O betão encontrou o basalto e isso deu cinzento mais escuro
O Arquipélago é uma reinterpretação contemporânea da inclusão da pedra vulcânica no betão. Os arquitectos chamam-lhe o encontro da tecnologia com a nostalgia.
É uma imagem misteriosa, não imediatamente identificável com Portugal, mas foi a mais vezes escolhida para divulgar este edifício nomeado para Prémio Mies van der Rohe 2015, desenhado por João Mendes Ribeiro, Francisco Vieira de Campos e Cristina Guedes no lado norte da ilha de São Miguel.
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É uma imagem misteriosa, não imediatamente identificável com Portugal, mas foi a mais vezes escolhida para divulgar este edifício nomeado para Prémio Mies van der Rohe 2015, desenhado por João Mendes Ribeiro, Francisco Vieira de Campos e Cristina Guedes no lado norte da ilha de São Miguel.
Claro que a escolha daquele ângulo mais cenográfico é do fotógrafo José Campos, a quem os arquitectos encomendaram o registo da obra final. Estamos do lado do mar e foi também assim que as ruínas da fábrica a recuperar apareceram aos arquitectos na folha de rosto do concurso público internacional lançado em 2007 para a construção do centro de artes, lembra-se a arquitecta Cristina Guedes. “A imagem do concurso era a fábrica murada com as cumeeiras do telhado e as cumeadas da serra da Água de Pau. Era uma coisa muito impactante.” Quase como se a cumeeira da fábrica imitasse a cumeada.
Mas foi pela rua que vai dar ao centro histórico de Ribeira Grande que toda a comitiva entrou no dia da inauguração do Arquipélago, o nome do centro de artes contemporâneas. Quando o projecto foi desenhado não havia, aliás, uma porta de entrada no muro do lado do mar.
João Mendes Ribeiro lembra-se de a marginal da Ribeira Grande ter acabado de ser rasgada na primeira vez que foi ver o local do projecto. Em 2010, numa alteração ao desenho original, os arquitectos conseguiram incluir uma praça virada ao mar, com a ajuda da câmara, desviando alguns edifícios que ameaçavam tapar o centro e a bela vista. Essa revitalização da marginal é já uma consequência, diz Mendes Ribeiro, do sucesso do edifício junto da comunidade.
Mas comecemos por aquilo que os arquitectos desenharam logo desde o início. Demos um salto em comprimentos de 122 metros por cima do lote e aterremos na entrada sul. Voltemos ao ano da primeira visita ao local. Os dois ateliers tinham acabado de se juntar para conseguir currículo suficiente e concorrer. Francisco Vieira de Campos e Cristina Guedes, do atelier Menos é Mais (Porto), e João Mendes Ribeiro (Coimbra) nunca tinham construído nos Açores, mas já tinham trabalhado juntos na Casa das Caldeiras em Coimbra.
“Lembro-me perfeitamente da primeira visita que fizemos aqui ainda na fase de concurso. Tínhamos um edifício fortíssimo”, conta João Mendes Ribeiro na conversa com os jornalistas depois da inauguração nos últimos dias de Março. Uma fábrica do século XIX, muito arruinada, construída em pedra de basalto, que já teve várias funções, mas onde seria difícil instalar algumas das coisas sugeridas no programa do concurso, como uma sala de espectáculos ou as reservas. “Tínhamos de construir de raiz. Isso também nos ajudou a densificar este lugar, um tema que para nós era muito interessante.” Começaram com 5700 metros quadrados de área construída e acabaram com mais de 9000 metros quadrados.
A tal cidade dentro da cidade que os arquitectos evocaram como metáfora no discurso de inauguração? — perguntamos. “Um espaço público que fosse mais referenciado e que tivesse essa relação tensa com as pré-existências, que foram referenciais do ponto de vista volumétrico, do alinhamento.” É este contraste que vemos no pequeno pátio de recepção do lado sul, por onde é suposto que as pessoas cheguem. Cristina Guedes explica também que não quiseram ser demasiado óbvios e virar tudo para o mar: “Sabemos que os açorianos têm o mar presente. Por isso, quisemos ligar a sul, à cidade, tendo um contexto urbano com uma escala mais local.”
Bem cedo fica resolvido que seriam as áreas de exposição ou para as residências artísticas a ocupar a fábrica recuperada, originalmente com oito edifícios (um foi demolido). A fábrica ainda guardava espaços com uma geometria muito clara, carregados de memórias e muito interessantes para expor arte contemporânea. “É um desafio expor nos espaços industriais que têm uma grande escala”, diz Cristina Guedes.
