Tomas Tranströmer à beira-mar
Foi a ilha de Runmaro que deu a Tomas Tranströmer, o recém-desaparecido Nobel da Literatura sueco, as notas para criar uma poesia tão mágia e de eterna beleza. Conversa à volta do avô do poeta, velho lobo do mar que ali aportou e construiu a casa onde Tranströmer viveu até morrer, na semana passada.
É uma tarde chuvosa de Agosto, com um mar verde e misterioso – e não é difícil, num dia como este, imaginar porque é que os homens do mar constroem as suas casas em Runmaro e não numa das 27 mil outras ilhas de Estocolmo. Quando surge ao longe, rochosa, ponteada de abetos e carvalhos, parece a versão do paraíso para um homem seguro.
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É uma tarde chuvosa de Agosto, com um mar verde e misterioso – e não é difícil, num dia como este, imaginar porque é que os homens do mar constroem as suas casas em Runmaro e não numa das 27 mil outras ilhas de Estocolmo. Quando surge ao longe, rochosa, ponteada de abetos e carvalhos, parece a versão do paraíso para um homem seguro.
Em finais do século XIX, o avô materno do poeta Tomas Tranströmer, Prémio Nobel da Literatura, era um homem desse género. Comandante de navio, precisava de um lugar onde aportar e foi aqui que o encontrou. Ainda existe a pequena casa azul que ele construiu em Runmaro, e é nela que Tranströmer e a sua mulher de há mais de 50 anos, Monica, passam o Verão.
Como verdadeiro descendente de lobos do mar, Tranströmer dá a devida importância às chegadas por mar, embora o Acidente Vascular Cerebral (AVC) que o paralisou há 25 anos lhe torne difícil expressá-lo. Quando cheguei, aguardava numa cadeira de rodas, no fim de um longo e estreito caminho de terra, com uma manta em volta dos ombros, tendo Monica de pé, a seu lado. No colo, um rádio de meados dos anos 50, que enche a floresta com os sons da Sinfonia nº2 em mi menor de Rachmaninoff.
Enquanto Monica empurra suavemente a cadeira do marido por uma rampa que leva à casa, até entrar na sala, todos os símbolos da grande poesia de Tranströmer sopram à nossa volta. O chão em redor está cheio de raízes e de musgo. O vento sussurra nas árvores. Cheira a sal marinho e a resina. Há certamente um falcão ou um bútio que nos sobrevoa, espreitando-nos, observando a cena.
Tranströmer começa de imediato a apontar para coisas, em gestos silenciosos, do género: "Olhe, era isto que eu estava a tentar dizer."
Ao longo das duas horas que se seguiram, tornou-se claro que foi aquela ilha que lhe deu as notas para criar uma poesia tão mágica e de eterna beleza. E, por isso, as perguntas sobre poesia e o seu significado acabavam sempre por ir parar à ilha, ao avô de Tranströmer, com o poeta erguendo frequentemente a mão para apontar objectos e quadros espalhados pela sala, como se fossem eles os poemas e não o tema ou a inspiração para os mesmos.
É assim que comunicamos. O derrame de que Tranströmer foi vítima em 1990 paralisou-lhe um dos lados, roubando-lhe a maior parte da fala. Por isso, a sala para onde Monica nos levou é pequena mas está cheia de gente. Dois amigos, um realizador americano e a esposa, sueca, estão sentados num estreito banco de piano. Um fotógrafo, agente de Tranströmer, e Monica estão sentados em semicírculo por perto, como se ele fosse um pianista prestes a dar um concerto, e não um poeta sentado (contrariado mas gentilmente) para uma entrevista.
Todavia, a verdade é que todos estão aqui para ajudar a interpretar as respostas de Tranströmer. Há duas palavras que ele consegue dizer claramente: sim e não, e ainda, "muito bom". Depois há outras que surgem esporadicamente, mas estas três são os seus guias verbais. No entanto, o seu rosto diz bem mais. Tantas vezes fotografado com um olhar distante, fixo e severo, em pessoa Tranströmer é animado, empenhado, de olhar bondoso e até espirituoso.
Ao longo da tarde, faço perguntas que Monica traduz para sueco e depois ele responde; ela procura maior esclarecimento e assim vamos prosseguindo. Entretanto, Tranströmer segue as perguntas e extrapolações dela com o rosto, as poucas palavras e o tom da sua voz. Enquanto isso, tocam-se e olham-se constantemente. Observando os dois, é difícil dizer quem é o maestro e quem é a sinfonia.
