A vida do casal Feliz numa aldeia de Trás-os-Montes

Perto de Vila Real, um casal de eremitas alimenta-se do que produz e da proximidade com a natureza. Deixaram a República Democrática Alemã há 30 anos e encontraram no isolamento transmontano a vida que procuravam — “a própria vida”.

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Estão ali há 17 anos. Dizem que a sua opção é a pobreza. “Não é oposição nem boicote. É uma forma de pensamento elevado.”

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Estão ali há 17 anos. Dizem que a sua opção é a pobreza. “Não é oposição nem boicote. É uma forma de pensamento elevado.”

Até chegar à antiga casa do moleiro percorre-se um caminho acidentado. Na berma da estrada, a 12 quilómetros de Vila Real, há uma placa onde se lê: “Missão Pobreza Voluntária”. O lugar não é acessível a todos. “Se vens por bem, podes entrar”, informa uma chapa presa a um pinheiro. Mais adiante, no fim de um caminho de terra e pedras envolvido por giestas, urzes e estevas, está uma cancela de ferro com mais uma mensagem inscrita no metal: “Sem fé nada seríamos”.

Esta fé é uma “ética”, “sem intermediários, sem sacerdotes”, mas “bastante próxima de Deus devido à natureza” envolvente, explica Feliz – um homem de barbas e cabelo branco, óculos, chapéu e mais de 60 anos. “Tudo o que nos envolve foi criado por Deus, como a terra, o ar, o fogo, os animais, as plantas e as árvores, que é tudo o que precisamos para vivermos e sermos felizes.” Maria Feliz completa: “Não tenho nenhuma ligação a nenhuma religião, mas tenho uma crença. Na minha alma existe uma coisa que eu quero entender. Por isso retirei-me desta sociedade para perceber o que é.”

A antiga casa do moleiro foi por eles restaurada e é aí que habitam, na companhia de um burro, umas poucas ovelhas, galinhas, dois cães e três gatos. Em volta estendem-se os campos onde começam o dia a lavrar a terra, a plantar o que comem. Maria também cultiva plantas medicinais que utiliza para fazer chás, cremes e remédios, que depois vende em feiras.

Aprendeu com a mãe e uma ama, que lhe incutiram o gosto pela medicina popular, inspirada nos ensinamentos de Santa Hildegarda, abadessa beneditina alemã do princípio da Idade Média – “a primeira mulher a pregar em público”. Em 1979 trocou a vida profissional, sobre a qual nada diz, por estes segredos antigos que diz serem a sua vocação.

“A mim nunca me faltou nada. Tinha uma vida normal, estudos e profissão, mas faltava uma coisa que não tinha explicação. Achei sempre que aquilo não era vida”. Tal como Maria, Feliz não gosta de falar do passado, mas admite que desde criança teve sempre a sensação de “não estar no seu próprio lugar”. Por volta dos 30 anos resolveram procurar outra forma de vida, a “própria vida”. Em Portugal, na Serra da Estrela, encontraram o que procuravam. Foi aí que se habituaram “a sobreviver com muito pouco” e que aprenderam muito com “analfabetos que eram sábios”. Passados sete anos fixaram-se mais para sul, junto ao mar, no Cabo Espichel. “Foi uma fase mais contemplativa”, ligada à leitura e ao estudo."

Mas antes de Vila Real ainda viveram em Vilar de Mouros, no Minho, onde Maria aprofundou o seu interesse pelos remédios tradicionais. Em 1993 tornou-se uma frequentadora do Congresso de Medicina Popular de Vilar de Perdizes, onde dá palestras e expõe o seu trabalho.

Agora, na solidão transmontana, na margem direita do rio Sordo, não têm electricidade, nem máquinas. Eles próprios canalizaram a água de uma fonte próxima. Na modesta casa que reconstruiram, com chão de pedra e tecto de madeira, não há rádio, nem televisão, nem frigorífico, nem Internet. Os telemóveis são deixados lá fora, numa caixa protegida com chumbo para evitar radiações.

Antes das refeições, colhem o que vão cozinhar. Vivem em harmonia com a natureza e vivem do que ela lhes dá – milho, feijão, feijocas, hortaliças, centeio e muito mais. O centeio com que fazem o pão é moído por Feliz num moinho do ribeiro, recuperado com vizinhos e amigos. Não excluem do seu regime alimentar o peixe e a carne, embora só os consumam esporadicamente.

Os cuidados de higiene começam de manhã, com um banho de água fria na rua. À noite, de vez em quando, tomam banho de água quente numa banheira de madeira com os óleos essenciais que Maria produz, tal como faz sabão, cremes para o rosto, pomadas, xaropes, tinturas e chás, ou a própria roupa. A sanita, ao ar livre, não tem autoclismo. Não usam papel higiénico mas água. O único candeeiro que têm é alimentado a energia solar.

O quotidiano é ritmado pelos afazeres do dia-a-dia, “sempre os mesmos e sempre diferentes”. A oração, a reflexão, o trabalho, a agricultura sem químicos são a receita para uma vida feliz e saudável. Não têm feriados e não conhecem a palavra férias.

Quando saem, muito raramente, não ficam fora mais de dois dias. Vivem completamente alheados da sociedade, mas ajudam e acolhem quem os procura em busca de mais saúde física e espiritual. Por vezes, entre Maio e Agosto, quando há mais trabalho no campo e se colhem as plantas medicinais, acolhem alguns jovens voluntários. “É uma boa oportunidade para conhecerem uma vida diferente, perto da natureza”, diz Maria.

Feliz, a par da escrita em que espelha a sua filosofia de vida, faz trabalhos de serralharia e carpintaria, corta lenha e fabrica velas artesanais. Alto, de olhos claros, apresenta-se com uma postura distante, mas por vezes consegue-se arrancar-lhe um sorriso que se desdobra em gargalhadas sonoras e infindáveis. Baixa, com cabelos cor de prata, Maria é mais calorosa e deixa transparecer o que lhe vai na alma. Às sextas-feiras partilha os seus saberes no mercado de Vila Real.

O segredo da sua felicidade, dizem os dois, vem do lema beneditino “ora et labora” (“reza e trabalha”), da vida silenciosa, do altruísmo, do antimaterialismo, do amor desinteressado e do contacto com a natureza. “Enquanto vives no silêncio tens mais respostas interiores e exteriores. Temos tempo para observar e receber mais sabedoria”, argumenta Maria. “Só insistindo com paciência e serenidade, trabalho e resiliência, encontramos a nossa solidez”, completa Feliz.

Garantem que têm uma vida muito dura mas feliz. “O que exige mais de ti faz-te crescer”. Abominam a “dependência social, cultural e monetária” e uma sociedade “massificada, consumista e supérflua”. Defensor daquilo a que chama “alta filosofia anti-materialista”, Feliz sintetiza: “Só a fuga da sociedade nos pode conduzir à vida.”