As naves, estes hangares que correspondem aos edifícios originais, ficaram disponíveis de uma forma mais livre, porque não precisavam de conter todo o programa. “Acompanha-nos sempre a polémica com os artistas dos centros de arte que são demasiado desenhados. Há este debate entre criar um espaço de raiz para a arte, mas que tenha a assinatura de um arquitecto, ou os artistas ocuparem pré-existências, mas que são espaços mais neutros.”
“Pré-existências” é uma palavra recorrente no discurso dos arquitectos, mas nós queríamos saber que pesquisa tinham feito, além de explorar a relação com o local numa escala mais reduzida. A forte ligação às pré-existências não é só desta obra, responde Francisco Vieira de Campos, essa “leitura de aproximação contextual aos factores do lugar” é um método de trabalho, “é um sistema”.
“Somos todos da Escola do Porto”, diz João Mendes Ribeiro. Risada geral e parece que está tudo explicado. Afinal, nos currículos dos três estão lá as figuras de referência da escola: Cristina trabalhou com Siza, Francisco com Souto de Moura e João com Távora. O que aproxima os dois ateliers “é uma preocupação com os sistemas construtivos e a construção”. E estamos a falar de reabilitação, “em que os edifícios são material de projecto”.
É uma leitura dos sinais, que tem a ver com o que é autóctone, com o que está disponível. “Sabemos que temos de trabalhar com meios reduzidos. Trabalhamos também por natureza com aquilo que é essencial”, afirma Francisco Vieira de Campos. Uma busca por uma elementaridade da construção. O arquitecto acha mesmo que quase não é preciso falar das linguagens construtivas presentes no Arquipélago, porque as duas se percebem muito bem: construção em alvenaria de perda basáltica e construção em betão aparente.
Nos edifícios recuperados, com paredes de 75 cm de espessura, “temos a pedra, o mais próximo da ideia da construção, uma marca muito manual”, continua Vieira de Campos. Nos telhados, “temos estas lindíssimas asnas”, referindo-se à recuperação do sistema tradicional de cobertura com asnas de madeira. Nos edifícios novos, também quiseram uma aproximação “muito textural” e o betão armado inclui como inerte a pedra basáltica e ainda um pigmento que faz com que tenha um cinzento mais escuro do que o betão normal. A cor é dada principalmente pelo pigmento preto, mas a pedra vulcânica também ajuda a escurecer o betão.
O projecto não quer exagerar as diferenças entre as antigas e as novas construções, escreve-se na memória descritiva. Francisco Vieira de Campos descreve de maneira poética essa manipulação pictórica da materialidade dos edifícios: “Há uma intenção muito clara nos nossos trabalhos de ligar a nostalgia com a tecnologia, levar isso ao limite. Como é que nós conseguimos trazer para dentro de uma técnica construtiva actual a matéria que constrói de facto estes edifícios [antigos].”
Os arquitectos pediram à cimenteira Secil que fizesse no seu laboratório uma investigação sobre o pigmento e os inertes que compõem o betão. Foram produzidas várias amostras, experimentadas em estaleiro até à escolha final: oito por cento de pigmento preto e pedrinhas de basalto com uma dimensão máxima de 10 milímetros. Depois de retiradas as cofragens do betão — os moldes em contraplacado que dão a forma ao betão fluido até ao seu endurecimento — ainda foram trabalhadas as textura das superfícies. É por isso que nuns sítios o betão é polido e noutros bujardado. Tal como nas paredes em alvenaria há variações nas texturas.
“No talhar da pedra, nós podemos perceber a mão-de-obra que está na textura. No betão os processos tendem a ser sempre homogéneos. Aqui foi interessante perceber que na composição destes betões era necessário, passadas 12 horas de cada cofragem, retirá-la e fazer uma pré-lavagem do betão para que os inertes aparecessem”, explica Francisco Vieira de Campos. Fica também, assim, a marca das pessoas que trabalham o betão. “Isto é uma aproximação textural, sensorial, que aproxima muito os dois sistemas construtivos, que no fundo são os mesmos.”
No pátio da entrada, a sul, vemos o único edifício branco no exterior de todo o centro, um corpo antigo ocupado pela loja e livraria. Fica em frente do edifício das reservas, este já em betão. Passa-se o portão e do lado direito encontramos logo os espaços das residências artísticas, que no total ocupam 1200 metros quadrados e a que os arquitectos deram muita relevância. João Mendes Ribeiro afirma que o programa do concurso estava muito bem feito e que tiveram sempre a assessoria de pessoas ligadas a estas áreas, primeiro Isabel Carlos e depois António Pinto Ribeiro, ambos da Gulbenkian. “Houve sempre o tema, que nos pareceu muito importante, das residências artísticas. Era preciso construir espaços para criar condições para os artistas fazerem os seus objectos artísticos. Ampliámos claramente o espaço para oficinas.” Há carpintaria, espaços para trabalhar metal e pedra, e ainda multimedia.
