As vidas que nunca viveremos

Mariano Pensotti admite que as nossas vidas sirvam apenas para imitar a ficção: talvez estejamos condenados a repetir o que lemos em livros e vimos em filmes, condenados a dar posteridade à ilusão. Foi o que fez em El Pasado Es Un Animal Grotesco e Cineastas, as peças com que este dramaturgo e encenador argentino se estreia agora em Portugal.

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Três anos se passaram até Pensotti estrear, de novo com o seu Grupo Marea, a peça que veremos nas próximas quinta e sexta-feira na Culturgest: Cineastas CARLOS FURMAN

Podemos imaginar Mario, que neste mês de Junho de 1999, “o mais chuvoso dos últimos 100 anos”, quer fazer cinema mas não sabe como dada “a sua total falta de experiência e de guito”, agarrado ao pescoço da girafa, tentando lembrar-se das suas cenas favoritas dos filmes de Jacques Demy (ou de “miúdas de outros tempos, miúdas sempre na praia ao entardecer”) para esquecer que deve “três meses de aluguer e seis de despesas” e que “a sua tensão dava para iluminar uma cidade do tamanho de Mar del Plata”.

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Podemos imaginar Mario, que neste mês de Junho de 1999, “o mais chuvoso dos últimos 100 anos”, quer fazer cinema mas não sabe como dada “a sua total falta de experiência e de guito”, agarrado ao pescoço da girafa, tentando lembrar-se das suas cenas favoritas dos filmes de Jacques Demy (ou de “miúdas de outros tempos, miúdas sempre na praia ao entardecer”) para esquecer que deve “três meses de aluguer e seis de despesas” e que “a sua tensão dava para iluminar uma cidade do tamanho de Mar del Plata”.

Podemos imaginar Laura num banco corrido a lembrar o avô que há 93 anos chegou da Calábria “com a ideia de encontrar ouro, fazer-se missionário e ter um carro branco” – o avô que nunca aprendeu a conduzir e que teve um filho talhante ao qual Laura rouba até à última das suas poupanças na esquina de um bairro com vista para “fábricas e fábricas que enferrujam há décadas”, antes de deixar uma gravação para a família, explicando que acabou a melancolia, vai viver para Paris.

Podemos imaginar Pablo a rodar na chávena de chá e a pensar “que se parece um pouco com Mick Jagger quando era novo” – e o cérebro dele a girar dentro da cabeça desde a manhã em que ao sair para as aulas do curso de Marketing encontrou um pacote postal com uma mão cortada no preciso momento em que escrevia alguma coisa a lápis, e depois se pôs a passar a ferro para se acalmar.

E podemos imaginar Vicky a cavalgar o seu pónei com um arco-íris tatuado no dorso, as costas muito rectas “que nos falam de anos de natação nalgum colégio caro”, o “braço direito habituado ao ténis”, a sua segurança em si mesma, na sua classe social, pelo menos até ao dia em que ao remexer nas tralhas do pai dá com fotografias de uma família que não é a dela embora seja parecida, só que “um pouco mais rústica, mais pobre”, a um canto uma rapariga que podia ser ela, com a mesma t-shirt amarela que o pai lhe deu há dois meses (um coelhito, e por baixo a palavra smile).

Estamos a 22 de Junho de 1999. É o dia zero nas vidas das quatro pessoas de 25 anos que Mariano Pensotti quis contar em El Pasado Es Un Animal Grotesco. A seguir, tudo irá mudar, ainda que no final desta viagem de carrossel todos estejam exactamente no mesmo sítio, por mais voltas que tenham dado ao som de uma canção homónima dos Of Montreal, The past is a grotesque animal, em que o dramaturgo e encenador argentino se viciou quando estava a acabar de escrever a peça. “Por um lado, é uma canção muito comprida para um grupo de rock e tem algo desta ambição épica de narrar algo muito grande que eu sentia que era o que também estávamos a tentar fazer com a peça, contando dez anos da vida de uma geração em duas horas e com um elenco mínimo, de quatro pessoas. Por outro lado, o título aponta para essa ideia de que a recordação do passado é uma reconstituição que fazemos no presente, como um animal que muda de forma de cada vez que o lembramos”, explica-nos ao telefone desde Buenos Aires. É daquelas canções que parecem ter a frase certa para cada momento da vida, ou pelo menos da vida que se vive entre os 25 e os 35: I’m flunking out, I’m flunking out, I’m gone, I’m just gone / But at least I author my own disaster (…)/ We want our films to be beautiful, not realistic/ Perceive me in the radiance of terror dreams.”

