200 anos depois, eles ainda são os Guimaraens

Fundaram uma das firmas mais consagradas do vinho do Porto, tornaram-se ingleses, regressaram às origens e já falam português sem sotaque.

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No dia 8 de Abril de 1815, um escrivão da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro registou numa caligrafia burilada com os salamaleques da época a compra de 32 pipas de vinho do Porto pelo negociante João dos Santos Fonseca. A transacção estaria condenada a perder-se nesse imenso labirinto burocrático que guardou na memória o destino de milhões de pipas de vinho se não contasse o primeiro capítulo de uma saga familiar que por estes dias comemora dois séculos. Uma saga que combina jeito para o comércio, paixão pelo vinho e testemunha a ligação entre o Porto e a Inglaterra que se desenvolveu nos últimos 300 anos sob os auspícios do Port Wine.

Debbie, David e Christoph, a sexta geração dos Fonseca Guimaraens, são os rostos contemporâneos desse longo passado. Donos de uma parte da empresa que preserva o nome do patriarca, Manoel Pedro Guimaraens, conservam a nacionalidade (e a fisionomia) inglesa, apesar do nome de origem portuguesa com a grafia oitocentista. Lusos por simpatia mas britânicos por devoção, andaram cá e lá, entre Vila Nova de Gaia e Londres. Até há poucos anos, fizeram parte dessa comunidade fechada dos ingleses do Porto, que casavam entre si, que se reuniam em saraus no Clube Inglês e discutiam em inglês os negócios nos lendários almoços de quarta-feira na Feitoria Britânica. Hoje, os mais novos já falam português sem sotaque.

A cola que guardou esta família na memória é a sua capacidade de criar vinhos do Porto Vintage que alimentaram a devoção de várias gerações. “Tenho um enorme orgulho nessa herança e sinto uma enorme responsabilidade por a continuar”, reconhece David Guimaraens, 49 anos, o herdeiro da mais longa linhagem de enólogos da história do vinho do Porto — e provavelmente de qualquer vinho mundial; os Fonseca Guimaraens vigiam as vindimas e fazem os lotes de Porto desde 1860. “Nós olhamos para o passado da nossa família como uma corrida de estafetas, onde o testemunho passa de geração em geração”, nota Magdalena Gorrell Guimaraens, mãe de David. 

Manoel Pedro Guimaraens entrou na sociedade de João Santos Fonseca em 1820. Nascera em 1795 em São Romão de Ucha, Barcelos, no seio de uma família de proprietários rurais cuja origem remonta a 1258. Provavelmente estudou no seminário de Braga e foi cedo trabalhar para o Porto, onde se tornou defensor da causa liberal que, nessa época, ganhava lastro no seio da burguesia. O seu nome de nascimento era Manoel José Gonçalves Salgueiro e se numa determinada fase da sua vida teve de mudar de identidade foi muito provavelmente para evitar represálias políticas. Na Fonseca e Monteiro (era esta a designação da sociedade em 1820), a vulnerabilidade de Manoel Pedro às pressões absolutistas tornou-se um problema e uma oportunidade. Seguindo o destino de muitos outros resistentes, teve de se exilar. Mas levou consigo o encargo de abrir uma agência da empresa em Londres.

Em 1822, com 27 anos, Manoel Pedro parte numa viagem paga pela firma. O negócio prosperou e passados poucos anos torna-se um exímio intérprete dos rituais da burguesia dos negócios londrina. Veste-se nos melhores alfaiates, colecciona arte, reúne uma vasta biblioteca, inscreve-se na Royal Botanical Society, onde desenvolveu o hábito de cultivar pelargónios (plantas da família dos gerânios e das sardinheiras). Em 1834, casou com Georgiana Francis Pearson, filha de um advogado.

Entre os negócios, continua a acompanhar a evolução da política portuguesa. Assinava o Times, o Portuguez e o Portugal Ilustrated e correspondia-se com Almeida Garrett e com Fernandes Tomás, o fundador do Sinédrio, a associação secreta criada em 1818 para combater o domínio britânico em Portugal, exigir o regresso do rei D. João VI do Brasil e a instauração de uma monarquia constitucional. Amigos no Porto ou correligionários em Bruxelas ou em Paris escreviam-lhe dando conta dos avanços das tropas miguelistas ou dos projectos do duque de Saldanha e de D. Pedro.

