Morreu Eduardo Galeano, o escritor que não releria a sua obra mais famosa
Hugo Chávez ofereceu um Galeano a Obama no primeiro encontro de ambos. Mas, recentemente, o escritor uruguaio distanciou-se da sua obra mais canónica, As Veias Abertas da América Latina
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Foi um acto desafiador do populista Hugo Chávez, sob a forma de cortesia. O livro oferecido é um libelo anti-colonialista, anti-capitalista e anti-americano que faz parte do cânone da literatura latino-americana dos últimos 40 anos. Chávez chamou-lhe, na altura, “um monumento na nossa história latino-americana”. Mas não era um dos seus livros. O autor? Eduardo Galeano.
O escritor uruguaio morreu na manhã desta segunda-feira, aos 74 anos, em Montevideu. Segundo o jornal El País, na sexta-feira Galeano tinha sido hospitalizado em resultado de complicações relacionadas com um cancro pulmonar, pelo qual já tinha recebido tratamento em 2007.
Galeano publicou As Veias Abertas da América Latina em 1971, quando tinha 31 anos. O livro, que foi publicado em Portugal em 1998 (ed. Dinossauro), é uma análise da história da América Latina, da colonização europeia à contemporaneidade, sob o ponto de vista da sua dominação e exploração por potências exteriores – europeias e norte-americanas. Nele, Galeano argumenta que os recursos que começaram por atrair os colonizadores europeus, como o ouro e o açúcar, conduziram a um sistema de exploração que persiste na actualidade e é responsável pela pobreza e pelo subdesenvolvimento na América Latina.
O livro converteu-se numa bíblia da esquerda latino-americana, tendo sido proibido no Uruguai, Argentina, Chile e Brasil nas décadas de 1970 e 1980, quando esses países eram governados por ditaduras militares apoiadas pelos Estados Unidos. Isso não impediu o livro de se tornar popular no continente. Especialista em História da América Latina, William Hamilton, da Universidade da Carolina do Norte, notou em 2009 ao Washington Times que “ler Galeano é um rito de passagem para qualquer jovem na América Latina, ano após ano.” “Durante as ditaduras militares dos anos 1970 e 80, os seus livros eram proibidos nas escolas mas eram bastante lidos. Amigos meus contaram-me que enterravam os seus exemplares no quintal para que as suas famílias não tivessem problemas com os militares.”
Por isso, há um ano, quando Galeano fez questão de se distanciar do seu próprio livro, afirmando publicamente que não seria capaz de reler a sua obra mais conhecida e celebrada, isso foi notícia. “Para mim, essa prosa da esquerda tradicional é chatíssima. O meu físico não aguentaria. Seria internado nas urgências”, disse na Bienal do Livro de Brasília, citado pela imprensa brasileira. Descrevendo o livro como uma obra de juventude, disse que As Veias Abertas da América Latina pretendia ser um livro de economia política, só que ele não tinha a formação necessária. “Não estou arrependido de tê-lo escrito, mas foi uma etapa que, para mim, está superada.”
Questionado noutra ocasião sobre o facto de o Presidente venezuelano ter dado o seu livro a Obama, Galeano observou que Chávez “presenteou Obama com a melhor intenção do mundo, mas num idioma que Obama não conhece. Foi um gesto generoso, mas um pouco cruel.” O exemplar era espanhol.
Eduardo Galeano foi preso em 1973, quando um golpe militar tomou o poder no Uruguai. O escritor conseguiu fugir e exilar-se na Argentina, mas, em 1976, uma ditadura militar instalou-se naquele país e Galeano refugiou-se em Espanha, onde permaneceu até 1985. Nesse ano, a democracia regressou ao Uruguai e Galeano voltou a instalar-se na sua cidade-natal. Até morrer.Além de As Veias da América Latina, em Portugal estão traduzidas as seguintes obras de Galeano: De Pernas para o Ar (Caminho), Futebol: Sol e Sombra (Livros de Areia), História da Ressurreição do Papagaio (livro infantil, com ilustrações, publicado pela Kalandraka) e Memória do Fogo (Livros de Areia).