Portugal e Brasil: orgulho e preconceito entre duas literaturas

O convívio entre as literaturas portuguesa e brasileira não é pacífico. Há fascínio e desconhecimento, folclore e preconceito, arrogância e admiração. Nos últimos anos, portugueses passam e fixam-se em território brasileiro e transportam essa paisagem para a sua escrita. Acontece com brasileiros, mas menos. Como se dá o contágio? Quem escreve e quem lê traça um retrato onde a língua é elo e barreira, mas sempre vista como impermeável acordos diplomáticos. Viva, dinâmica, com muitos sotaques. Eles estão neste texto que fala com o português dos dois lados do Atlântico.

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Matilde Campilho enric vives-rubio

Todas as manhãs apanhava transportes públicos para a periferia e regressava à noite. “Seguia para os bairros onde estavam os brasileiros que foram para Portugal, para empregos pouco qualificados.” Ruffato fora um dos seleccionados para participar no projecto Amores Expressos que financiou viagens de escritores a várias cidades do mundo para escreverem romances sobre o amor, mas o seu projecto era mais alargado: entender melhor o curso da emigração brasileira que tinha três grandes destinos: EUA, Japão e Portugal. A sua personagem, Sérgio – natural de Cataguases, Minas Gerais, como o escritor – iria para Portugal por uma questão de língua e de geografia. Seria o protagonista de Estive em Lisboa e Lembrei de Você (Companhia das Letras) publicado no Brasil em 2009, e um ano depois em Portugal com o título Estive em Lisboa e Lembrei-me de Ti (Quetzal).

Além de sublinhar a fala mineira de Serginho, com todos os seus trejeitos regionais e cambiantes em relação à expressão do português de S. Paulo ou do Rio de Janeiro, o autor, com aquele título, punha a nu involuntariamente mais uma camada do complexo tecido da língua. Apenas por atravessar o Atlântico o português de Portugal “pedia-lhe” uma adaptação, não fosse haver uma barreira ao entendimento. “Falar a mesma língua não é partilhar a mesma cultura”, refere Luiz Ruffato sobre a relação entre as literaturas portuguesa e brasileira, que classifica de “esquisita e preconceituosa”, feita em doses semelhantes de “desprezo e arrogância”. “Eles não crescem apaixonados por nós como nós crescemos apaixonados por eles”, refere por sua vez Valter Hugo Mãe, um dos escritores portugueses que mais sucesso tem actualmente no Brasil.

“Não me parece nada que os brasileiros não nos dêem atenção”, salienta agora Gonçalo M. Tavares, sublinhando o modo como os seus livros têm sido recebidos desde que venceu o Prémio PT, em 2007, com Jerusalém. Mirna Queiroz, directora da revista Pessoa (projecto que tenta o cruzamento das duas literaturas), refere que na literatura brasileira, pela sua diversidade, “não sobra muito espaço para outras paisagens”. E acrescenta: “Parece-me que poucos autores brasileiros são publicados em Portugal. E Portugal exporta para o Brasil basicamente os mesmos autores que despertam interesse no resto do mundo. Ou seja, penso que não lemos autores portugueses só porque são portugueses”, ou seja, “a língua comum não funciona como barreira e tampouco como mobilizador, o que já não é mau”.

A opinião inicial de Luiz Ruffato não é consensual, mas tem apoiantes entre quem conhece e escreve sobre as duas realidades, partilha geografias, usa a mesma língua nas suas diversas expressões, se deixa contagiar e transporta esse contágio para a obra. Até que ponto se conhecem os escritores portugueses e brasileiros contemporâneos? Lêem-se? Entendem-se? Interessam-se uns pelos outros? O que pode a língua quando quase tudo parece separar duas realidades que se cruzaram desde que um português pisou um território e o colonizou?

“O Brasil hoje é um país feito por filhos de imigrantes, sobretudo italianos, japoneses, alemães. Há uma língua comum, mas culturalmente estão muito mais ligados a outras realidades”, continua ainda Luiz Ruffato, acentuando o “profundo desprezo” dos brasileiros em geral e dos escritores brasileiros em particular por Portugal. “Isso é trágico”, lamenta, mas é histórico. “É o trauma do colonizado em relação ao colonizador. E os portugueses olham-nos com uma certa arrogância e desconfiança: o brasileiro é malandro, todos os brasileiros são putas. É o cliché a funcionar. Há pouca troca, apesar dos elogios de circunstância. Os brasileiros ainda sabem alguma coisa de literatura portuguesa porque ela é ensinada na universidade. Em Portugal isso não acontece.”

