Herberto Helder e o senhor Oliveira
João Pedro George coleccionou tudo o que se escreveu sobre Herberto Helder, em jornais e revistas, após a sua morte, e publicou o resultado do seu trabalho de sociólogo enxertado em mitólogo no jornal on-line Observador, com o título Herberto Helder: sociologia de um génio. Seguindo canónicos preceitos, começa por apresentar o objectivo do seu trabalho: “Perceber como se fabrica um ‘herói’ literário e avaliar as crenças que sustentam a literatura.” Na análise que faz do “mito Herberto Helder”, o mito tem um sentido próximo do que na sociologia de Durkheim se chama “representação colectiva”. Mas a grande autoridade que paira sobre todo o artigo é Pierre Bourdieu, sob a forma de versão simplificada e catequista da análise da génese social do campo literário aplicada ao “funcionamento do meio literário português”, de modo a mostrar como se construiu um mito em torno de Herberto Helder. É verdade que muito do que se escreveu nesses dias sobre o poeta, como sempre acontece nestas ocasiões, é um fluxo razoável de ridicularias, asneiras e palavras vazias. Mas o laboratório georgiano, de onde devia sair ciência pura, capaz de revelar no corpus de textos recolhidos todas as “mitificações”, afinal labora no erro. O primeiro erro fundamental é o de não perceber que é preciso distinguir entre o cidadão Herberto Hélder [com acento no “e”] Bernardes Oliveira e a figura do poeta elaborada na obra — uma figura à qual assimilamos, simplificando um pouco, a figura autoral de Herberto Helder. Insurge-se João Pedro George contra os mitificadores: “Como se Herberto Helder e Herberto Helder Luís Bernardes Oliveira não fossem uma e a mesma pessoa.” Na perspectiva do mitólogo, através da “duplicação de personalidades” (entramos assim no diagnóstico psiquiátrico) realiza-se um processo de automitificação. Daí que, para não cairmos nas suas manhas, devêssemos interromper o poeta mitificador e os seus adjuvantes (isto é, todo o “meio literário”) e gritar-lhe: “Quem és tu, ó Herberto, para te tomares por Herberto Helder e fazeres de conta que não és o Bernardes Oliveira?”. O pressuposto de João Pedro George, que invalida toda a sua análise, impede-o de compreender o que é da ordem de uma exigência puramente literária e o que é da ordem da realidade. O mito do poeta Herberto Helder é consubstancial à obra. Não é uma mera representação colectiva, uma construção que deve ser desmitificada pela sociologia, mas é para ser lido e interpretado. Ou então fica-se irremediavelmente no exterior, como acontece sempre a João Pedro George. Mas o cidadão Herberto Bernardes de Oliveira nunca teve nada de mítico: não desapareceu, não era um eremita, conviveu com um vasto círculo de amigos em lugares públicos e — dizem — até entrava com alegria no jogo mundano. Atribuindo-me João Pedro George uma modesta participação no coro da mitificação, devo esclarecer que quando falei, num artigo sobre o poeta, em “solidão essencial” (que o autor cita como se eu estivesse a colaborar no mito de um Herberto solitário), não estava a presumir a solidão do homem que nasceu na Madeira em 1930 e morreu em Cascais há menos de um mês. Referia-me a uma solidão de que fala Blanchot, lendo Mallarmé, imanente ao “espaço literário”. E, ao contrário do que diz, não critiquei as fotografias publicadas no Expresso por elas serem desmitificadoras, ao mostrarem “um homem normal e corrente, perfeitamente integrado na vida”. Critiquei-as por elas mostrarem de maneira obscena o que Herberto Helder sempre achou que devia ausentar-se por exigência da obra: o senhor Herberto Bernardes Oliveira e a sua contingência biográfica. Mas isto — e tudo o que à literatura diz respeito — é completamente insondável para o catecismo sociológico de João Pedro George.
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João Pedro George coleccionou tudo o que se escreveu sobre Herberto Helder, em jornais e revistas, após a sua morte, e publicou o resultado do seu trabalho de sociólogo enxertado em mitólogo no jornal on-line Observador, com o título Herberto Helder: sociologia de um génio. Seguindo canónicos preceitos, começa por apresentar o objectivo do seu trabalho: “Perceber como se fabrica um ‘herói’ literário e avaliar as crenças que sustentam a literatura.” Na análise que faz do “mito Herberto Helder”, o mito tem um sentido próximo do que na sociologia de Durkheim se chama “representação colectiva”. Mas a grande autoridade que paira sobre todo o artigo é Pierre Bourdieu, sob a forma de versão simplificada e catequista da análise da génese social do campo literário aplicada ao “funcionamento do meio literário português”, de modo a mostrar como se construiu um mito em torno de Herberto Helder. É verdade que muito do que se escreveu nesses dias sobre o poeta, como sempre acontece nestas ocasiões, é um fluxo razoável de ridicularias, asneiras e palavras vazias. Mas o laboratório georgiano, de onde devia sair ciência pura, capaz de revelar no corpus de textos recolhidos todas as “mitificações”, afinal labora no erro. O primeiro erro fundamental é o de não perceber que é preciso distinguir entre o cidadão Herberto Hélder [com acento no “e”] Bernardes Oliveira e a figura do poeta elaborada na obra — uma figura à qual assimilamos, simplificando um pouco, a figura autoral de Herberto Helder. Insurge-se João Pedro George contra os mitificadores: “Como se Herberto Helder e Herberto Helder Luís Bernardes Oliveira não fossem uma e a mesma pessoa.” Na perspectiva do mitólogo, através da “duplicação de personalidades” (entramos assim no diagnóstico psiquiátrico) realiza-se um processo de automitificação. Daí que, para não cairmos nas suas manhas, devêssemos interromper o poeta mitificador e os seus adjuvantes (isto é, todo o “meio literário”) e gritar-lhe: “Quem és tu, ó Herberto, para te tomares por Herberto Helder e fazeres de conta que não és o Bernardes Oliveira?”. O pressuposto de João Pedro George, que invalida toda a sua análise, impede-o de compreender o que é da ordem de uma exigência puramente literária e o que é da ordem da realidade. O mito do poeta Herberto Helder é consubstancial à obra. Não é uma mera representação colectiva, uma construção que deve ser desmitificada pela sociologia, mas é para ser lido e interpretado. Ou então fica-se irremediavelmente no exterior, como acontece sempre a João Pedro George. Mas o cidadão Herberto Bernardes de Oliveira nunca teve nada de mítico: não desapareceu, não era um eremita, conviveu com um vasto círculo de amigos em lugares públicos e — dizem — até entrava com alegria no jogo mundano. Atribuindo-me João Pedro George uma modesta participação no coro da mitificação, devo esclarecer que quando falei, num artigo sobre o poeta, em “solidão essencial” (que o autor cita como se eu estivesse a colaborar no mito de um Herberto solitário), não estava a presumir a solidão do homem que nasceu na Madeira em 1930 e morreu em Cascais há menos de um mês. Referia-me a uma solidão de que fala Blanchot, lendo Mallarmé, imanente ao “espaço literário”. E, ao contrário do que diz, não critiquei as fotografias publicadas no Expresso por elas serem desmitificadoras, ao mostrarem “um homem normal e corrente, perfeitamente integrado na vida”. Critiquei-as por elas mostrarem de maneira obscena o que Herberto Helder sempre achou que devia ausentar-se por exigência da obra: o senhor Herberto Bernardes Oliveira e a sua contingência biográfica. Mas isto — e tudo o que à literatura diz respeito — é completamente insondável para o catecismo sociológico de João Pedro George.