonialismo. Formado em História e Ciência Política, Mbembe problematiza o pensamento de vários autores europeus para lembrar a indiferença geral do Iluminismo ao tráfico atlântico de escravos ou a dos governos e intelectuais europeus à violência do potentado colonial. A sua denúncia, embora subtil e elegante, nunca deixa de ser assertiva. A colonização e o euro-centrismo são objectos de uma crítica histórica contundente, e sempre actualizada, tal como o próprio conceito de raça, numa passagem notável: “A força da raça deriva precisamente do facto de, na consciência racista, a aparência ser a verdadeira realidade das coisas. Por outras palavras, a aparência não é contrário da ‘realidade’.”
Para a fabricação deste conceito e para o seu aviltamento, argumenta Achille Mbembe, a Europa mobilizou duas noções de “África” e “Negro” que coisificaram homens e comunidades, colocando o Negro numa zona de indiferenciação entre homem e animal. É nessa herança terrível que o autor implica o leitor, trazendo-o para o centro de um debate com várias teorizações da emancipação negra e da crítica da raça. No capítulo final, e contra o presente, Mbembe percorre os contributos de Marcus Garvey, Aimé Césaire, Frantz Fanon e Nelson Mandela. O do autor de Os Condenados da Terra surge como o mais delicado e glosado. Não será despropositado dizer que a posição de Achile Mbembe sobre o uso da violência na teoria de Fanon surge ambígua. Sem a subscrever de modo absoluto, Mbembe afirma que no mundo actual, com os seus muros, enclaves e fronteiras, “o grande apelo de Fanon para o declosão do mundo não pode deixar de ter eco”. Eis uma intuição que apetece contrariar com uma frase de Hannah Arendt (também ela citada ao longo do livro): “A prática da violência, como toda a acção, transforma o mundo, mas a transformação que mais provavelmente obterá terá por resultado um mundo mais violento.”
Felizmente, em Crítica de Razão Negra não faltam outros caminhos. Logo a seguir, no texto sobre Mandela, Mbembe evoca as coisas fundamentais que aquele encontrou na prisão, “aquilo que jaz no silêncio e nos pormenores”: “Tudo lhe falará de novo: a formiga que corre não se sabe para onde, a semente escondida que morre, depois ergue-se, criando a ilusão de um jardim no meio do betão, do cinzento dos miradouros e das pesadas portas metálicas que se fecham com grande estrondo na sua prisão.” Mas “como passar do estatuto do ‘sem parte’ ao de ter ‘direitos’? Como participar na estrutura deste mundo e na sua divisão por todos”? A estas perguntas, feitas pelo autor, o ensinamento de Mandela — estar preso, sem ser escravo de ninguém — oferece uma resposta que pode “reconciliar os múltiplos rostos da Humanidade”, em solidariedade com a própria Humanidade. A reconciliação não será fácil. Na introdução, escrita em 2013, Mbembe lembra que a violência do capitalismo — de que o tráfico atlântico de escravo e a colonização dos séculos XIX e XX foram momentos históricos — está afligir a própria Europa, estendendo os seus processos de abstracção e classificação a outros homens. Assim, a palavra “negro” deixará de significar apenas o homem de tez escura, mas todos os outros. Toda a Humanidade subalterna correrá o risco de se tornar negra. A este processo, Mmebme chama um devir-negro do mundo. E a sua ameaça é tanto mais aterradora quanto outras desigualdades vão sendo engendradas.