No Brasil, o livro de Ruffato chegou à segunda edição em dois meses e foi adaptado ao cinema em 2013 pelo português José Barahona, mantendo o título original. Em Portugal não esgotou a primeira edição. Ruffato regressaria em 2012, com outro livro. Dessa vez pela Tinta da China, De Mim Já nem se Lembra. Também dessa vez bem recebido pela crítica portuguesa. Voltou a vender pouco. “A resistência e o preconceito existem de ambos os lados”, refere agora Francisco José Viegas, escritor, o primeiro editor de Ruffato e editor de outros brasileiros. “É normal”, continua. “Curiosamente, os autores brasileiros têm muito boa imprensa em Portugal e aí o jornalismo português é infinitamente melhor do que o brasileiro na divulgação das coisas do outro lado. Mas no Brasil, quando um autor tem boa imprensa, tem mesmo boa imprensa e colunistas atentos nos grandes jornais. Mas é verdade que os autores brasileiros em Portugal, em geral, não são best-sellers. Pelo contrário.” Bárbara Bulhosa, editora da Tinta da China, que levou a sua chancela até ao Brasil com autores portugueses, concorda: “vendem muito pouco em Portugal”. E tentar explicar isso parece todo um tratado onde se junta história, diplomacia, ensino, economia, cultura, vontade.

O Brasil dos portugueses
Há factos. São mais os escritores portugueses actuais a ir para o Brasil e transportar essa experiência para a literatura que fazem do que o contrário. A passagem de escritores brasileiros por Portugal poucas vezes se tem reflectido em livros. É um ciclo. Talvez mude com o que se está a passar agora no Brasil”, refere a brasileira Tatiana Salem Levy. Autores como Francisco José Viegas, José Eduardo Agualusa, Inês Pedrosa, Alexandra Lucas Coelho [ver entrevista], Paulo José Miranda, Hugo Gonçalves, Matilde Campilho ou Valter Hugo Mãe e Gonçalo M. Tavares em crónicas, têm o Brasil – ou os muitos ‘Brasis’, como preferem chamar-lhe – como paisagem regular nas suas obras. E cada um apresenta razões muito pessoais para isso.

“O Brasil não entrou só na minha escrita. Entrou na minha vida. Durante três anos morei na cidade do Rio de Janeiro e essa temporada veio numa época muito fulcral - era o fim dos vinte anos e o princípio dos trinta. A cidade estava a mudar muito, e eu também. Ao mesmo tempo eu era estrangeira, então estava permeável a tudo, receptiva a muitas coisas. À paisagem, à mentalidade, aos valores, e até à língua. Tudo era diferente, e isso obviamente acabou por contaminar e até formar aquilo que era o meu eixo fundamental: a escrita”, conta Matilde Campilho, 32 anos, autora de Jóquei (Tinta da China), livro de poesia com vendas muito pouco comuns quando se fala deste género literário, e, no caso, de uma estreante.

O que pôs no livro é o resultado dessa vivência. Não é que a tal “paisagem” se tenha imposto, “é mais manso do que isso”, refere. “É pela via do espanto. No Rio de Janeiro tudo nos prepara para que encontremos muitas semelhanças com o nosso país. A pedra da calçada é a mesma, os letreiros na rua são de entendimento imediato, as conversas do dia-a-dia também. Mas por baixo de tudo isso há um país que está a sete mil quilómetros, que é sul-americano, que no Rio de Janeiro tem a presença constante da humidade e da mata, que é feito de vários sangues misturados. Que tem toda uma outra história. A língua é a mesma, mas vem de pontos de partida diferentes e vai dar constantemente a lugares diferentes. Isso espanta-nos diariamente, e ensina-nos muito também.”

José Eduardo Agualusa, angolano, português, brasileiro – ou atlântico como tantas vezes se identifica – tem uma longa relação com o Brasil. Está em muitos dos seus livros, nas conversas, nas viagens, nos amigos. O escritor de 54 anos, natural do Huambo, viveu em Olinda durante dois anos, na década de noventa, e depois no Rio. Falou com o Ípsilon na véspera de publicar a edição brasileira de A Rainha Ginga (Foz) – editado pela Quetzal em 2014 –, da mestiçagem de sons, costumes, vozes que existe na sua escrita como algo natural por quem se interessa por “todas as variantes da língua portuguesa que se falam no mundo”. “O meu português”, diz, “não é limitado por fronteiras políticas ou geográficas. O meu português não se restringe ao português de Angola, e muito menos às variantes do português de Portugal. O meu português é o português global, em toda a sua riqueza e exuberância. O meu projecto literário passa pela utilização desse português global. O Brasil tem 200 milhões de falantes, e inúmeras variantes da nossa língua. O português do Brasil preserva palavras que já despareceram em Portugal, e cria outras novas todos os dias. Tem uma enorme vitalidade. Como o português de Angola. Ambos vêm enriquecendo o português de Portugal. Os jovens portugueses, por exemplo, estão a apropriar-se de muitos termos do português de Angola. Todo esse movimento me fascina e me interessa”.

