A bênção da arte contemporânea

Isto é um edifício de criação, transdisciplinar, não é um museu. É mais ambicioso, abriu em São Miguel, nos Açores, no mesmo dia em que chegaram as low cost. Está à nossa espera.

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Quando agita o hissope, lançando água benta sobre o novo centro de artes contemporâneas da Ribeira Grande, o ritual da bênção parece-nos um happening. “Damos graças dos nossos benefícios...”, continua o padre Manuel Galvão. Puro preconceito de quem não está habituado à presença do sagrado no profano?

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Quando agita o hissope, lançando água benta sobre o novo centro de artes contemporâneas da Ribeira Grande, o ritual da bênção parece-nos um happening. “Damos graças dos nossos benefícios...”, continua o padre Manuel Galvão. Puro preconceito de quem não está habituado à presença do sagrado no profano?

Nesta inauguração do Arquipélago há quem pense que a arte contemporânea pode salvar o mundo. O centro acaba de ser inaugurado no final de Março na cidade da Ribeira Grande, ilha de São Miguel, a poucos minutos de carro de Rabo de Peixe, uma das localidades açorianas (e portuguesas) com maiores problemas de pobreza. O edifício, que custou 13 milhões de euros, está pronto há um ano, mas só agora abriu. A ideia nasceu antes da crise financeira numa cidade de 32 mil habitantes, num governo socialista, numa câmara socialista que entretanto passou para o PSD.

Nasceu aqui, na Ribeira Grande, dizem os críticos, porque a Câmara de Ponta Delgada era, e é, social-democrata. Outros sublinham a “ambição” do projecto — palavra que o presidente do governo regional, o socialista Vasco Cordeiro, usará a seguir na sua intervenção duas vezes — por causa do inusitado de construir um centro de artes contemporâneas, no plural e por isso transdisciplinar, fora de Ponta Delgada, a capital dos Açores. O inusitado, sublinham vários membros da equipa do Arquipélago, é que não se trata de um museu, ou de um museu com uma sala de espectáculos acoplada, mas antes de um centro dedicado à criação, onde a importância dada aos espaços para as oficinas onde acontecerão as residências artísticas é uma das ideias principais do projecto.

Vasco Cordeiro está a fazer o discurso no mesmo dia em que aterram na ilha as primeiras low cost: diz que com o Arquipélago os Açores se podem “orgulhar” de não serem apenas um destino de natureza, que “o turismo cultural cresce por todo o mundo”, e cita Eça de Queirós para evocar “a indisciplina dos mais novos”, garantindo que o centro vai permitir aos residentes e aos visitantes contactarem com a contemporaneidade artística.

Espreitar o edifício
O centro abriu antes de começar as suas actividades artísticas, que vão da dança ao teatro, do cinema às artes visuais, da performance à arquitectura. Neste mês, o objectivo é mostrar a arquitectura e que a população possa espreitar o edifício. Foi assim que a nova directora, Fátima Marques Pereira, em funções apenas desde Fevereiro, decidiu começar a programação. Por isso a visita guiada da comitiva do presidente do governo regional começa com uma explicação feita pelos três arquitectos autores do projecto, João Mendes Ribeiro, Cristina Guedes e Francisco Vieira de Campos. Com pouco mais de 9241 metros quadrados, está próximo em área da Culturgest (10.389), em Lisboa, ou do Museu de Serralves, no Porto (12.669).

“A que tipo de conhecimento pode dar lugar a imagem? A imagem não é um corte”, ecoará nas salas a partir das instalações de Pedro Sena Nunes. A directora encomendou estes vídeos ao realizador, porque achou demasiado arriscado mostrar só a arquitectura: “A minha grande preocupação neste arranque é que os açorianos sintam que o Arquipélago é deles. A mim não me assusta um espaço vazio, do ponto de vista conceptual faz todo o sentido.”

Por isso, nos vídeos aparecem algumas das 20 pessoas da equipa do Arquipélago a reflectir sobre o que é a arte ou a população de Rabo de Peixe, principalmente crianças, a habitar o espaço pela primeira vez. Não deixou de ser uma residência artística: quatro dias intensos, a filmar 18 horas por dia. “Não me interessava filmar só o edifício”, diz Sena Nunes. “Era muito importante trabalhar com a comunidade, fazer os corpos ocuparem o espaço.” Pés que sobem por paredes, corpos translúcidos, um homem que faz um sprint no edifício. A ideia era trabalhar o corpo ausente, tentar perceber o enigma, trabalhar o lugar da memória e da identidade.