Na viragem para a segunda metade do século XIX, a Fonseca começa a viver em dois andamentos. Os negócios em Londres corriam bem, mas a cabeça da empresa no Porto acumulava prejuízos. Manoel Pedro Guimaraens era já o principal activo da marca e, num gesto premonitório, o seu patrono e sócio, João dos Santos Fonseca, faz-lhe um pedido estranho: “Ele queria que o seu nome continuasse a fazer parte da marca, acontecesse o que acontecesse”, nota Madgalena Gorrel Guimaraens. Manoel Pedro acede ao pedido de forma indelével: chama ao seu primeiro filho Manoel Fonseca Guimaraens.

Em 1847, a firma do Porto entra em falência, mas Manoel Pedro consegue manter os negócios com a marca Fonseca. Os seus vinhos começavam a disputar o prestígio das criações dos grandes comerciantes britânicos, como a Cockburn’s ou a Sandeman. O vintage de 1847 foi muitas vezes considerado o melhor da primeira metade do século XIX. Em 1851, a Fonseca Guimaraens consegue mais um grande vintage. Embalado com este sucesso, os Guimaraens compram o que restava da empresa em 1863 por 225 mil réis. 

Manoel Pedro já não teve tempo de vida para assistir a esta evolução. Morreu em 1858, um ano depois de o seu filho Manoel Fonseca ter entrado na companhia. Por essa altura, junta-se-lhe o irmão Pedro Gonçalves Guimaraens, que é enviado para o Porto para supervisionar a produção de vinho. O sucesso da dupla é imediato. O vintage de 1863 atingiu preços elevados em Londres e o de 1868 foi assim considerado por Warner Allen, o mais influente crítico de vinhos da primeira metade do século XX, em 1931: “Um dos maiores, mais escuros e mais cheios de sabor vinhos secos que eu já provei.”

Após a morte de Manoel Fonseca, o seu filho, Charles Bruce, vendeu as suas quotas ao tio e aos primos. “Ele não gostava do negócio”, explica o neto, David. Passaria mais de meio século até que os seus descendentes regressassem à empresa. Neste compasso de espera, são os filhos de Pedro Gonçalves Guimaraens que assumem o controlo. Por meios próprios ou pela conveniência das alianças matrimoniais. Em Dezembro de 1867, Pedro casa com Helen Florence Fladgate, filha de John Anderson Fladgate, sócio da Taylor Fladgate & Yeatman e um dos homens mais poderosos do negócio nesse tempo — era o Barão da Roêda.

Nas primeiras décadas do século XX, a Fonseca diversifica os seus mercados. Exporta para vários países da Europa, incluindo a Rússia czarista, e chega a mesas e bares tão distantes como os de Rangum, Singapura, Yokohama ou Xangai. As vendas para a China apresentavam o vinho do Porto como um produto que dispunha ao mesmo tempo de propriedades calmantes e estimulantes. Apesar do sucesso, a empresa não consegue reunir músculo suficiente para resistir à Grande Depressão.

Em 1932, o Estado Novo limita as exportações de vinho a um terço das quantidades armazenadas, o que exige elevados investimentos na aquisição de stocks para se poder atingir a quantidade do que se pretende exportar. A II Guerra Mundial agrava o cenário. O comércio fica paralisado. Em 1943, a Fonseca tem de recorrer a empréstimos dos familiares. A produção de vinhos notáveis como o 1945 ou o 1948 não afasta os problemas. Sem possibilidades de resistir, a Fonseca Guimaraens é vendida ao seu principal credor, a Taylor’s, dominada pela família Yeatman.

A ligação da família à empresa, porém, ficaria garantida por Dorothy Guimaraens, que, cumprindo a velha paixão familiar, se conserva à frente da sala de provas. Protagonizava o caso raro de uma mulher num mundo misógino — só muito recentemente foi permitida a presença de mulheres nos almoços da Feitoria Inglesa do Porto. Dorothy foi autora do notável vintage de 1955.