Hugo Gonçalves, 39 anos, está no Brasil há quatro mas diz que chegou ao lá primeiro pela leitura de autores brasileiros. Rubem Fonseca, Marçal Aquino, Reinaldo Meireles, “pelas histórias, pelo uso da língua, mas também pelos universos que retratam”. Quando chegou ao Rio já levava o projecto de escrever um romance passado no Brasil. “A ideia tinha nascido no final de 2010, quando passei meses no Rio e escrevi o primeiro capítulo. Fazia parte do projecto escrever sobre o Rio, ou pelo menos que a história ali se passasse.” Escreveu Enquanto Lisboa Arde o Rio de Janeiro Pega Fogo (Casa das Letras, 2013), o seu terceiro romance, quando estava a viver a cidade, “a descobri-la, a ir além da exuberância que cega todos os recém-chegados.” Era difícil não se deixar contaminar. “Parte da minha experiência era a do protagonista do romance”, homem com ambições literárias que fugia da crise em Portugal, disposto a começar do nada. “Sim, no início é difícil não escrever sobre o Brasil. Mas não é assim em quase todos os lugares? Qualquer escritor ou jornalista que visita ou esteja a viver num lugar novo tem vontade de pensar e escrever sobre ele. Talvez, para os escritores do hemisfério norte, os trópicos tenham um apelo de antanho, ou sejam um tique de classe, um lugar inventado na nossa imaginação”, refere, sublinhando o tal espanto inicial.

Inês Pedrosa chegou pela primeira vez ao Brasil em 1998 e nunca mais deixou de lá voltar nem de escrever sobre aquele país-continente. “Há tanta matéria-prima. Deve ser por isso que interessa tanto enquanto tema literário. É mais carnal”, justifica. Em A Eternidade e o Desejo (D. Quixote, 2007) viaja pela Baía contemporânea com uma personagem que à procura do amor e descobre os lugares do Padre António Vieira, no século XVII. Em 2012, cria Rosa, protagonista de Dentro de Ti Ver o Mar (2012), desiludida com o amor, que viaja para o Brasil à procura da sua identidade. E no recentíssimo Desamparo (D. Quixote, 2015) há outra mulher, Jacinta, que chega ao Brasil aos três anos e volta a Portugal na velhice. Serve a Pedrosa para um romance sobre emigração e sobrevivência. “É sempre um perigo. Passo a vida a ler coisas sobre as relações entre Portugal e o Brasil, mas é difícil a uma pessoa de um país escrever sobre outro. Corre-se o risco do exotismo e do pitoresco. Penso que os brasileiros também têm esse pudor em relação a nós. Mas interessa-me brincar com isso e com a sintaxe e como tenho uma relação próxima atrevo-me. Quando meto falas de personagens brasileiras tenho brasileiros que me ajudam a corrigir, quando falo de determinada região confiro tudo.”

Luiz Ruffato alertara para isso mesmo, o risco do equívoco. “É sempre complicado escrever sobre uma realidade em que, por mais que mergulhe nela, acaba por ter uma visão quase unilateral. É bom quando consegue usar isso a seu favor como escritor. Quando faz uma narrativa em que deixa claro que aquele é um olhar estrangeiro. Às vezes o olhar estrangeiro percebe coisas que quem está mergulhado na realidade não percebe. Agora quando alguém se arvora a pensar que está a conhecer melhor aquela realidade do que quem mora lá, aí acho que comete equívocos”. Repara e, sem nomear, refere que dos autores portugueses que escrevem sobre o Brasil, há alguns com essa visão, conscientes do quanto complexa é a realidade do Brasil, que tem de se “olhar com um olhar estrangeiro”, mas “há outros que acham que conhecem melhor o Brasil que os brasileiros”.