E o que é que as pessoas acharam do edifício? Sentiam-se privilegiadas por serem as primeiras a entrar; inquietas por ser a primeira vez; falavam do grande impacto que o edifício causava. O realizador pensa que este “é um espaço com futuro, um projecto ambicioso”. “A sua localização é de excelência, e acredito justamente nessa localização. Gosto dessa provocação do contexto social, de estar perto de Rabo de Peixe. Não estamos na Lapa.”

A jornalista Paula Gouveia, do Açoriano Oriental, que no dia da inauguração não tinha aparecido por causa da chegada das low cost, ainda se lembra da fábrica de álcool e tabaco, a ruína onde foi construído o Arquipélago, estar no limite da Ribeira Grande. Na rua que hoje desemboca no centro da cidade, onde já estiveram os secadores de tabaco da fábrica, foram aparecendo moradias nos últimos anos.

“Vocês perdem-se aqui”, comenta Paula Gouveia para um dos membros da equipa. Ela e Ricardo Botelho vão contando uma história diferente quando olham para a paisagem envolvente, além da mais mediática de Rabo de Peixe. Das janelas viradas ao mar vêem-se a praia de Santa Bárbara, que acolhe o campeonato mundial de surf em Setembro, e a de Monteverde, que se enche no Verão. As vacas aparecem às vezes nas pastagens para lá da marginal. Do terraço avistamos entre o aglomerado histórico de Ribeira Grande, onde ainda não há para já um hotel, a igreja matriz do padre Galvão, a Igreja da Conceição e o Museu do Franciscanismo. Na serra, lá está a estação de geotermia com a sua energia renovável.

Estamos a caminho de Ponta Delgada e perguntamos se não podemos passar por Rabo de Peixe. Helena Barros, do serviço de comunicação do centro, conta histórias de pessoas que pediram o mesmo e diz que a população reconhece que estamos ali numa espécie de turismo de favela (a expressão é nossa). A vila e a sua população tornaram-se o símbolo dos problemas de pobreza que Portugal ainda não conseguiu resolver e que dão indicadores aos Açores de desenvolvimento humano que o colocam na cauda da Europa.

Já em Ponta Delgada, ao pé do Teatro Micaelense, encontramos Jesse James e Diana Sousa, os directores do Walk & Talk, o mais relevante festival de São Miguel na área da arte contemporânea. Foram eles que levaram Alexandre Farto (aka Vhils) a Rabo de Peixe e puseram a coreógrafa Filipa Francisco a trabalhar com a população local. Jesse James saiu “superentusiamado” da inauguração e hesita quando o interrogamos sobre a dimensão do edifício. “Tem uma escala que é muito maior do que a própria ilha. Tem uma escala que é um desafio, mas acho que deve sem dúvida almejar essa dimensão. Estamos entre a Europa e os EUA e há obviamente aqui todo um eixo que se pode desenvolver em termos de programação.”

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O centro é a estrutura de apoio que faltava ao “ecossistema criativo açoriano”, capaz de acabar com uma cena artística que Jesse James acha bipolar, entre o erudito e o demasiado popular. “Os protagonistas na criação acabam por ser os mesmos. O espaço é finito. Essa estrutura juntamente com a abertura do espaço aéreo permite que haja novos agentes, novas figuras. Isso traduz-se numa democratização.”

As residências artísticas como forma de programação, permitindo à comunidade participar, “é uma maneira de o edifício não ser uma coisa alien naquela cidade”. “As pessoas participarem de forma mais ou menos directa é uma maneira de validar a própria estrutura.” Os públicos existem e o Walk & Talk provou isso. Jesse James trouxe a arte para a rua, literalmente, e as pessoas apareceram nas coisas mais difíceis. Arquipélago e Walk & Talk já estão a trabalhar em conjunto, programando a residência de dança contemporânea de Tânia Carvalho, que se vai associar a um núcleo de bailarinos açorianos, os 37.25.

