O centenário da voz imensa de Billie Holiday
Aquela que ajudou a definir a forma de cantar no jazz faria esta terça-feira 100 anos. À volta de Billie Holiday sucedem-se por estes dias os tributos e homenagens.
Esta segunda-feira, em Portugal, foi lançada a antologia The Centennial Collection, que reúne 20 canções que marcaram o seu percurso, editadas originalmente entre 1935 e 1945, entre elas Strange fruit, All of me, When a man loves a man, Summertime ou God bless the child.
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Esta segunda-feira, em Portugal, foi lançada a antologia The Centennial Collection, que reúne 20 canções que marcaram o seu percurso, editadas originalmente entre 1935 e 1945, entre elas Strange fruit, All of me, When a man loves a man, Summertime ou God bless the child.
Já esta terça-feira, uma das cantoras jazz mais consagradas do nosso tempo, Cassandra Wilson, lança também o álbum tributo Coming Forth by Day, onde recria algumas das canções mais conhecidas de Billie, o mesmo sucedendo com José James, que através da histórica Blue Note edita o álbum Yesterday I Had the Blues: The Music of Billie Holiday, que irá apresentar ao vivo a 4 de Julho na Casa da Música do Porto.
Também a pianista Lara Downes homenageia a cantora em A Billie Holiday Songbook, numa das muitas comemorações previstas para este mês. Para além do novo disco, Cassandra Wilson dará concertos no The Apollo, mítica sala no bairro do Harlem de Nova Iorque, uma das poucas onde Billie conseguiu cantar para audiências mistas de negros e brancos.
Quem também actuará em sua homenagem é a cantora Cecile McLorin, no Lincoln Center de Nova Iorque, a 10 e 11 de Abril. Ao mesmo tempo foi lançada uma biografia (Billie Holiday: The Musician and the Myth) de John Szwed, que já havia escrito sobre Miles Davis.
Não espanta tanto alvoroço. Nas últimas décadas o seu legado foi sendo recriado pelas mais diversas cantoras, de diferentes gerações e pertencentes a distintos quadrantes estéticos. Dir-se-ia que a sua sombra se tornou omnipresente quando se pensa em figuras da estirpe de Janis Joplin, Erykah Badu, Etta James, Annie Lennox, Amy Winehouse, Julia Holter ou Cat Power.
E não são apenas cantoras. Ainda há dias o consagrado trompetista Wynton Marsalis confessava que, quando jovem, passou um ano a ouvir as suas canções. “Ouvi todos os discos que consegui durante um ano”, disse, argumentando que a sua voz constituía uma lição ao nível do ritmo, do fraseado e da sofisticação que qualquer aluno de jazz deveria ter em atenção.
No século passado outras vozes rivalizaram com a dela em termos de expressividade e audácia, mas poucas foram recolhendo tanta unanimidade com a passagem do tempo. Ela foi provavelmente a primeira cantora jazz a tocar as audiências com a intensidade emocional do blues, transformando para sempre a arte de cantar.
Ao contrário do que era até aí o modelo, ouvindo-a sentia-se que cantava o que vivia. Tinha influências como toda a gente (na sua autobiografia menciona Bessie Smith e Louis Armstrong como duas dessas ascendências maiores), mas o seu estilo era único.
A sua atribulada vida privada – uma sucessão de relações conflituosas, de dependências (da heroína ao álcool), de detenções e de períodos de depressão – acabou por contribuir para o mito, mas a verdade é que algumas das suas canções (Lover man, Don’t explain ou God bless the child) estão na lista das performances vocais mais sentimentais alguma vez gravadas. “Ela era toda coragem, dor, doçura e paixão. Era uma alma pura”, afirmava recentemente a cantora Jill Scott.
Mais do que a técnica apurada, ou a pureza vocal, aquilo que fez dela única foi o seu temperamento emotivo, exposto em lamentos vocais de grande candura. “O que sai é o que sinto”, dizia simplesmente.
Nasceu Eleanora Fagan, a 7 de Abril de 1915, filha de Sadie Fagan e de um músico de jazz, Clarence Holiday, com quem quase não teve contacto, acabando por adoptar o nome artístico Billie Holiday, alusão à actriz do cinema mudo Billie Dove. O seu outro heterónimo, Lady Day, foi-lhe atribuído por um dos grandes amores da sua vida, o saxofonista Lester Young, com quem partilhou palcos, gravações e muitas zangas.
Nunca teve aprendizagem formal. O seu método era empírico. Em palco era luminosa. Fora dele tinha de lidar com uma realidade por vezes cruel, que viria a reflectir em canções como My man ou Ain’t nobody's business.
Nos anos 1930, com a mediação do produtor John Hammond, que a havia descoberto a cantar em bares de segunda no Harlem, captou a atenção de uma das orquestras de jazz de maior sucesso nos Estados Unidos – a de Benny Goodman – e anos mais tarde a de Count Basie. Entre 1935 e 1942 registou mais de 100 gravações, entre elas um tema que a haveria de acompanhar até ao fim – Strange fruit (1939) – e que se viria a transformar numa das mais conhecidas canções de condenação do racismo nos Estados Unidos.
A meio dos anos 1940 conhece a sua fase de consagração, passando a ser conhecida fora dos circuitos mais exclusivistas do jazz. Curiosamente foi o seu período mais amargurado. O início do fim, de alguma forma, com o registo e o estilo comoventes a metamorfosearem-se em qualquer coisa de funesto.
Morreu a 17 de Julho de 1959, tinha 44 anos, mas parecia ter bem mais. Ao seu funeral acorreram cerca de 3 mil pessoas, muitas delas músicos do jazz que a admiravam. Hoje, para além do seu legado discográfico e das aparições televisivas, ficaram-nos documentários como Lady Day: The Many Faces of Billie Holiday (1990) de Matthew Seig ou o pouco consensual filme biográfico Lady Sings the Blues (1972) com Diana Ross no papel da cantora.
Ao longo dos tempos deixou registradas 300 interpretações imortais como Night and day, Satin doll ou Blue moon, para além de composições próprias como I love you porgy, Fine and mellow, God bless the child ou Everything happens for the best. Por estes dias presta-se tributo a uma figura ímpar. Quando da sua morte, estava sob detenção no hospital. Reza a lenda que tinha na conta bancária apenas 70 centavos.