Quando se fala do Brasil ao português Paulo José Miranda ele começa pela pergunta difícil: “Que Brasil?” Diz que andou por muitos “Brasis” em dez anos a viver naquele território de oito milhões e meio de quilómetros quadrados (17 vezes maior do que Portugal) o quinto maior do mundo, e uma população que já ultrapassa os 200 milhões de habitantes. “Vivi no Rio, junto à praia, vivi em São Paulo, junto da Av. Paulista; vivi em Florianópolis, na ilha, junto à praia e agora vivo no mato, a 50 quilómetros de Curitiba. A vida em cada um dos lugares acaba por determinar a relação com a escrita.” A escrita ficou marcada porque a vida também mudou. “Toda a escrita é influenciada pelo lugar onde vivemos. Se não tivesse vivido na Turquia não teria tido o impulso de escrever A Máquina do Mundo”, livro recentemente editado pela Abysmo, com ilustrações de André Carrilho, onde começa a citar Elias Cannetti: “Todo o homem, se afirma num lugar determinado e com os seus gestos expressa eficazmente o direito de manter longe de si tudo o que se aproxima dele.” (in Massa e Poder). Sublinha que na sua relação com o Brasil e a escrita a grande alteração aconteceu no momento em que a ideia de felicidade lhe apareceu como uma obsessão. “Se não tenho vivido no Rio de Janeiro, nunca teria escrito A Doença da Felicidade [também de 2005, Abysmo]. Foi somente aí nessa cidade que a felicidade, ou o querer ser feliz, se me apareceu claramente como uma doença”. A paisagem voltou a mudar e necessariamente a escrita. “A minha poesia hoje é marcada pelo meu quotidiano no mato.”

A relação de Valter Hugo Mãe com o Brasil é emocional. Desde que esteve em Paraty, em 2011, foi adoptado pelos brasileiros como nenhum outro autor seu contemporâneo. “O meu caso no Brasil é um pouco da dimensão do fenómeno. Teve uma forma espontânea, não obedeceu a um esquema. Foi uma surpresa para mim e para a editora [Cosac Naify]. Foi rápido, tudo se precipitou”, comenta. Antes havia a ideia de escrever um livro que tivesse contacto com o Brasil, mas o tal fenómeno de que se sentiu protagonista fê-lo abandonar o projecto. “Não escrevi, não estou a escrever e não ache que vá escrever tão cedo. Não quero que a ideia desse romance seja uma coisa prostituída a qualquer tipo de pressão. Não quero transformar o meu trabalho literário numa gratidão. Escrevi algumas crónicas, porque vou muito ao Brasil e há histórias impressionantes”, justifica.

Em 2012, venceu o Prémio PT de Literatura com A Máquina de Fazer Espanhóis, cinco anos depois de Gonçalo M. Tavares também ter conquistado um dos prémios mais valiosos para as literaturas de língua portuguesa. Desde então, o autor de Jerusalém fez muitas viagens ao Brasil, publicou lá todos os seus livros, acha que estão bem expostos, e assina uma crónica no Estado de S. Paulo. Um dos seus livros mais recentes, a peça de teatro Os Velhos Também Querem Viver, teve destaque nos principais jornais brasileiros. “É um pequeno livro a que deram a atenção que costumam dar aos grandes”, comenta. No entanto, não sente que haja uma ligação directa entre aquele território e o que vai fazendo. “O Brasil é importante para mim culturalmente não apenas por causa dos livros. No cinema, no teatro, nas artes plásticas, por exemplo, os brasileiros são muito, muito fortes.”

Francisco José Viegas foi dos autores contemporâneos um dos primeiros a situar a acção de um romance no Brasil. Mais, arriscou replicar as falas e a ortografia locais no policial Longe de Manaus, para onde vai o seu detective de criação, Jaime Ramos. Foi em 2005, depois de um período a viver no Brasil. Passaram dez anos. “O trabalho com o Longe de Manaus foi uma dupla experiência: não escrever do ponto de vista português, mas do ponto de vista brasileiro – e com outra ortografia. E viver quase dois anos no Brasil exigiu também uma alteração de língua, de hemisfério, de cultura. Foi decisivo para a minha vida, porque desmistificou o Brasil. A experiência de falar e escrever do ponto de vista brasileiro acabou por mudar muito a minha escrita”.

