A morte da paisagem

Um retrato da morte, real e metafórica, de uma Inglaterra rural, vista por um Naipaul em dificuldades para ver as pessoas que existem para lá das aparências

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Naipaul: uma certa sobranceria, mais do que misantropia Cláudia Andrade/Arquivo

A badana onde se lê a informação biográfica de V. S. Naipaul, neste O Enigma da Chegada, quase funciona também como sinopse do livro. Inédito em Portugal, onde, felizmente, já tinham sido publicados vários dos mais conceituados livros do autor, esta obra vem descrita como o mais autobiográfico dos seus romances. O que nesta afirmação suscita desconfiança, depois de lido o livro, não é o facto de ser autobiográfico, é a categorização como romance.

Quem primeiro lhe chamou romance terá sido o próprio autor ou o seu editor original, em língua inglesa (onde leva também o subtítulo: “a novel in five sections”), mas a verdade é que não só o que no livro é relatado encaixa na biografia conhecida de Naipaul, fazendo assim cair por terra o lado ficcional, como a natureza da narração só com muita benevolência do leitor pode ser vista como um romance. Isto, claro, são questões menores, ainda que possam influenciar a recepção de leitores que tenham lido os fabulosos A Curva do Rio ou Uma Casa para Mr. Biswas, por exemplo, e esperem encontrar em O Enigma da Chegada um “romance” com a mesma riqueza.

O que constitui a quase totalidade deste livro é a observação — e consequente reflexão — daquilo que rodeia o autor, num período específico da sua vida, quando alugou uma casa nos terrenos de uma mansão, no Wiltshire, em Inglaterra, 20 anos depois da sua primeira chegada ao país, vindo da sua Trindade natal, nas Caraíbas, para estudar em Oxford, graças a uma bolsa que obtivera. Neste período que domina a narrativa temos, portanto, um Naipaul já com obra publicada, que se instala naquela casa onde encontra “a dádiva de uma segunda vida no Wiltshire, de uma segunda infância, […] mais feliz, da possibilidade de aceder […] a um conhecimento das coisas naturais, ao mesmo tempo que a realização do sonho infantil de uma casa segura no meio do bosque.”

Os passeios frequentes que o autor empreende pelos campos, e a descrição exaustiva que destes faz, lembram um pouco o processo diegético de W. G. Sebald, mas falta a Naipaul o talento encantatório do alemão para transformar o quase nada em prosa deslumbrante. A primeira das cinco partes deste romance é a mais enfadonha. As mais de cem páginas que Naipaul dedica a falar dos campos poderiam facilmente ser reduzidas a metade, se fossem cortadas as repetições a que recorre uma e outra vez e que dão a sensação de ser um velho senil quem nos conta a história, porque mesmo à décima referência a um determinado facto parece estar a contá-lo pela primeira vez, parece ter-se esquecido — o narrador e não o leitor — de que já o contara nove vezes.

O tema central desta narrativa é a mudança, é por isso que o narrador se detém perante cada conjunto de árvores, cada construção, cada riacho, vezes e vezes sem conta. De cada vez que os descreve quer alertar para uma pequena mudança ou para um pormenor em que antes não reparara. O que torna o mecanismo cansativo é o facto de descrever e contextualizar e inserir na paisagem sempre o conjunto completo, para dar conta de uma mudança ínfima.

Todas estas mudanças são também uma espécie de morte, real ou metafórica, são um retrato da decadência que se abate sobre aquele recanto de mundo. É o próprio autor que diz, na última parte: “A morte era o tema; talvez tivesse sido o tema o tempo todo. A morte e o modo como a encaramos.” É neste último detalhe, “o modo como a encaramos”, que reside o factor de interesse deste livro, porque se não fossem os apontamentos do narrador — infelizmente muito mais diluídos entre a descrição do que seria desejável — sobre a forma como sente as mudanças que testemunha, o romance seria intragável.

Não é por acaso que se falou, até agora, apenas do narrador. A verdade é que há uma certa sobranceria, mais do que misantropia, de Naipaul para com os outros habitantes daquela zona rural. Ao contrário do que acontece em Para Além da Crença, onde o autor faz uma reportagem por alguns países convertidos ao islamismo, debruçando-se profundamente sobre as vidas das pessoas comuns e contando a história da conversão do país através das histórias individuais, neste O Enigma da Chegada, por não ser uma reportagem, o narrador não se preocupa com essa investigação do outro, não demonstra essa abertura para conhecer. O conhecimento que adquire e que partilha com o leitor chega-lhe de forma involuntária e é tratado com a já referida sobranceria, tipificando e julgando frequentemente as pessoas, muitas vezes recorrendo a aspectos tão pouco conclusivos como os traços faciais e a maneira de vestir. Uma vez mais, o leitor de outras obras de Naipaul não poderá evitar sentir um certo desconforto perante a altivez com que o autor olha os autóctones.