Abordar o enigma
Talvez seja apropriado falar com um poeta que, desta forma, há tanto tempo é conhecido de um publico tão vasto. Ainda antes de ganhar o Prémio Nobel, Tranströmer tinha sido já traduzido em quase 60 idiomas, o que fez dele o segundo poeta mais traduzido, logo a seguir a Pablo Neruda.
Entre os admiradores de Tranströmer contam-se Seamus Heaney e muitos dos principais poetas norte-americanos do pós-guerra. Romenos, jugoslavos, japoneses. Tendo crescido na Irlanda do Norte, Paul Muldoon, poeta e editor de poesia da revista New Yorker, diz que a moda chegou lá na pior das alturas: “A alcunha que lá lhe pusemos foi ‘Transformer’, que traduz o nosso profundo respeito pela sua obra.” Este feito é ainda mais notável dado o facto de a produção de Tranströmer ter sido relativamente modesta. Em seis décadas, publicou apenas 11 colectâneas, nenhuma das quais continha mais de 20 poemas.
Um volume destes poemas escolhidos está pousado por ali quando nos preparamos para falar, como um diário de bordo dos lugares por onde viajou com a sua mente. Pergunto se Tranströmer começou a ver a poesia como uma espécie de orientação, ao que ele responde “sim, sim”, seguido pela extrapolação de Monica: “Uma forma de tentar abordar o enigma. Penso que é uma boa metáfora para poesia.”
O seu território não era vasto mas era profundo. Durante muitos anos, passou muito mais tempo a trabalhar como psicólogo, primeiro num estabelecimento correcional para jovens e, mais tarde, como psicólogo ocupacional para o Estado sueco. Os poemas que escreve têm uma profunda força psicológica, a obra de um homem possuído. Muitos dos mesmos símbolos e presságios repetem-se: as estações do ano e os seus sistemas climáticos, estados de sonho e sósias, o arco do passado da família.
Ler a poesia de Tranströmer é entrar num espaço interior tenso tornado visual, um espaço cheio de indícios e sinais, de insinuações. Os seus poemas podem usar imagens abstractas mas os melhores deles são tão íntimos como um beijo às escuras. Consegue esta ligação através dos sentidos e de uma eliminação gradual do ego. Morning Birds, por exemplo, começa com a descrição do poeta a entrar no carro, mudando depois para uma descrição de pêgas a cantarem alto, passando em seguida para este espantoso segmento, que poderia ser considerado uma espécie de guia para muita da obra de Tranströmer: “Fantastic to feel how my poem grows/ while I myself shrink./ It grows, it takes my place./ It pushes me aside./ It throws me out of the nest./ The poem is ready.” ("É extraordinário sentir como o meu poema cresce/ enquanto eu mesmo encolho./ Cresce, ocupa o meu lugar./ Empurra-me para o lado./ Deita-me fora do ninho./ O poema está pronto.", na versão de Manuel Anastácio a partir de Robin Fulton).
A afinidade de Muldoon e de Heaney com Tranströmer é a chave para a razão por que um poema como este é tão sensacional, mas também tão radical. Tranströmer começou a escrever poesia logo a seguir à Segunda Guerra Mundial e estava aos 84 anos, quando o visitámos, no começo de uma guerra perpétua no Médio Oriente. Ao longo de todo este tempo, o desafio que se colocou a si próprio foi o de encontrar uma nova linguagem para a intimidade e para o compromisso, tal como Heaney e Muldoon no âmbito do seu próprio ambiente com carga política.
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“Depois da guerra, muitos poetas suecos começaram a pensar sobre a neutralidade do país”, diz Daniel Sandstrom, o homem de letras e editor de Bonniers. “Foi fonte de vergonha e dessa vergonha nasceu este desejo de pensar de forma mais alargada e política.”
No espírito da geração que seguiu Tranströmer, ou se era marxista ou reaccionário. Tranströmer não era nem uma coisa nem outra. Viajava e tinha convicções políticas, mas não estava interessado em usar a arte como arma. Havia ainda mais uma divisão a ter em conta. Ele foi criado num contexto religioso mas não era, de modo nenhum, evangelista. Num país cada vez mais secular, isso constituía um problema. “Eras livre de tudo isso”, diz Monica referindo-se à doutrina religiosa, induzindo uma forma de gracejo facial por parte do poeta como que a dizer “Graças a Deus”.
E, portanto, enquanto muitos dos seus contemporâneos encaravam falsas polaridades, Tranströmer regressava à ilha onde passou todos os Verões quando rapaz, transformando os sons, as estações e as disposições deste lugar na sua própria mitologia grandiosa.