“Quando Pedro Álvares Cabral, antes de sair do Brasil rumo à Índia, anunciou que ia deixar dois marinheiros portugueses, outros dois ou três fugiram dos barcos e quiseram também ficar. Foram os primeiros emigrantes portugueses no Brasil, que foi sempre uma espécie de paraíso perdido para nós. O que podíamos ter sido, o que podíamos ter feito, como poderíamos ter sido de outra maneira. Nunca nos recompusemos dessa perda. Não era apenas o bom selvagem -  era o bom português, que se podia ter reinventado. Infelizmente, não foi possível.” Alguns pensadores têm-se dedicado ao tema. “O Eduardo Lourenço viu bem o problema do Vieira: o quinto império era o Brasil, não era uma idade futura.” Valter Hugo Mãe refere isso mesmo, que o Brasil é o futuro de um país que vive fechado no seu passado: Portugal. Um Brasil mais cerebral e um Portugal melancólico, emotivo. São os contrários num processo simultâneo de atracção e virar de costas.

“Os brasileiros lêem-nos mais; nós escrevemos mais sobre eles”, continua Hugo Mãe. ”Viegas percebe a atracção dos autores portugueses contemporâneos, mas acha que “há muita mistificação à mistura, muito folclore, desejo de fazer do Brasil um lugar de férias permanentes, onde tudo é bom, feliz, fácil, luminoso. Não há actor de novela, músico, poeta, vendedor de ilusões que não regresse do Brasil com a impressão de que tocou na margem certa da terra prometida. Isso contribuiu ainda mais para mistificar e mitificar o Brasil no imaginário dos portugueses, e não para conhecer o Brasil real, que é outro país, cheio de defeitos e de virtudes, de amarguras e de dificuldades.”

A língua do meio do caminho
Tatiana Salem Levy, 36 anos, apontada como um dos jovens nomes mais estimulantes pela revista Granta, é das poucas escritoras do Brasil actual a viajar até Portugal e a transportá-lo na sua obra. Tem razões pessoais para o fazer. Formada em Letras, teve entre os seus melhores professores os de literatura portuguesa. “Lia Camões, Pessoa, as cantigas de amigo, Sophia de Mello Breyner, Herberto Helder, Raul Brandão, Alexandre Herculano, Eça, Augusto Abelaira, Lídia Jorge, Lobo Antunes e Saramago”, conta. A primeira bolsa de estudos foi em literatura portuguesa, com um projecto sobre a Maria Gabriela Llansol. Tinha entre 17 e 20 anos. “As leituras que fazemos nessa época são fundamentais”, continua. Só depois chegaria a paisagem, quando começou a frequentar o país e Lisboa, a cidade onde nasceu e de onde saiu bebé. “Mergulhar na literatura portuguesa era uma forma de descobrir o país onde havia nascido. Quanto mais descobria, mais me apaixonava. Todos os meus romances têm um pouco de Portugal. A Chave de Casa, 2007; Dois Rios, 2012, e Paraíso, 2014 (ainda por editar em Portugal).

A língua, que muitos apontam como entrave à leitura, nunca foi para ela barreira de escrita. “Às vezes, o sotaque pode ser uma barreira. Quando vou à Madeira e aos Açores, tenho dificuldade em entender o que dizem. Mas acho muito libertador poder escolher expressões, descobrir diferentes palavras para o mesmo objecto. Tomar um gelado de diospiro e só depois de experimentá-lo entender que estou tomando um sorvete de caqui...” O ouvido treina-se como a mão com a escrita na síntese que faz de sons, vocábulos, gerúndios. “Morando num país, a gente acaba por pegar expressões locais e mesmo uma construção sintáctica diferente”. Que português fala e escreve? “Sinto que entrei num limbo. No Brasil as pessoas acham que estou falando que nem os portugueses, e em Portugal ninguém duvida que o meu português seja o do Brasil. Gosto de falar do meio do caminho; dá a sensação de que a língua não tem fronteiras, de que é maleável, como se eu tivesse um arsenal maior de onde posso escolher o que usar. A sensação de pertencer a dois lugares é um pouco como a sensação de não pertencer a nenhum. Nunca estou inteiramente lá nem cá. É inebriante. Como se eu flutuasse na própria língua.” Dos portugueses contemporâneos, tem lido Gonçalo M. Tavares, Dulce Maria Cardoso, Alexandra Lucas Coelho, Afonso Cruz. Todos estão publicados no Brasil.

