A garota da capa do Ípsilon

A jornalista e escritora Alexandra Lucas Coelho regressou ao Brasil para um encontro com os seus leitores na Livraria Cultura, em São Paulo. Os que se sentem atravessados pela sua escrita.

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Trata-se de um “festival literário em que o assunto é a língua”, diz o moderador da sessão, o editor Paulo Werneck, curador da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP). Um evento organizado pelo jornal PÚBLICO e pela Livraria Cultura em parceria com o Camões – Instituto da Cooperação e da Língua.

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Trata-se de um “festival literário em que o assunto é a língua”, diz o moderador da sessão, o editor Paulo Werneck, curador da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP). Um evento organizado pelo jornal PÚBLICO e pela Livraria Cultura em parceria com o Camões – Instituto da Cooperação e da Língua.

“Quem já lia a Revista da Cultura está-se acostumando muito mal por causa desta bela revista Ípsilon [mostra a capa], que está circulando aqui, todos os meses encartada à revista”, acrescenta o moderador. “Em língua portuguesa, é realmente uma das coisas mais bem feitas no jornalismo cultural, pelo menos até onde a minha vista alcança, com excelente material perfis de escritores, entrevistas, assuntos diversos. E é mais um motivo para se vir à Livraria Cultura buscar o Ípsilon, o caderno cultural do jornal PÚBLICO que ganha essa versão brasileira em forma de revista e que este mês estampa na capa essa garota que está sentada ao meu lado, a Alexandra Lucas Coelho, que tenho a honra de entrevistar”.

Alexandra Lucas Coelho “está chegando até nós literariamente” e o seu livro Vai, Brasil, com as crónicas que publicou no PÚBLICO quando era correspondente no Brasil do diário português, é uma leitura muito interessante, afirma o moderador. “Principalmente porque o livro começou a ser escrito em 2010, num momento em que o Brasil estava vivendo uma outra atmosfera, de um grande optimismo social no país. Mas a leitura desse livro, hoje em dia, mostra que as coisas não andavam tão bem assim”, diz Paulo Werneck.

“Quem, como eu, gosta de ler livros a partir do índice remissivo vai perceber que a Alexandra encontrou nesse breve período boa parte das figuras que a gente precisa observar para entender o Brasil, desde o José Sarney até ao José Celso Martinez Corrêa. É um arco muito amplo de personagens, de artistas que ela frequenta, conhece e vai registando nesse livro”, acrescenta o moderador.
 
Nova língua literária
Vai, Brasil vai ser publicado no Brasil em Maio, pela Tinta da China Brasil, e tem de alguma maneira uma relação com o romance que Alexandra Lucas Coelho está a escrever agora, Deus Dará. É um reflexo e tem a ver com esse tempo em que a autora viveu no Brasil, de 2010 a 2014, e que para ela foi “muito estranho”, porque lhe parecia haver um “clima pré-apocalíptico”, onde as pessoas sentem sempre que estão à beira de acabar. “A alegria, que é o cliché que se diz sobre o Rio de Janeiro e sobre o Brasil em geral, não é a alegria oba oba. É a alegria de quem sabe, a todo o momento, que tudo pode acabar, que aquilo vai desabar sobre nós. É a alegria de quem morre todos os dias, de quem samba em cima das facas, em cima da dor. Não é a alegria de quem não conhece a tristeza.”

Alexandra Lucas Coelho conta que nos primeiros tempos em que começou a escrever a sua coluna semanal na revista 2 do PÚBLICO, e já estava a viver no Brasil, recebeu vários protestos de leitores que a criticavam: “Agora escreve em brasileiro?”. Na sessão, a autora de E a Noite Roda, Grande Prémio de Romance e Novela da APE, explica que quando chegou a este país teve "uma experiência de atravessamento”. Lembra que começou a sua carreira de jornalista antes dos 20 anos (hoje tem 47), e que sempre pensou no trabalho de reportagem como se tivesse “um corpo que se deixa atravessar por aquela experiência”. Defende que há até uma dimensão física de passar tudo isso para o leitor, “o medo, o espanto, o horror, a exasperação”. Vê o repórter como “esse corpo em trânsito, entre um lugar e outro, e tenta que o texto seja a tradução dessa experiência física”.

Para a jornalista, o Brasil foi o lugar onde essa experiência foi mais longe, onde o mergulho foi mais fundo. E é aqui que entra a questão da língua. “Não se tratava de escrever ‘brasileiro’, tratava-se de reflectir no texto a experiência que me estava a acontecer, a mim, de atravessamento daquela realidade espantosa e enorme que era uma experiência de expansão”, afirma. “Sempre me confundiu muito que os discursos fossem sempre discursos que nos tentam reduzir, que nos tentam encaixar e conter, como se a vida não fosse desejadamente o contrário: uma experiência de expansão de todas as possibilidades.”

“Se eu tinha aterrado neste lugar enorme, onde há tantas vidas da língua portuguesa, porque entre Porto Alegre e Manaus ou São Gabriel da Cachoeira há tantas possibilidades da língua portuguesa, tantas digressões, tantas invenções, por que é que eu iria abdicar disso?”

Boa viagem
Já perto do fim da conversa, no momento das perguntas vindas do público, um brasileiro que já tinha lido um dos seus livros de literatura de viagens, Viva México, quis deixar claro como era “um prazer” estar a assistir à sessão”. E acrescentou que, já que a escritora tinha dito, no início, que as experiências atravessam o seu corpo como repórter, “pode ter a certeza que o que você relata lá atravessa o corpo do leitor, também.”

Agora, a “garota da capa do Ípsilon”, revista gratuita espalhada por todos os cantos das Livrarias Cultura brasileiras, irá num instante ao Rio de Janeiro rever a sua outra cidade. E, no próximo mês, estará de novo em trânsito. Partirá para o Iraque, pois quer acompanhar uma equipa de arqueólogos portugueses, muito jovens, que estavam a escavar na Síria de onde tiveram de sair quando a guerra se agudizou e foram para o Norte do Iraque, a 100 quilómetros das frentes de batalha do autoproclamado Estado Islâmico.

“Eles acharam uma tabuinha de argila que tem 5 mil anos e umas figuras, homens e veados, e um buraco. Esse buraco, supostamente, será a primeira inscrição numérica que aconteceu naquela zona do mundo. Eles querem continuar a escavar, pois têm indícios de que isto seja o inicio da história da burocracia no mundo. Ou seja, será a primeira factura. O que comprova que a burocracia, que todos nós aqui no Brasil conhecemos muito bem, tem 5 mil anos, pelo menos.”

"Então nos resta te desejar boa viagem", conclui o curador da FLIP.