Crise existencial
Passaram 20 anos de publicações até Tranströmer formalizar esta ligação. Quando estava a começar, o seu maior desafio foi encontrar uma sintaxe para a sua imaginação. Como todos os poetas que nasceram no período entre as duas guerras, modernismo e surrealismo eram os faróis da mente. Mas foi uma experiência pessoal íntima que o mudou de forma mais drástica.
Durante o Verão dos seus 14 para 15 anos, teve aquilo que descreveu nas suas memórias como uma espécie de terror existencial. As pernas tremiam-lhe, era invadido por pavor. “Nessa altura, eu era céptico em relação a qualquer forma de religião”, escreveu Tranströmer em Exorcism, publicado em 1993, admitindo que, se isso tivesse acontecido mais tarde, teria provavelmente sido uma revelação.
Depois da crise, Tranströmer começou a tocar muito piano, uma actividade que ainda mantém, tocando ocasionalmente em público peças para mão esquerda. Hoje confirma a sua avaliação do que aconteceu nesse período dizendo que esteve mais perto de uma psicose do que de uma experiência religiosa. Monica acrescenta: “Creio que disseste que, se tivesses chegado a esta espécie de suave fé religiosa ou à confiança na fé, a que de facto chegaste alguns anos depois, terias sido capaz de lidar com a crise de um modo totalmente diferente. De uma certa forma, desenvolveste simplesmente uma fé muito própria durante a adolescência. Era isto que tu próprio dirias, não?"
– Sim, é isso, diz Tomas. Mas…
– Criaste uma certa imagem de Deus, para ti próprio.
– Sim…
– … embora não com uma filiação específica nem parecida com o que era ensinado nos estudos religiosos na escola. Um sentimento de confiança, viesse ele de onde viesse. Não é fácil falar sobre este tema.”
Hoje em dia, Tranströmer diz não saber se foi esta experiência que o fez interessar-se por questões psicológicas. “Penso que [se deu] a transição de uma consciência religiosa básica para a fé”, explica Monica. “E teve a ver com a música.”
Curiosamente, de todos os poemas de Tranströmer, o que mais diretamente tem a ver com fé é também sobre música, Schubertiana. “So much we have to trust”, escreve Tranströmer no poema, “simply to live through our daily day without/ sinking through the earth!” (p. 148).
Pelos 18 ou 19 anos, Tranströmer começou a distanciar-se da música em prol da poesia, escrevendo tanto que – como qualquer virtuoso – foi encontrando maneiras de tornar a escrita mais difícil. Começou a escrever em estrofes horacianas – usando as métricas sáfica e alcaica –, daí saindo parte de Autumnal Archipelago e Five Stands to Thoreau, ambos publicados no seu primeiro volume, 17 Poems (1954).
Tranströmer pega num volume da colectânea da sua poesia e começa a identificar os tipos de métrica de cada poema: “Aqui, aqui, aqui." “Julgo que a estrofe sáfica talvez lhe tenha dado uma liberdade de estilo”, acrescenta Monica, ao que Tranströmer responde “Muito bem”, acrescentando: “Um tipo dentro do qual trabalhar.”
Mas essa não é a única restrição que Tranströmer impôs a si mesmo. Os versos de 17 Poems esboçam um tipo de ecossistema no interior do qual Tranströmer viria a trabalhar no resto da sua vida – um ecossistema que, ao chegar-se a Runmaro, é reconhecivelmente o desta ilha. O verde e os marinheiros, o enrolar das ondas. Os sons que são as impressões digitais da ilha perpassam os primeiros poemas. Aqui estava um poeta “a tactear os instrumentos da atenção”, para citar um poema da fase inicial de Tranströmer (29/The Man Who Awoke with Singing Over the Roofs).
Na Suécia, a resposta a este fenómeno de 23 anos foi instantânea. Como disse Sandstrom, “o furor da crítica foi imediato e duradouro”. “O início dos anos 50 era considerado o apogeu da poesia moderna: naquela altura, ser cool não era ter uma banda de garagem mas sim, organizar sessões de leitura de poesia.”
Tranströmer viria a publicar três outros livros neste período exaltante, em todos eles tornando mais profunda a sua ligação à paisagem, ao mesmo tempo que a sua economia das imagens se tornava mais estranha e misteriosa. À medida que o auge da poesia se ia desvanecendo, Tranströmer mergulhava cada vez mais no seu trabalho, tornando-se, no dizer de Sandstrom, “quase no seu próprio género”.