Carlito Azevedo, poeta, crítico, ensaísta, está aqui na condição de leitor, observador destas realidades de contágio, contaminação e também de resistência. Ironiza. “Isso de contágios e paisagens lembrou-me algo que aconteceu com o Guimarães Rosa. No livro Grande Sertão: Veredas há uma cena de um pôr do sol no sertão que é muito bonita e foi tomada por alguns críticos como uma perfeita descrição do sertão em estilo regionalista. Só que o Rosa comentava que ele tinha retirado aquele trecho de um diário dele onde anotara um pôr do sol que viu... na Holanda!” Ou seja, o contágio dá-se de forma mais superficial “no nome de bairros, ruas, morros”. De modo mais profundo, salienta a forma bem sucedida com que acontece em Jóquei, de Matilde Campilho, “não porque cite esse ou aquele lugar, mas porque os poemas têm o ritmo e o andamento das longas caminhadas que ela fazia no Rio, sem obrigatoriamente estar conversando ou pensando sobre o Rio, e sim sobre a Comuna de Paris, um novo aplicativo, a biografia do astronauta, etc... Qualquer que seja o tema que ela esteja tratando, sente-se que fala daquilo a partir do Jardim Botânico do Rio, da avenida Rio Branco, da orla da praia... É uma andadura rítmica, o verso, o poema de quem caminha num lugar que é pura célula urbana mas que, dobrada uma esquina, te coloca de frente para a pedra de uma montanha, ou para o oceano, frente ao qual ônibus passam a toda velocidade...”

Matilde Campilho fala aqui sem saber das palavras de Carlito Azevedo, Agora é sobre a relação com a língua, o modo como é permeável a nuances. “A língua não me trouxe questões que eu achasse que precisava de resolver. Pelo contrário. Já que a língua é ao mesmo tempo a mesma e não é, isso abre muitíssimo o tamanho do campo das possibilidades na escrita. É como se tudo se desdobrasse. Se pensarmos que a mesma língua pode ter cadências diferentes e trejeitos diferentes, que pode ser fruto de paisagens diferentes, então isso pode misturar-se na página escrita e formar um ‘desenho’ novo, multiplicado. Pelo menos na poesia existe essa possibilidade, a de uma língua que destrói fronteiras em vez de as levantar.”

Sem excepção, escritores, teóricos, editores – como Bárbara Bulhosa, na Tinta da China, com os brasileiros que publica em Portugal e os portugueses que leva para o Brasil, ou Clara Capitão que está à frente da recém-chegada a Portugal Companhia das Letras que entrou com O Irmão Alemão, de Chico Buarque, escritor que diz ser excepção de sucesso literário em Portugal pela via da música, e onde não fez uma única adaptação linguística –, referem a diversidade linguística do português falado e escrito nas diversas geografias, como uma riqueza a explorar.

Então porquê o entrave, insiste-se? “Mais jornalismo de divulgação de ambos os lados, retirada de taxas alfandegárias que tornam os livros portugueses inacessíveis no Brasil e uma política de promoção que não seja episódica, refere Inês Pedrosa e também Abel Barros Baptista, ensaísta e professor de Literatura Brasileira na Universidade Nova de Lisboa, autor da colecção Curso Breve de Literatura Brasileira (Cotovia, 2003) que publicou em Portugal livros considerados exemplares do que se escreve no Brasil. As excepções são Machado de Assis e Clarice Lispector. Os portugueses lêem muito pouco os brasileiros.

Há preconceito e uma certa arrogância da nossa parte, mas também dos brasileiros em relação a nós. As duas línguas estão estruturadas autonomamente e o grau de abertura do Brasil em relação ao estrangeiro, quando existe, é para outros territórios. Sobretudo os Estados Unidos. Olham muitas vezes a nossa escrita como pedante e nós encaramos o à-vontade deles como ligeireza.” Francisco José Viegas contextualiza, refere um caminho comum cheio de preconceitos históricos. “O salazarismo desconfiava do Brasil, de onde vinha toda a imoralidade, um certo sentido da barafunda, e havia - claro - o ressentimento contra a antiga colónia. Os brasileiros desconfiavam de um país de pobretanas e de provincianos que nunca tinham compreendido a “grandeza brasileira”.

De modo que, durante anos, desconhecemo-nos com orgulho e arrogância. Aquele Brasil que as telenovelas históricas da Globo nos trouxe significou para nós uma redescoberta do Brasil, sim, mas os intelectuais mantiveram sempre um preconceito europeu em relação ao que se fazia lá. Ignoravam que a universidade brasileira tinha debates profundos e alargados, que a literatura já não era apenas o cânone nordestino, que havia uma cultura urbana (sobretudo em São Paulo ou Porto Alegre) muito viva, que a literatura brasileira tinha, de facto, reinventado a língua portuguesa (no cânone clássico, com Érico Verissimo, Clarice, Rubem Fonseca; e que uma nova geração prolongava, com Assis Brasil, Patrícia Melo, Marçal Aquino, Tabajara Ruas - e hoje com Eucanãa, Galera, Ruffato, Mutarelli, Elvira Vigna, Paula Maia.” Os nomes continuam. No Brasil conhece-se Pessoa como se Pessoa fosse brasileiro, em Portugal Carlos Drummond de Andrade ou João Cabral de Melo Neto estão longe de serem muito conhecidos, menos ainda lidos, salienta Hugo Mãe.