Parte desta forma de olhar talvez se justifique pelo complexo colonial a que Naipaul alude algumas vezes, sobretudo na segunda parte, a mais interessante do livro, em que relata a sua chegada original a Inglaterra — a Inglaterra que colonizara a sua Trindade natal —, aos 18 anos, com a ideia fixa de se tornar escritor. A ingenuidade do jovem Naipaul é, ao mesmo tempo, desarmante pela sinceridade com que a expõe e alarmante pela biografia que lhe conhecemos: aquele jovem com um conceito limitado, quase anedótico, do que é a literatura e do que é ser escritor acabaria por ganhar um Booker e o Nobel.

Tirando esta segunda parte e a última (que tem pouco mais de dez páginas), todo o romance é centrado nos anos em que o autor viveu naquela casa alugada. As terceiras e quartas partes são bastante mais ricas do que a primeira, porque é nestas que as mudanças adquirem um carácter mais radical e a transformação profunda da mansão e de toda a zona rural onde está inserida se precipita inexoravelmente. Como lhe chamou Salman Rushdie, num texto que escreveu sobre O Enigma da Chegada, estamos perante uma pastoral triste. Mas é na forma pacífica e desesperançada com que Naipaul aceita estas transformações que está o verdadeiro interesse do livro.

Em última instância, contudo, este é mais um livro para quem está interessado na autobiografia do que para quem gostou dos romances e reportagens de Naipaul. O Enigma da Chegada não é uma coisa nem outra, nem há nenhuma forma literária em cujas características encaixe na perfeição. Talvez se assemelhe mais a uma pintura da paisagem (o título é roubado de um quadro de Giorgio de Chirico), um quadro que o autor vai pintando muito lentamente, vendo-se forçado a inserir as mudanças que à sua volta vão ocorrendo, até ao momento em que desiste, pousa o pincel, e abandona aquela paisagem.

 
 

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A badana onde se lê a informação biográfica de V. S. Naipaul, neste O Enigma da Chegada, quase funciona também como sinopse do livro. Inédito em Portugal, onde, felizmente, já tinham sido publicados vários dos mais conceituados livros do autor, esta obra vem descrita como o mais autobiográfico dos seus romances. O que nesta afirmação suscita desconfiança, depois de lido o livro, não é o facto de ser autobiográfico, é a categorização como romance.

Quem primeiro lhe chamou romance terá sido o próprio autor ou o seu editor original, em língua inglesa (onde leva também o subtítulo: “a novel in five sections”), mas a verdade é que não só o que no livro é relatado encaixa na biografia conhecida de Naipaul, fazendo assim cair por terra o lado ficcional, como a natureza da narração só com muita benevolência do leitor pode ser vista como um romance. Isto, claro, são questões menores, ainda que possam influenciar a recepção de leitores que tenham lido os fabulosos A Curva do Rio ou Uma Casa para Mr. Biswas, por exemplo, e esperem encontrar em O Enigma da Chegada um “romance” com a mesma riqueza.

O que constitui a quase totalidade deste livro é a observação — e consequente reflexão — daquilo que rodeia o autor, num período específico da sua vida, quando alugou uma casa nos terrenos de uma mansão, no Wiltshire, em Inglaterra, 20 anos depois da sua primeira chegada ao país, vindo da sua Trindade natal, nas Caraíbas, para estudar em Oxford, graças a uma bolsa que obtivera. Neste período que domina a narrativa temos, portanto, um Naipaul já com obra publicada, que se instala naquela casa onde encontra “a dádiva de uma segunda vida no Wiltshire, de uma segunda infância, […] mais feliz, da possibilidade de aceder […] a um conhecimento das coisas naturais, ao mesmo tempo que a realização do sonho infantil de uma casa segura no meio do bosque.”

