Histórias de horror à partida, intolerância à chegada

Muitos refugiados têm histórias que emocionam o público em países europeus, mas a maioria chega à União Europeia para enfrentar uma retórica contra a imigração e os estrangeiros.

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Grupo de sírios depois de chegar à ilha grega de Lesbos Angelos Tzortzinis/AFP

Para Laurens Jolles, representante do ACNUR em Itália, esta retórica está a impedir que se tome a medida mais capaz de travar, já, as mortes de imigrantes no Mediterrâneo: um programa forte de salvamento no mar.

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Para Laurens Jolles, representante do ACNUR em Itália, esta retórica está a impedir que se tome a medida mais capaz de travar, já, as mortes de imigrantes no Mediterrâneo: um programa forte de salvamento no mar.

O nível micro dava já uma ideia do que se aproximava – com o tempo quente, o início do ano mostrava um enorme aumento de desembarques de migrantes face ao ano anterior, e 2014 tinha já batido todos os recordes de chegadas por mar, cerca de 220 mil, quase quatro vezes mais do que o pico anterior, em 2011, o ano das chamadas primaveras, em que chegaram à UE 58 mil pessoas em barcos.

Em 2014 registaram-se 3500 mortes, também muito mais do que as 1500 mortes no Mediterrâneo de 2011. Se se confirmarem as mortes dos dois últimos grandes naufrágios, nos primeiros meses de 2015 morreram tantas pessoas como em todo o ano de 2011.

A agência europeia das fronteiras Frontex estima que este ano possam chegar à Europa entre 500 mil e um milhão de pessoas, enfiadas em grupos de centenas em barcos periclitantes sem quaisquer condições.

A construção de muros em Espanha, Grécia e Bulgária levou as rotas a passar para o mar. A multiplicação de conflitos leva cada vez mais pessoas a tentar a viagem.

As condições das viagens são cada vez piores – muitas vezes, os traficantes de pessoas deixam o barco, em piloto automático, os chamados “navios fantasma”. Os sobreviventes descrevem como nunca sabem para onde vão. Chegam a Malta ou à Grécia pensando que estão em Itália.

Ali, esperam-nos campos de acolhimento ou detenção e poucas perspectivas. Numa tirada especialmente chocante, o presidente da Câmara da ilha grega de Kos, perto da cidade turca de Bodrum, disse na semana passada que não dava nem uma garrafa de água aos refugiados que chegam à ilha, porque estes afastam os turistas.

Nas ilhas gregas, muito mais perto da costa turca do que as ilhas italianas da costa líbia, os refugiados chegam aos grupos de 40, 50 pessoas em barcos que deveriam levar no máximo dez. A escala de morte em cada naufrágio é menor. Mesmo assim, cemitérios em ilhas como Lesbos têm secções com campas de mortos no mar. A maioria está marcada com placas dizendo: “Afegão 1, Afegão 2” ou simplesmente “X, imigrante”, e a data em que foram encontrados. Ao fim de três anos, as campas são removidas.

Na travessia para Itália, são mais comuns navios maiores, mais velhos, que levam mais pessoas e muitas vezes param no meio do mar, e se viram com o peso da deslocação das pessoas para um lado quando é avistado um navio que poderá ajudar. Vários naufrágios aconteceram assim.

Centro de asilo atacados
“Teria feito o que fosse preciso para chegar aqui”, contou o sírio Moutassem Yazbek, 27 anos. Maus-tratos, dias no mar, medo. “Valeu a pena”, diz Yazbek, que depois de Itália conseguiu chegar à Alemanha.

A maioria dos que chegam às costas da União Europeia querem seguir para outros países onde tenham mais perspectivas – Alemanha, Suécia, Reino Unido.

A Alemanha orgulha-se de ser o país que mais asilos concedeu (embora se for vista a proporção entre refugiados e população, o primeiro é a Suécia seguida de Malta). Mas no início do mês, um ataque a um edifício acabado de renovar para se transformar num centro de refugiados em Tröglitz (sem fazer vítimas) deixou o país a debater a sua tolerância face aos requerentes de asilo. Estatísticas mostram que não é um caso isolado: no ano passado houve 150 ataques contra locais destinados a receber refugiados. Em 2014, o número de requerentes de asilo no país aumentou para 173 mil. Este ano já houve 47 ataques, diz a associação ProAsyl, quando se espera que cheguem ao país 300 mil pessoas a pedir estatuto de refugiado.

Em todo o mundo, os refugiados concentram-se em países em desenvolvimento – o Paquistão à cabeça em termos absolutos, o Líbano por número de refugiados face à população. Mas cada vez mais é na Europa que se procura asilo: segundo o ACNUR, 48,91% de mais de um milhão de pedidos de refugiados em todo o mundo (mais concretamente, 1.051.389) de 2014 foram feitos em países da UE.

Como é impossível pedir asilo sem se estar fisicamente no país, a maioria das pessoas que fazem a travessia do Mediterrâneo fazem viagens de semanas ou meses até chegar a um porto para partir.

Daqui chegam histórias de horror. Na Líbia, onde se concentram muitas das partidas, quem quer passar espera muitas vezes em armazéns, fábricas, caves, nas mãos dos traficantes longe dos olhos das autoridades. Este mês, um barco chegou a Itália com dezenas de eritreus com queimaduras graves. Na fábrica desmantelada onde estavam houve um derramamento de químicos e um incêndio. Os traficantes puseram-nos num barco em direcção a Itália.

E se muitos dos refugiados têm histórias que emocionam o público em países europeus – num dos barcos chegados a Itália vinha uma nigeriana do Norte do país em fuga do Boko Haram – quando chegam à UE enfrentam esta retórica contra a imigração e os estrangeiros. E “por causa das eleições e da crise económica, é difícil aos partidos que tradicionalmente não seguiriam estas linhas contrariar a retórica com a força que deveriam”, queixa-se Jolles. Assim, o responsável teme que as medidas a apresentar pela União Europeia (no próximo mês) tenham como principal objectivo “impedir a chegada destas pessoas à Europa em vez de gerir o fluxo e perceber o que fazer com elas quando chegam”.