A partir daqui, já não temos de imaginar nada. Vemos como Mario sofre com o contraste entre a grandeza do nome que os pais, fanáticos de cinema italiano, lhe deram, sacado de um herói de Visconti, e a sua vida indigna de ser projectada em lugar algum. Veremos como Laura percebe ter ido mal agasalhada para o Inverno de Paris e tem medo de experimentar roupa muito linda que lhe fique muito mal. Veremos como Pablo chega ao Brasil para dirigir a sucursal da sua empresa e uma noite bebe de mais num karaoke enquanto fantasia encontrar a mulher da sua vida, a filha rebelde de uma família de dinheiro. E veremos como Vicky viaja semana após semana até à aldeia onde o pai tem outra família e passa as noites a pensar e a fumar, a pensar e a fumar, até se apaixonar por um trabalhador rural com quem foderá como se fosse um cavalo e pouco falará, embora um dia ele lhe diga: “Sonhei com umas vacas em chamas que iluminavam o campo à noite.”

 

Outras pessoas

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Parte das vidas que Mariano Pensotti inventou são a vida que teve. Outra parte são as vidas que viu os outros à sua volta a terem ou a poderem ter tido. Com os seus abortos, amores de fim de Verão, persianas baixas e corpos colados o tempo todo, palestinianos obcecados com a jihad, tentativas de suicídio, mortes precoces, livros para sempre inacabados. Inventou-as enquanto olhava para “as fotografias defeituosas” que todas as sextas-feiras o laboratório de revelação perto da sua casa em Buenos Aires deitava à rua. “O meu plano foi tomar um período muito recente, de 1999 a 2009, que correspondeu a um tempo de transformações profundas na Argentina e a um tempo em que a minha geração se tornou protagonista da História do país”, diz ao Ípsilon. “Como geração, temos uma imagem muito desfocada, muito turva, de nós mesmos, porque somos os filhos dos militantes políticos e revolucionários dos anos 70 e sempre nos sentimos um pouco defeituosos. Ao mesmo tempo, esta ideia de tentar sempre ser o outro, da permanente construção de uma identidade, é muito teatral. Uma coisa que unifica as personagens – personagens da classe média argentina, em si mesma um organismo muito diverso – têm esta fantasia de que poderiam ser melhores se estivessem noutro lugar, se fossem outras pessoas. É por isso que os vemos transformando-se em duplos de si próprios”, continua.

Ao princípio, admite, não sabia o que iria fazer com essas fotos. Quando voltou a vê-las, apercebeu-se de que compunham um retrato da sua geração – e agradou-lhe essa metáfora de um conjunto de gente “desfocada”, porque “sempre nos sentimos falidos e falhados em relação à geração anterior”. Quis encontrar as pessoas que estavam nessas imagens, mas às tantas decidiu dar-lhes as vidas que talvez nunca tenham vivido – vidas enormes como as dos filmes de Fassbinder ou nos romances de Tolstói. Depois acrescentou-lhes um narrador omnisciente que, em voz on, conta as vidas de Mario, Laura, Pablo e Vicky pondo em palco a ideia de que a identidade é “uma narrativa”. “Tanto o texto original de El Pasado… como o de Cineastas (2013), que escrevi a seguir, se parecem muito pouco com peças de teatro. Escrevi-as mais como uma novela ou como um conjunto de contos, sem saber no que iriam transformar-se. Interessa-me a carga literária de uma cena, mas não no espírito da adaptação; de resto, as referências mais directas destes textos são os romances-mundo do século XIX em que autores como Balzac, Stendhal ou Tolstói misturaram acontecimentos autobiográficos com factos históricos. Ter um narrador em cena era um dispositivo muito atraente parar gerar essa dissociação entre o narrado e o representado”, argumenta.

