Eu sempre tive uma certa dificuldade em dormir. As minhas noites nunca foram períodos de repouso, nacos de dia que desaparecem na escuridão da inconsciência. Sempre foram umas maratonas de autocontrolo, de esforço psíquico para não olhar para o relógio: o rato Mickey com os braços a andar à volta, os relógios digitais com ou sem calculadora, os telemóveis cada vezes mais alienantes.
Quando era mesmo muito novo, tinha um pavor do escuro, das sombras e mesmo do próprio ar à minha volta. Todas as noites mergulhava por baixo dos meus lençóis e cobertores — quanto mais pesados, melhor — e, sufocando, esperava até o sono vencer. Claro está que a meio da noite acordava apavorado, com a cabeça de fora, todo suado. Mesmo assim, virava-me para dentro e escondia-me, à espera dos sonhos.
Era nessa altura, a meio da noite, quando ouvia o som do Tejo a entrar pela janela do meu quarto, num 9.º andar de um prédio em Carcavelos, que tentava imaginar os outros eus espalhados pelo Universo fora. Outros rapazes iguaizinhos a mim, com o mesmo nome, no mesmo prédio, numa cópia perfeita de Carcavelos, mastigando os mesmos pensamentos. Nessas alturas, usava cópias de mim, de algo que eu conhecia intimamente para projectar-me para o além. O meu universo infinito não era muito diferente das minhas noites encaloradas, escondido debaixo dos meus cobertores.
Não era uma criança precoce ou genial. Não tinha uma sabedoria inesperada que me levava a estes exercícios semimeditativos, dignos de um monge budista. Pelo contrário, vivia aquele egoísmo infantil que se transforma em insegurança adolescente. A bem ou a mal, era o centro incontestável do meu universo. O que significava, na prática, que não fazia sentido nenhum pensar que havia outros centros incontestáveis. Se houvesse, então eu não era especial e passava a ser um elemento medíocre e insignificante de algo mais vasto e misterioso. Só que seria essa mesma mediocridade que me ajudaria a tornar o universo familiar e compreensível.A capacidade de transcender a nossa própria auto-estima, de partirmos da nossa insignificância, olharmos para fora e projectarmos aquilo que nós somos naquilo que o Universo deve ser abre-nos os horizontes de um modo verdadeiramente avassalador. Foi precisamente este ponto de vista que ajudou Copérnico a tirar a Terra do centro e, com uma eficiência revolucionária, destronar os modelos cosmológicos gregos. O princípio de Copérnico, que pode ser generalizado para o princípio da mediocridade, estabelece que não somos especiais e está na base da ciência moderna. É um dos fios condutores do progresso na física e matemática dos últimos séculos.A aplicação mais fulgurante do principio da mediocridade é na criação do modelo actual do Universo. Em 1915, Albert Einstein propôs uma teoria para o espaço e o tempo. De acordo com Einstein, o espaço e o tempo — ou o espaço-tempo — deixam de ter uma vida inerte e rígida, ganhando vida própria ao serem moldados, empurrados e deformados pelas várias formas de energia nele contido. Seguindo as suas pegadas, o russo Alexander Friedmann e o belga George Lemaitre pegaram na teoria do espaço-tempo de Einstein e aplicaram-na ao Universo, na sua totalidade. E fizeram isso porque partiram do princípio da mediocridade ao assumirem que o todo não era, de maneira nenhuma, diferente do nosso cantinho do espaço-tempo.O Universo, que Friedmann e Lemaitre descobriram nos anos 20, é dinâmico, e está a expandir a uma velocidade avassaladora. É uma das previsões mais espantosas da física moderna. E, hoje em dia, com ajuda de telescópios e satélites de alta precisão, conseguimos observar a sua expansão com uma fidelidade inimaginável. Usando a física de Einstein e o princípio da mediocridade, descobrimos algo de verdadeiramente fundamental sobre o nosso universo.A combinação de Einstein e da nossa insignificância leva-nos a fazer inferências ainda mais fabulosas. Desde a possível existência de um começo do tempo, de um possível Big Bang, ao facto de existirem regiões do espaço-tempo com as quais nunca poderemos comunicar ou observar, estendemos os nosso horizontes como os navegadores das Descobertas. Neste momento, eu posso sentar-me à minha secretária e especular de um modo quase descontrolado sobre as fronteiras da realidade. Mas, desta vez, não sou um miúdo com medo do escuro. Agora, tenho a convicção de que não estou a inventar parvoíces, mas que as conjecturas que faço baseiam-se numa realidade física e matemática que descreve quase perfeitamente o meu canto irrelevante do Universo. É o poder da mediocridade.
Pedro Gil Ferreira é cosmólogo e professor de astrofisica na Universidade de Oxford. Estuda a origem e evolução do Universo e recentemente publicou Uma Teoria Perfeita, na Editorial Presença.