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Exotismo, despojamento
Quando a obra do Arquipélago acabou em Fevereiro de 2014, o director-geral da Cultura tinha um edifício na mão e muito menos dinheiro para o pôr a funcionar. Nuno Ribeiro Lopes é o quarto director-geral a orientar o projecto. Numa sala da Biblioteca de Ponta Delgada, onde nos recebe para uma entrevista antes de regressar à Secretaria Regional de Cultura na Terceira, sublinha que o centro nasceu antes da crise de 2008.

“Foi vocacionado para uma coisa mais próxima do Museu de Serralves, digamos assim — o mundo deu uma volta muito grande em termos económicos.” Quando foi anunciado um milhão de euros para este ano, custos fixos incluídos, isso significou uma redução de 50 por cento em relação ao inicialmente previsto. Por isso, propuseram-se reanalisar o edifício e é um pouco o que esta pré-programação, que vai durar até ao final do ano, anda à procura nesta fase. Foram buscar outra vez o programador António Pinto Ribeiro, responsável pelo Próximo Futuro da Gulbenkian, que no início já tinha dado apoio ao projecto.

O Arquipélago não vai trabalhar isolado, mas em colaboração com três instituições que dependem da Secretaria Regional de Educação e Cultura: a Biblioteca e Arquivo de Ponta Delgada, o Museu Carlos Machado e o Teatro Micaelense. “Preferimos fazer uma síntese de colaboração entre as diferentes estruturas que existem em São Miguel. Não podemos trabalhar com departamentos isolados.” É por isso que o cinema vai ser assegurado por um funcionário da Direcção Regional da Cultura, o realizador Manuel Bernardo Cabral, evitando que o Arquipélago duplique áreas de intervenção. Promete-se a construção de uma base de dados do património imaterial, formação e a criação de um festival de cinema em 2016, com extensões em várias ilhas, tal como toda a acção do centro.

O Arquipélago abriu já, porque um ano de paragem é muito difícil de explicar e porque uma “abertura progressiva” permite à comunidade apropriar-se do edifício. Para o director regional, responsável pela candidatura do Pico a património mundial, a vocação principal do Arquipélago é criar condições para que os artistas açorianos convivam com os artistas internacionais. “As residências são uma forma muito activa e importante de estabelecer essa ligação. Mas há também as parcerias com outras entidades.” Em Maio chega já uma com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) para mostrar a colecção de arte contemporânea do Arquipélago, que começou a ser constituída em 2009 no mercado nacional e internacional.

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A primeira sala de exposições com pé-direito de 4,5 metros José Campos
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Black box José Campos

Nuno Ribeiro Lopes acredita que o território dos Açores oferece condições de criação específicas. “Há uma espécie de despojamento. Vimos com uma ideia pré-concebida e partimos para outra proposta. Na arquitectura funciona assim, eu já fiz esse percurso.” Foi o que lhe aconteceu quando desenhou o Centro de Interpretação do Vulcão dos Capelhinhos na paisagem lunar do Faial. “Todos estes discursos sobre o preenchimento de vazios aqui não funcionam. Há a natureza com esta força total, seja pelos vulcões, pelo mar, pelos ventos quase ciclónicos.”

Tal como Jesse James, o director-geral fala do exotismo dos Açores, um fascínio que permite muitas vezes reduzir custos. “Até agora os Açores têm resistido. Não há praia. Tem havido algum cuidado no investimento, procurando-se oferecer autenticidade. Obviamente também é necessário aumentar a qualidade e ultrapassar a pequenez local no dia-a-dia.”

A síndrome do Centro das Artes Casa das Mudas (Madeira) — magnífico edifício onde falta programação à altura — não o assusta: “Não tenho dúvidas que é um desafio quase sobre-humano. Mas temos obrigação, com ‘O’ grande, de não baixar os braços. O centro tem gerado uma expectativa enormíssima ao nível local, regional e mesmo nacional que obviamente temos de potenciar.” E, sim, é um centro com uma ambição internacional: “Se não, não valia a pena fazer um edifício daquela dimensão.”