Correspondência
Por esta altura, Tranströmer começou a corresponder-se com o americano Robert Bly, poeta, tradutor e editor literário. Nascido no Minnesota e senhor de uma personalidade espalhafatosa, Bly lançara nos EUA uma revista literária que viria a mudar de nome a cada dez anos. Em 1964, chamava-se The Sixties e, em Março desse ano, Tranströmer, então com 32 de idade, escreveu para o editor em Madison a perguntar como podia obter um exemplar da revista. Bly respondeu logo, assinalando que acabara de correr o estado para arranjar The Half-Finished Heaven, de Tranströmer, em sueco.
Ao longo dos 25 anos que se seguiriam, os dois poetas trocaram centenas de cartas, saciando mutuamente a sede de mexericos literários internacionais. A história desta amizade e os modos como ela se desenvolveu são revelados em Air Mail – um livro tão caro para Tranströmer que, quando lhe mostro um exemplar, ele parece já não querer devolvê-lo.
Ler este volume é perceber a razão por que ele não quer separar-se dele. Impressa nas suas páginas está uma amizade que deu lugar a um vendaval literário e que acabaria por mudar a vida de ambos. Tranströmer e Bly foram traduzindo os trabalhos um do outro e discutindo política. Bly não conseguiu publicar os seus poemas sobre a Guerra do Vietname. Por seu lado, Tranströmer foi criticado pelos marxistas por ser distante: “Em geral, na Suécia”, diz ele a Bly após resumir certas críticas tendenciosas, “os jovens marxistas têm pouca tolerância com a poesia” (29 de Outubro de 1966).
“Tomas escreveu uma quantidade enorme de cartas, não apenas a Bly mas também a muitos outros, e nelas ele revelava-se realmente”, diz Monica. “Essas cartas eram muitas vezes coloquiais, divertidas, e por vezes duras. Por isso, julgo que embora Tomas tivesse todas estas qualidades, ele nunca sentiu a necessidade de as exprimir na sua poesia.”
Foi, contudo, no ano de mais intensa correspondência entre Bly e Tranströmer – 1970 – que este registou a sua grande progressão como poeta. “Estou às voltas com um poema muito comprido (sobre o Báltico – de todos os pontos de vista)”, escreveu ele a Bly em Agosto desse ano. “Tudo começou quando encontrei os almanaques do meu avô dos anos de 1880”, acrescentaria em Maio seguinte, “nos quais ele anotou os navios que pilotava… Descobri que muita da minha vida tinha uma ligação ao Báltico e, por isso, comecei a fazer um vago esboço de muitas coisas.”
Tranströmer estava a ser modesto. The Baltics está longe de ser vago, antes se desenvolve como uma peça musical, contando primeiro a história do avô e depois a da avó. Sucedem-se as vagas de imagens através das estrofes, dando uma dimensão cosmológica às preocupações dos marinheiros com os elementos da natureza.
Tomas e Monica discutem por um instante se fora Bly a encorajá-lo a escrever poemas em prosa ou se os teria explorado por si próprio. “Mas Bly não gostava de The Baltics”, acrescenta Monica. “Não, ele não gostava lá muito. Eu diria que tu eras bastante independente do Robert.”
Foi em The Baltics que o poeta se envolveu de forma mais directa. Ele é quem nos orienta por entre esta história familiar, ele é o espectador , ele é quem define o que significa ser de um lugar mas também estar certo de que se desaparecerá um dia: "Here are figures in a landscape./ A photo from 1865. The steamer is at the pier in the sound./ Five figures. A lady in a bright crinoline like a bell, like a flower./ The men are like extras in a rustic play./ They are beautiful, irresolute, in the process of being rubbed out./ They step ashore for a little while. They’re being rubbed out."
Torbjorn Schmidt é um professor de Literatura que organizou a edição sueca de Air Mail. “Eu diria que o enigma de Tranströmer é espiritual”, escreve-nos num e-mail. “O próprio Tranströmer sempre recusou a designação de ‘místico’. Por outro lado, ele sublinhava que a sua experiência de vida era enigmática num sentido profundo: há dimensões da vida que não podem ser apreendidas por uma mente puramente racional.”
Em parte alguma da obra de Tranströmer esta dualidade se torna pessoal como em The Baltics, que constitui uma espécie de genealogia espiritual e sensual convertida em música. Quando o poema estava quase completo, as cartas de Tranströmer para Bly tornaram-se cada vez mais líricas. Chegaram a soar quase como Blake. “Por vezes, sinto que tenho uma obrigação para com uma certa Consciência oculta. Por que será que tenho de viver nesta constante confusão, de ver e ouvir todas estas coisas, o que quer isso dizer?” (19 de Janeiro de 1973).