Nas universidades brasileiras ensinam-se portugueses contemporâneos. Na portuguesa, Abel Barros Baptista diz que não se lembra de um português ter pedido para fazer um doutoramento em literatura brasileira. Onde estão as falhas? “O Acordo Ortográfico não vem resolver nada”, dizem, como num coro, todos os nomes ouvidos para este texto “O Acordo Ortográfico está implantado no Brasil. Nos jornais e na edição, é o modelo que funciona. O Brasil nunca ligou muito a acordos desses. Mas não nos podemos esquecer de que o português de Portugal e o do Brasil são e hão-de continuar a ser expressões diferentes da mesma língua. Julgar que a ortografia iria unificar as duas formas do português, só mesmo por piada. Vamos continuar a ter duas versões do português, mesmo se a ortografia se aproximou mais”, resume Francisco José Viegas. Mirna Queiroz fala da necessidade de uma “relação descomplexada sem expectativas vazias”. E o coro, em síntese, diz isto: enquanto passar pela cabeça de alguém traduzir um livro de português do Brasil para português de Portugal e vice-versa, as contas estarão voltadas e todos os contágios serão poucos.

Veja o programa de Minha Língua, Minha Pátria, evento que vai reunir escritores portugueses e brasileiros em São Paulo
 

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Todas as manhãs apanhava transportes públicos para a periferia e regressava à noite. “Seguia para os bairros onde estavam os brasileiros que foram para Portugal, para empregos pouco qualificados.” Ruffato fora um dos seleccionados para participar no projecto Amores Expressos que financiou viagens de escritores a várias cidades do mundo para escreverem romances sobre o amor, mas o seu projecto era mais alargado: entender melhor o curso da emigração brasileira que tinha três grandes destinos: EUA, Japão e Portugal. A sua personagem, Sérgio – natural de Cataguases, Minas Gerais, como o escritor – iria para Portugal por uma questão de língua e de geografia. Seria o protagonista de Estive em Lisboa e Lembrei de Você (Companhia das Letras) publicado no Brasil em 2009, e um ano depois em Portugal com o título Estive em Lisboa e Lembrei-me de Ti (Quetzal).

Além de sublinhar a fala mineira de Serginho, com todos os seus trejeitos regionais e cambiantes em relação à expressão do português de S. Paulo ou do Rio de Janeiro, o autor, com aquele título, punha a nu involuntariamente mais uma camada do complexo tecido da língua. Apenas por atravessar o Atlântico o português de Portugal “pedia-lhe” uma adaptação, não fosse haver uma barreira ao entendimento. “Falar a mesma língua não é partilhar a mesma cultura”, refere Luiz Ruffato sobre a relação entre as literaturas portuguesa e brasileira, que classifica de “esquisita e preconceituosa”, feita em doses semelhantes de “desprezo e arrogância”. “Eles não crescem apaixonados por nós como nós crescemos apaixonados por eles”, refere por sua vez Valter Hugo Mãe, um dos escritores portugueses que mais sucesso tem actualmente no Brasil.

“Não me parece nada que os brasileiros não nos dêem atenção”, salienta agora Gonçalo M. Tavares, sublinhando o modo como os seus livros têm sido recebidos desde que venceu o Prémio PT, em 2007, com Jerusalém. Mirna Queiroz, directora da revista Pessoa (projecto que tenta o cruzamento das duas literaturas), refere que na literatura brasileira, pela sua diversidade, “não sobra muito espaço para outras paisagens”. E acrescenta: “Parece-me que poucos autores brasileiros são publicados em Portugal. E Portugal exporta para o Brasil basicamente os mesmos autores que despertam interesse no resto do mundo. Ou seja, penso que não lemos autores portugueses só porque são portugueses”, ou seja, “a língua comum não funciona como barreira e tampouco como mobilizador, o que já não é mau”.

A opinião inicial de Luiz Ruffato não é consensual, mas tem apoiantes entre quem conhece e escreve sobre as duas realidades, partilha geografias, usa a mesma língua nas suas diversas expressões, se deixa contagiar e transporta esse contágio para a obra. Até que ponto se conhecem os escritores portugueses e brasileiros contemporâneos? Lêem-se? Entendem-se? Interessam-se uns pelos outros? O que pode a língua quando quase tudo parece separar duas realidades que se cruzaram desde que um português pisou um território e o colonizou?