O mundo do vinho do Porto entrara na letargia. O regresso à animação anterior à guerra tardava. O dono da Taylor’s e da Fonseca, Dick Yeatman, era conhecido por gostar mais de vinho do que do negócio. Vendo-se sem descendentes, Dick tenta atrair uma nova geração à empresa. Convence Bruce Duncan Guimaraens, bisneto de Manoel Fonseca, a assumir a pasta da enologia e Huyshe Bower da parte comercial. Bruce, acabado de chegar do serviço militar no Gana, entra na empresa em 1956 e aprende as artes do vinho com a tia Dorothy.

Corpulento, desajeitado, voz tonitruante e dono de um humor sarcástico, Bruce tornou-se uma imagem de marca do vinho do Porto da segunda metade do século XX. Alguns dos seus vintage, como o 1963 ou o 1977, são lendários. A competência de Bruce e de Huyshe Bower leva o velho Dick Yeatman a oferecer-lhes uma quota na empresa. Da forma mais imprevista, os Guimaraens voltam a ser donos (ainda que em parte) da “sua” empresa.

Dick Yeatman morre em 1966 e no ano seguinte a sua mulher entrega a Taylor’s a Alistair Robertson, seu sobrinho. Alistair nascera no Porto, descendente de uma família inglesa com ligações antigas ao vinho do Porto.

A nova equipa multiplica as vendas dez vezes desde 1967, inaugura o sucesso dos LBV (late bottled vintage) modernos, lança o Fonseca Bin 27, uma das marcas que mais vendem no sector, e transforma o grupo Taylor’s (hoje Fladgate Partnership) num dos principais produtores de vinho do Porto. Alistair deixou a produção entregue a um Guimaraens e diz que na sua gestão não há preferências entre as duas mais valiosas marcas empresariais (a Taylor’s e a Fonseca): “É como ter filhos. Cada um pode ter um carácter diferente, mas não quer dizer que tenhamos de gostar mais de um ou de outro.”

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Três gerações dos Fonseca Guimaraens fotografadas na biblioteca da Feitoria Inglesa

Nos anos de 1990, uma nova geração chega à firma. Adrian Bridge, casado com Natasha, filha de Alistair, fora oficial do exército e trabalhara na banca de investimentos antes de assumir a gestão da empresa. No seu mandato, o grupo Taylor’s cresce ainda mais depressa. Quintas como a belíssima Eira Velha são compradas, empresas gigantes como a Croft ou negócios gourmet como a Wiese & Krohn, firma famosa pelos seus Porto colheita, são adquiridos. Adrian é um gestor puro e duro. Não desistiu do negócio do vinho, mas complementou-o com uma forte aposta no turismo. O Yeatman, o luxuoso hotel de Gaia, é uma aposta com a sua assinatura.

David Guimaraens, filho de Bruce, entra na empresa em 1990, após terminar os estudos em Enologia na Austrália. É o primeiro Guimaraens a falar um português perfeito. Estudioso, obcecado com a qualidade, David estreou-se na produção dos vinhos da Taylor’s e da Fonseca em 1994 e logo aí obteve duas pontuações de 100 pontos em 100 na revista norte-americana Wine Spectator — na sua história, a Fonseca produziu quatro vinhos com 100 pontos, sendo superada no capítulo dos “vinhos perfeitos” apenas por três châteaux de Bordéus (Latour, Pétrus e Yquem). Ao contrário dos enólogos da sua geração, David insiste que é um “crime” usar uvas do Douro na produção de vinho de mesa, que a sua excelência requer a majestade do vinho do Porto. 

Para ele, a criação dos Taylor’s ou dos Fonseca resulta apenas da aplicação de um saber depurado em décadas de experiência. “O meu pai deixou-me uma herança: o saber respeitar as uvas. Os grandes Porto são antes de mais um testemunho de respeito pela matéria-prima.” E é esse respeito que, muito mais do que a pequena quota de que dispõem na empresa (objecto de segredo), torna o papel dos Guimaraens na Fonseca e na Taylor’s indispensável.

Passados 200 anos, esta família de britânicos continua a viver e a respirar vinho. Se David é enólogo, Christophe vende produtos de enologia e Debby trabalha na exportação de rolhas para espumantes. “A nossa história está nos vinhos que fomos fazendo lá para trás”, nota David. Num jantar comemorativo na Feitoria Inglesa, provou-se um 1963 e o que se pode dizer é que essa é uma excelente história.