De cada vez que o carrossel gira, notamos, parece que tudo vai mudar. Quando voltarmos a encontrar Mario, Laura, Pablo e Vicky, já serão outras pessoas. Ou não, corrige Mariano: “O interessante destes turning points é que muitas vezes não são reais, são impressões subjectivas das personagens. Estão sempre a sentir que as suas vidas vão mudar, mas na verdade não mudam assim tanto – é apenas uma fantasia.”

 

Feitos de ficção

Três anos se passaram até Mariano Pensotti estrear, de novo com o seu Grupo Marea, a peça que veremos nas próximas quinta e sexta-feira na Culturgest. Cineastas é, no fundo, uma experiência metateatral que não correu bem. “A primeira ideia que tive foi entrevistar um grupo de jovens cineastas de Buenos Aires para aquilo que eu julgava que ia ser uma instalação numa galeria, onde pudesse projectar simultaneamente os filmes reais que eles realizaram e uma série de documentários sobre as suas vidas. Mas não funcionou e achei que podia trabalhar esse material em teatro.” O projecto de um palco dividido ao meio, em split screen – a vida real em baixo, os filmes em cima – apareceu aí (Mariana Tirantte, a sua cenógrafa habitual, desenhou-o habilmente; de resto, trabalha sempre com o mesmo iluminador, Alejandro Le Roux, e com o mesmo músico, Diego Vainer).

Muito pouco ficou das entrevistas iniciais – quase tudo ficou do indissolúvel vínculo entre ficção e realidade que Mariano descortinou haver na maioria dos entrevistados: “Mais ou menos indirectamente, as suas histórias de vida estão presentes nos filmes e os filmes acabam por transformar as suas vidas. Isso era óbvio mesmo antes das entrevistas. O que mais me surpreendeu foi perceber o modo como estamos tão injectados de ficção. Todos vivemos vidas efémeras e o cinema parece uma forma de preservar a experiência para a posteridade – como uma cápsula do tempo das nossas vidas, apontando ao futuro. Mas na verdade passa-se tudo ao contrário: vamos editando cenas que vimos nos livros, nos filmes, na televisão. Somos terrivelmente feitos de ficção. Ao ponto de me questionar se as nossas vidas servem apenas para a imitar.”

Onde em El Pasado encontrávamos Mario, Laura, Pablo e Vicky, em Cineastas encontramos Gabriel, cineasta de grande êxito comercial em choque depois do diagnóstico de doença incurável, Mariela, realizadora experimental que quer contar a história da dissolução da União Soviética através dos musicais que ali se produziram na fase terminal do regime, Lucas, o artista pobre que tem de trabalhar no McDonald’s para financiar o seu projecto de ridicularizar o imaginário das multinacionais, e Nadia, documentarista filha de um desaparecido da ditadura a quem uma produtora francesa encomenda uma história muito parecida com a sua. Desta vez só passamos um ano, não dez, dentro das vidas delas – e das ficções que elas engendram, porque no andar de cima vemos tudo o que imaginaram. “É um mecanismo complexo para os actores, que têm de estar a subir e a descer constantemente, mas gera um sistema bastante lúdico, e vital, que é o que me interessa em geral na cenografia, uma vez que a dramaturgia tende a ser melancólica”, sublinha Mariano. Como dramaturgo, não tem grandes certezas sobre onde acaba a realidade e começa a ficção, mas escreveu coisas como “quando se termina um filme, algo morre”; ou “há coisas que duram para sempre, como certas cidades e as grandes marcas do capitalismo”; ou ainda “as ficções duram mais do que as vidas”. Facto: “Desde a invenção do cinema até 2013, realizaram-se mais de 400 mil filmes em todo o mundo. Se alguém quisesse vê-los todos de enfiada, demoraria mais de 92 anos.”

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Para as personagens de El Pasado Es Un Animal Grotesco (2010), a primeira peça do dramaturgo e encenador, a vida é como aquele carrossel que gira sempre à mesma velocidade no parque de diversões semi-gasto dos arrabaldes ALMUDENA CRESPO

Este demora apenas uma hora. E não é o retrato de uma geração, mas talvez seja o retrato de uma cidade tal como Mariano Pensotti, um dos seus mais extraordinários habitantes, a viu em 2013. Por algum motivo a homepage do seu site é o mapa de Buenos Aires.