Um herói por dia, nem sabe o bem que lhe fazia

Escrevi que Spacey era o mais interessante actor vivo de língua inglesa, mas talvez pudesse ter dito o mesmo de Daniel Day-Lewis

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O ultimo artigo que publiquei por aqui continha uma ratoeira. Nele descrevi in breve particularidades do percurso do actor Kevin Spacey e teci-lhe um louvor, que culminou em apoteose, quando o considerei “o mais interessante actor vivo de língua inglesa”. Não que agora julgue algo substancialmente diferente, ou que não tenha pesado cada palavra, mas confesso que a estrutura foi premeditada e o exagero intencional. Deste modo, o artigo tem uma dupla função: tanto opera per se, como funciona enquanto referência que se presta à desconstrução que irei expor.

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O ultimo artigo que publiquei por aqui continha uma ratoeira. Nele descrevi in breve particularidades do percurso do actor Kevin Spacey e teci-lhe um louvor, que culminou em apoteose, quando o considerei “o mais interessante actor vivo de língua inglesa”. Não que agora julgue algo substancialmente diferente, ou que não tenha pesado cada palavra, mas confesso que a estrutura foi premeditada e o exagero intencional. Deste modo, o artigo tem uma dupla função: tanto opera per se, como funciona enquanto referência que se presta à desconstrução que irei expor.

Com efeito, o texto apropria-se de um dispositivo retórico muito batido, infelizmente usado e abusado por certos sectores da crítica. Para começar, invoco uma vibrante figura do tempo presente. Depois, qual “efeito Kuleshov”, há um momento inicial em que enumero alguns aspectos desinteressantes da carreira do actor com o intuito de criar perspectiva e atribuir ainda mais ênfase ao que vem depois. De seguida, como quem puxa pelo ás escondido, apresento o elemento que sustenta toda a argumentação subsequente: recorro à “nobreza” cultural do teatro, que é ainda hoje considerado o lugar por excelência da provação e aclamação de actores e actrizes e dirijo as atenções para a prestação notável de Spacey nesse contexto.

É fácil, portanto, chegar à minha conclusão: há uma obra recente notável e um elemento de comoção (Spacey enquanto Frank Underwood), trabalho demonstrado numa instituição centenária (o teatro londrino em geral e o Old Vic em particular) e um factor de consagração (a gala apoiada pelo BFI). Juntando tudo isto, quase que parece natural um autor sentir-se assoberbado e tentado a vir apregoar veredictos como “o maior”, “a mais incrível”, entre outras expressões e redundâncias afins. Na minha opinião, isto tem normalmente tanto de estanque e de exclusivo como de pueril e de insensato.

Deparo-me incontáveis vezes com situações destas, nomeadamente em publicações tão lapidares como a "Cahiers du Cinéma". Ainda hoje, sensivelmente a cada três meses, de forma mais ou menos explícita, os franceses anunciam ao mundo “o grande realizador”. Manoel de Oliveira foi-o umas poucas de vezes, Pedro Costa também, e Godard ou Tarr são-no pelo menos uma vez todos os anos! A banalização do superlativo relativo de superioridade é de tal forma que, no tempo, o pedestal adquire uma dimensão semelhante à de um estádio de futebol.

Escrevi que Spacey era o mais interessante actor vivo de língua inglesa, mas talvez pudesse ter dito o mesmo de Daniel Day-Lewis. Do mesmo modo, poderia ter escrito algo similar de Toni Servillo, a propósito do caso italiano, ou de Luís Miguel Cintra, no panorama nacional. Nada disto estaria essencialmente certo ou errado, mas a verdade é que que esta prática de exaltação vem rareando. Porém, desempenha um papel crucial na visibilidade das obras e por conseguinte na história das artes e na forma como a percebemos; como criamos hierarquias; como escrevemos cânones voláteis em entrelinhas dúcteis.