À pergunta se esta postura espiritual se assemelha ao budismo, Monica recorda que essa questão já havia sido posta a Tomas e ele acena com a cabeça, concordando com a resposta: “Ele disse que nunca tinha estudado o budismo.” Então o interlocutor observou que, se assim era, então ele era uma espécie de budista intuitivo, embora não profissional.
Guardar as trevas
Este sentido sagrado de dever trouxe humildade à obra de Tranströmer. Ele não encontrará as respostas e não precisará de se debater demasiado com as trevas. “Há tantas coisas excelentes em Tomas”, diz o poeta norueguês Jan Erik Vold, que há quatro décadas conhece e traduz os poemas de Tranströmer, “mas uma delas é que ele sabia onde guardar as trevas”. A capacidade de meditar sobre o infinito enquanto mantém a distância face às trevas faz de Tranströmer um poeta altamente popular em todo o mundo.
Desde os anos 60 e com maior intensidade na década de 70, a sua obra começou a surgir em traduções, sobretudo em língua inglesa. Nessa década, esteve com Allen Ginsberg na Cidade do México e com W.S. Merwin na Suécia. Foi também neste atribulado período de viagens e primeiras edições que o poeta sírio Adonis tomou conhecimento da obra de Tranströmer. Ambos tinham ganho um prémio da Universidade de Pittsburgh, nos EUA. Anos depois, Adonis ajudaria a traduzir e a publicar em árabe as colectâneas de Tranströmer, levando Tomas e Monica até ao Líbano e à Síria para uma série de sessões de leitura – que, dezenas de anos depois, Adonis descreveria num e-mail como “um poema de suprema essência humana e uma extensão da sua poesia”.
Adonis lera a poesia de Tranströmer de forma mais cuidadosa do que a maioria e também o considera um místico, só que não em sentido convencional. “Quando falo de misticismo na poesia de Tranströmer”, escreveu num e-mail a partir de Paris, “estou a falar de uma visão que não separa a existência em duas categorias – ‘física’ e ‘espiritual’ –, antes vê a existência como una e indivisível.”
É difícil saber se esta abordagem da existência tornou Tranströmer mais capaz de enfrentar a vida após o seu AVC. Desde então, publicou apenas dois livros, uma curta autobiografia, As Minhas Memórias Observam-me (Sextante, 2012), em que a maioria dos poemas foram escritos antes do AVC, e um pequeno livro de haiku [poesia japonesa], The Sad Gondola (1996).
Monica diz que, após ter o AVC, Tranströmer começou a escrever mais haikus: “É uma solução técnica e prática. Que ele, na altura, achou natural.” Tomas concorda e Monica prossegue: “Acho que estas métricas estritas podem, na realidade, dar uma sensação de liberdade. Trabalhar dentro destas restrições pode funcionar como uma espécie de jogo.”
Quando surge a questão do que está contido nos blocos de notas de Tranströmer, e se neles poderá haver mesmo um jogo final à espera de ser jogado, uma sombra desce sobre a expressão de Monica e fecha-se o círculo na sala. “Acho que pode passar adiante esta pergunta, Tomas”, retorque Monica. Existe um certo número de cartas e “há um pequeno volume programado”, diz Monica, “sabemos isso”.
Foi então que surgiu uma pausa na entrevista e Monica nos encaminhou educadamente até à pequena cozinha, onde nos esperavam travessas de galinha com arroz, pão negro e canecas de cerveja. Ao cabo de uma hora, finda a refeição e após uma visita a alguns vizinhos, voltámos à casa azul para uma última despedida. Tirámos fotos, reservámos lugares no ferryboat.
Dei com Tranströmer sentado no quintal a apanhar os últimos raios de sol, de novo com o seu rádio. A estação sueca tocava Song to the moon da ópera Rusalka, de Dvorák, uma das mais belas de sempre.
E foi assim que o universo nos brindou com uma pista inesperada. Tranströmer era um grande poeta porque encontrara uma forma de meditar sobre o infinito e disso não se desviava.
Uma das razões por que ele conseguia fazê-lo com tanta beleza era que, como qualquer artista que canta melhor em dueto, ele não o fazia – e não o faz – a solo.
John Freeman é, mais recentemente, editor de Tales of Two Cities: The Best of Times and Worst of Times in Today’s New York.