A colecção em Maio
No final do próximo mês, a nova directora, que esteve no Instituto Politécnico do Porto e já foi subdirectora da DGArtes, vai mostrar a colecção do Arquipélago. Uma lista de 45 artistas, muitos dos nomes habituais, principalmente mais novos, mas também consagrados. Convidaram João Silvério, curador da FLAD, para comissariar a exposição, que deverá fazer um cruzamento com o tema do Espírito Santo. Estão previstas residências dos artistas da colecção, mas ainda não há nomes anunciados. A ideia, no futuro, é que a colecção do Arquipélago seja enriquecida com obras feitas nas residências artísticas.

“Sabe que eu estou cá há dois meses?”, é a resposta de Fátima Marques Pereira, quando lhe perguntamos porque é que a pré-programação dura até Outubro. “Ninguém faz uma programação em dois meses.”

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Ainda em Maio, há um ciclo de performance organizado por Mariana Brandão. Para já, a directora anunciou os nomes de Vânia Trovisco, Ramiro Guerreiro e Gustavo Sumpta. O ciclo inclui um curso de performance para a população. “Um dos nossos grandes desafios é a criação de públicos.” Outro, reconhece, é a internacionalização, “colocar este centro de arte no mundo”.

Cá fora anuncia-se uma exposição de António Dacosta no Museu Carlos Machado, mesmo ao lado da biblioteca. Mas o que queremos ir ver é a Galeria Fonseca Macedo, a única de arte contemporânea digna desse nome nos Açores, que mostra também trabalhos deste pintor, que nasceu na Terceira. Com 35 obras em exposição, preços entre 1400 e 33 mil euros, já vendeu 17. A próxima exposição agendada é de Ana Vieira.

A galerista Fátima Mota deposita grande esperança no centro, porque durante 15 anos trabalhou sozinha em arte contemporânea. “Para mim não podia ser melhor. Aquilo que vi e que ouvi gera uma grande expectativa. O espaço é espectacular, não conheço muitos assim, e a equipa merece-me um grande aplauso, porque em tão pouco tempo já definiu coisas que vão acontecer durante todo este ano.”

Na sua galeria costuma fazer o arranque do Walk & Talk e já se sente uma veterana entre pessoas tão novas. No próximo Verão promete festa — “haja dinheiro” — para comemorar os 15 anos, aniversário que nunca pensou celebrar. “A arte contemporânea está na mão de duas Fátimas, só pode dar milagre.”

Dinheiro, ou como arranjá-lo, foi o tema do almoço entre Fátima Marques Pereira e Nuno Ribeiro Lopes. Para ir buscá-lo à União Europeia, ao programa da Europa Criativa, contrataram uma empresa que lhes permite ter “olheiros em Bruxelas”, expressão do director-geral. Nuno Ribeiro Lopes acha que há muito para fazer com as realidades insulares, onde esperam conseguir liderar projectos da Europa Criativa: a Macaronésia, além dos Açores, a Madeira, Canárias e Cabo Verde, e as Baleares, a Sardenha, Sicília.

Viver a contemporaneidade não é nem fácil, nem óbvio, diz o programador António Pinto Ribeiro: implica ousadia intelectual, risco do desconhecido, possibilidade de rejeição. Se não tiver o mínimo de recursos, o centro pode-se tornar uma coisa faraónica, um elefante branco. “Mas também pode ser uma âncora, se eles encontrarem formas adequadas de se dirigirem às populações da Ribeira Grande, às populações de São Miguel, à massa crítica com a gente mais alternativa, que apesar de tudo existe, à universidade, e ainda aos turistas que aparecem por lá... Têm de encontrar modos de relacionar estes diversos públicos que constituem uma comunidade muito heterogénea.”

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A madeira usada no edifício, pavimentos e escadas, é riga velha José Campos

Isso, acredita com optimismo Pinto Ribeiro, “até pode ser uma experiência nova em termos de paradigma de programação”.

O padre Manuel Galvão ainda não tinha tido tempo de voltar a pensar no centro depois da inauguração, quando voltámos a falar com ele. Afinal sempre estávamos na Semana Santa, quando os serviços são mais do que muitos: benzer a arte contemporânea tinha sido apenas um deles.

O PÚBLICO viajou a convite do Arquipélago