Os passeios frequentes que o autor empreende pelos campos, e a descrição exaustiva que destes faz, lembram um pouco o processo diegético de W. G. Sebald, mas falta a Naipaul o talento encantatório do alemão para transformar o quase nada em prosa deslumbrante. A primeira das cinco partes deste romance é a mais enfadonha. As mais de cem páginas que Naipaul dedica a falar dos campos poderiam facilmente ser reduzidas a metade, se fossem cortadas as repetições a que recorre uma e outra vez e que dão a sensação de ser um velho senil quem nos conta a história, porque mesmo à décima referência a um determinado facto parece estar a contá-lo pela primeira vez, parece ter-se esquecido — o narrador e não o leitor — de que já o contara nove vezes.

O tema central desta narrativa é a mudança, é por isso que o narrador se detém perante cada conjunto de árvores, cada construção, cada riacho, vezes e vezes sem conta. De cada vez que os descreve quer alertar para uma pequena mudança ou para um pormenor em que antes não reparara. O que torna o mecanismo cansativo é o facto de descrever e contextualizar e inserir na paisagem sempre o conjunto completo, para dar conta de uma mudança ínfima.

Todas estas mudanças são também uma espécie de morte, real ou metafórica, são um retrato da decadência que se abate sobre aquele recanto de mundo. É o próprio autor que diz, na última parte: “A morte era o tema; talvez tivesse sido o tema o tempo todo. A morte e o modo como a encaramos.” É neste último detalhe, “o modo como a encaramos”, que reside o factor de interesse deste livro, porque se não fossem os apontamentos do narrador — infelizmente muito mais diluídos entre a descrição do que seria desejável — sobre a forma como sente as mudanças que testemunha, o romance seria intragável.

Não é por acaso que se falou, até agora, apenas do narrador. A verdade é que há uma certa sobranceria, mais do que misantropia, de Naipaul para com os outros habitantes daquela zona rural. Ao contrário do que acontece em Para Além da Crença, onde o autor faz uma reportagem por alguns países convertidos ao islamismo, debruçando-se profundamente sobre as vidas das pessoas comuns e contando a história da conversão do país através das histórias individuais, neste O Enigma da Chegada, por não ser uma reportagem, o narrador não se preocupa com essa investigação do outro, não demonstra essa abertura para conhecer. O conhecimento que adquire e que partilha com o leitor chega-lhe de forma involuntária e é tratado com a já referida sobranceria, tipificando e julgando frequentemente as pessoas, muitas vezes recorrendo a aspectos tão pouco conclusivos como os traços faciais e a maneira de vestir. Uma vez mais, o leitor de outras obras de Naipaul não poderá evitar sentir um certo desconforto perante a altivez com que o autor olha os autóctones.

Parte desta forma de olhar talvez se justifique pelo complexo colonial a que Naipaul alude algumas vezes, sobretudo na segunda parte, a mais interessante do livro, em que relata a sua chegada original a Inglaterra — a Inglaterra que colonizara a sua Trindade natal —, aos 18 anos, com a ideia fixa de se tornar escritor. A ingenuidade do jovem Naipaul é, ao mesmo tempo, desarmante pela sinceridade com que a expõe e alarmante pela biografia que lhe conhecemos: aquele jovem com um conceito limitado, quase anedótico, do que é a literatura e do que é ser escritor acabaria por ganhar um Booker e o Nobel.

Tirando esta segunda parte e a última (que tem pouco mais de dez páginas), todo o romance é centrado nos anos em que o autor viveu naquela casa alugada. As terceiras e quartas partes são bastante mais ricas do que a primeira, porque é nestas que as mudanças adquirem um carácter mais radical e a transformação profunda da mansão e de toda a zona rural onde está inserida se precipita inexoravelmente. Como lhe chamou Salman Rushdie, num texto que escreveu sobre O Enigma da Chegada, estamos perante uma pastoral triste. Mas é na forma pacífica e desesperançada com que Naipaul aceita estas transformações que está o verdadeiro interesse do livro.

Em última instância, contudo, este é mais um livro para quem está interessado na autobiografia do que para quem gostou dos romances e reportagens de Naipaul. O Enigma da Chegada não é uma coisa nem outra, nem há nenhuma forma literária em cujas características encaixe na perfeição. Talvez se assemelhe mais a uma pintura da paisagem (o título é roubado de um quadro de Giorgio de Chirico), um quadro que o autor vai pintando muito lentamente, vendo-se forçado a inserir as mudanças que à sua volta vão ocorrendo, até ao momento em que desiste, pousa o pincel, e abandona aquela paisagem.