Por causa da aposta nas oficinas, “a área de exposição é relativamente reduzida, mas isso é intencional”, explica Mendes Ribeiro. São três salas longitudinais, espaços abertos. Duas têm janelões virados ao mar. Na verdade, é fácil converter muitos dos espaços em locais de exposição não convencionais. É o que pode acontecer com toda a cave ou na área sobre a própria cave, onde terão estado os silos da fábrica, e que agora foram transformados em celas, perfeitas para expor vídeo. “Na cave conseguimos ganhar 50 centímetros de pé direito. É um espaço muito estimulante para os artistas trabalharem. No projecto aparecia como espaço a negro e só tinha acesso por uma escada.”
O que impressiona na beleza dos espaços de exposição é o pé-direito. Na primeira sala tem 4,5 metros, mas nas salas seguintes pode atingir os 9,5 metros nos pontos mais altos. O mesmo acontece nas oficinas. Eram os pés-direitos originais e os arquitectos nunca pensaram dividi-los em dois pisos. “A verticalidade dos espaços pré-existentes não se devia perder e estes grandes pés-direitos permitem a respiração das obras de arte, conferindo ao espaço um carácter solene e de silêncio.”
Se logo à entrada, do lado direito, encontramos as oficinas de carpintaria, do lado oposto fica a black box. Entre os dois, há um segundo pátio. Os modelos da sala de espectáculos são a Schaubühne, o teatro de Berlim de Peter Stein, e o Teatro Oficina, em São Paulo, com projecto da arquitecta Lina Bo Bardi. A sala polivalente era a parte menos clara no programa do concurso. Desenhou-se um espaço aberto em que a localização do palco não está definida à partida.
Autor de várias cenografias, João Mendes Ribeiro nunca tinha construído salas de espectáculos, mas já tinha pensado muito nelas. Se à Schaubühne foram buscar a cena contínua, no Teatro Oficina inspiraram-se na continuidade com o espaço público. “Nós temos desenvolvido muitos trabalhos nesta área e um dos temas é a flexibilidade e a transformação dos objectos cénicos. Esse exemplo de Berlim é fantástico. Falo destes dois exemplos, porque são dois momentos de ruptura com o teatro à italiana, o teatro tradicional. É procurar sair do registo da vista frontal, da marcação dos dois espaços, do espaço do público e do espaço dos actores, e ensaiar um espaço cénico em função daquilo que se quer comunicar em cada espectáculo.”
A black box não é escura a maior parte do tempo por causa da parede com portas de vidro com uma altura de 2,2 metros do lado da sala que dá para o pátio. “Um espectáculo leva três meses a construir, mas eu preciso da black box a meia dúzia de dias da estreia, quando faço desenho de luz. Significa que os actores estão a trabalhar numa caixa negra durante três meses, durante toda a vida, por causa de meia dúzia de dias durante o espectáculo. Pegando no tema da Lina Bo Bardi pareceu-nos que a relação do espaço público devia ser uma relação franca. É um vão de 18 metros.”
Aos três arquitectos faltava perguntar qual é o efeito Mies no edifício, se a inauguração do Arquipélago, que estava pronto há um ano, chegou mais cedo por causa da nomeação para o prémio (e em que acabaram por não chegar à segunda lista de finalistas). “Acho que as ideias do Mies estão presentes muito antes”, ironiza Francisco Vieira de Campos, afinal o nome do seu atelier é Menos é Mais, um dos slogans do arquitecto moderno. “É a terceira vez que estamos seleccionados para o prémio.” Para João Mendes Ribeiro é já a sexta.
Acham que foi um acaso, porque muito importante foi o centro passar a ter uma direcção. “Quando se soube do prémio, a Fátima Marques Pereira já estava a trabalhar.” Às vezes, diz Francisco Vieira de Campos, é mesmo uma questão de sorte: ainda não se esqueceram do estafeta que deixou um dos dossiers do projecto que iam submeter a concurso esquecido em cima de uma mesa do aeroporto da Terceira.
Foi por um triz que tudo aconteceu.
O PÚBLICO viajou a convite do Arquipélago