As coisas para além das coisas

Pois, parece que somos velhos e que para nós a tralha é pesada e funda de sentido. Não te preocupes, dá-lhe uma ou duas gerações

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kitato/Instagram

As prateleiras estão cheias de tralha, não se chega aos livros, não dá para limpar, diz-me ela, eu olho, tens razão, estamos cheios de tralha, não dá para chegar aos livros, realmente enche-se tudo de pó se isso fosse um problema. Olho melhor, caramba, alguma coisa há-de ser boa para o lixo.

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As prateleiras estão cheias de tralha, não se chega aos livros, não dá para limpar, diz-me ela, eu olho, tens razão, estamos cheios de tralha, não dá para chegar aos livros, realmente enche-se tudo de pó se isso fosse um problema. Olho melhor, caramba, alguma coisa há-de ser boa para o lixo.

A caixa faustosa da minha prima Carla (a prenda bonita que tivemos pelo casamento), a fotografia de nós muito novos e da tua irmã ainda de fraldas que eu tinha no escritório, a Reflex do meu avô Diamantino e a minha primeira máquina (analógica, é claro) que comprei a contrabandistas em Ceuta e pela qual passei fome, quatro bules (um japonês, dois árabes e um algarvio) que são teus (eu não bebo água suja a não ser em reuniões com a orientadora), uns magrinhos apaixonados que nos trouxe o meu padrinho de Moçambique.

O galheteiro da minha avó Belandina, o rotativo com as conjugações do verbo “Jouer” que me deu a Lurdes, a estampa japonesa e o livro de máscaras da ópera de Pequim que nos deu a Marta, dois jogos de xadrez muito bonitos que nos deu não sei quem não sei porquê (ninguém joga xadrez cá em casa), um cavaleiro maltês, um homem-verde bávaro, uma bunduda cubana, o mini-caixotinho que me fizeram os meus irmãos à conta do "sketch" dos Gatos a gozar com o Berardo.

Dois velhos gravadores de cassetes que já não usamos para as entrevistas, o diabrete de Bilharães, a máscara do Ca’ Macana, o busto do Camões do meu pai, o do Mozart lascado que eu comprei na venda da paróquia, o guarda vermelho com que nos enganaram em Moscovo, o despertador com o Mao Tsé-Tung a dizer adeus que nunca funcionou, o frasco com os nomes que a família sugeriu para a criança (ideias da tua irmã!), um cinzeiro de bronze que eu comprei na Ladra porque o boneco me lembrava o Voltaire e outro (um às de copas) do Bordalo Pinheiro.

O desenho (emoldurado) com que o Sérgio engatava as miúdas, um monte de isqueiros vistosos e vazios, o azulejo turco (deu-nos a Cláudia), um sortido de nove copos (cinco das avós, um que comprámos no Brás & Brás, outro eu ainda nós namorávamos, o oitavo deu-me uma namorada na Roménia e o último que nunca te perguntei porque é que trouxeste da América do Sul), o pequeno-deus-caseiro que te esculpi a canivete com um pedaço de madeira que apanhei na boulevard Barbès, o crucifixo chapeado da minha bisavó Helena, o cachecol enrolado do SLB, o falso polinésio que por to ter trazido do Porto é cá em casa conhecido como “o Morcão”.

Uma coleção de garrafas que nunca mais acaba, sete baralhos de cartas, três realejos (um dos quais toca a música da pantera cor-de-rosa), um homenzinho a virar o mundo do Tiago Cabeça, uma mandala, um cachimbo de haxixe marroquino, uma bússola, o relógio Mindello do meu avô Artur, um Sto. António um S. João e um S. Pedro (pequeninos, saídos de bolos-reis desde que Bruxelas proibiu os brindes em metal), um Rato Mickey, uma Diosa Victoria em gesso que trouxe de Mérida e uma Boca della Verità que trouxemos de Roma quando reencenámos a cena do “Roman Holiday”, uma velha chave que na lapela ainda diz na letra da minha avó “É axave da arca da caza de síma”.

Pois, parece que somos velhos e que para nós a tralha é pesada e funda de sentido. Não te preocupes, dá-lhe uma ou duas gerações: a tua filha, ou os teus hipotéticos netos hão-de juntar isto ao resto do lixo do passado. As coisas são só coisas, só nós é que somos para além das coisas.