“O Brasil hoje é um país feito por filhos de imigrantes, sobretudo italianos, japoneses, alemães. Há uma língua comum, mas culturalmente estão muito mais ligados a outras realidades”, continua ainda Luiz Ruffato, acentuando o “profundo desprezo” dos brasileiros em geral e dos escritores brasileiros em particular por Portugal. “Isso é trágico”, lamenta, mas é histórico. “É o trauma do colonizado em relação ao colonizador. E os portugueses olham-nos com uma certa arrogância e desconfiança: o brasileiro é malandro, todos os brasileiros são putas. É o cliché a funcionar. Há pouca troca, apesar dos elogios de circunstância. Os brasileiros ainda sabem alguma coisa de literatura portuguesa porque ela é ensinada na universidade. Em Portugal isso não acontece.”

No Brasil, o livro de Ruffato chegou à segunda edição em dois meses e foi adaptado ao cinema em 2013 pelo português José Barahona, mantendo o título original. Em Portugal não esgotou a primeira edição. Ruffato regressaria em 2012, com outro livro. Dessa vez pela Tinta da China, De Mim Já nem se Lembra. Também dessa vez bem recebido pela crítica portuguesa. Voltou a vender pouco. “A resistência e o preconceito existem de ambos os lados”, refere agora Francisco José Viegas, escritor, o primeiro editor de Ruffato e editor de outros brasileiros. “É normal”, continua. “Curiosamente, os autores brasileiros têm muito boa imprensa em Portugal e aí o jornalismo português é infinitamente melhor do que o brasileiro na divulgação das coisas do outro lado. Mas no Brasil, quando um autor tem boa imprensa, tem mesmo boa imprensa e colunistas atentos nos grandes jornais. Mas é verdade que os autores brasileiros em Portugal, em geral, não são best-sellers. Pelo contrário.” Bárbara Bulhosa, editora da Tinta da China, que levou a sua chancela até ao Brasil com autores portugueses, concorda: “vendem muito pouco em Portugal”. E tentar explicar isso parece todo um tratado onde se junta história, diplomacia, ensino, economia, cultura, vontade.

O Brasil dos portugueses
Há factos. São mais os escritores portugueses actuais a ir para o Brasil e transportar essa experiência para a literatura que fazem do que o contrário. A passagem de escritores brasileiros por Portugal poucas vezes se tem reflectido em livros. É um ciclo. Talvez mude com o que se está a passar agora no Brasil”, refere a brasileira Tatiana Salem Levy. Autores como Francisco José Viegas, José Eduardo Agualusa, Inês Pedrosa, Alexandra Lucas Coelho [ver entrevista], Paulo José Miranda, Hugo Gonçalves, Matilde Campilho ou Valter Hugo Mãe e Gonçalo M. Tavares em crónicas, têm o Brasil – ou os muitos ‘Brasis’, como preferem chamar-lhe – como paisagem regular nas suas obras. E cada um apresenta razões muito pessoais para isso.

“O Brasil não entrou só na minha escrita. Entrou na minha vida. Durante três anos morei na cidade do Rio de Janeiro e essa temporada veio numa época muito fulcral - era o fim dos vinte anos e o princípio dos trinta. A cidade estava a mudar muito, e eu também. Ao mesmo tempo eu era estrangeira, então estava permeável a tudo, receptiva a muitas coisas. À paisagem, à mentalidade, aos valores, e até à língua. Tudo era diferente, e isso obviamente acabou por contaminar e até formar aquilo que era o meu eixo fundamental: a escrita”, conta Matilde Campilho, 32 anos, autora de Jóquei (Tinta da China), livro de poesia com vendas muito pouco comuns quando se fala deste género literário, e, no caso, de uma estreante.

O que pôs no livro é o resultado dessa vivência. Não é que a tal “paisagem” se tenha imposto, “é mais manso do que isso”, refere. “É pela via do espanto. No Rio de Janeiro tudo nos prepara para que encontremos muitas semelhanças com o nosso país. A pedra da calçada é a mesma, os letreiros na rua são de entendimento imediato, as conversas do dia-a-dia também. Mas por baixo de tudo isso há um país que está a sete mil quilómetros, que é sul-americano, que no Rio de Janeiro tem a presença constante da humidade e da mata, que é feito de vários sangues misturados. Que tem toda uma outra história. A língua é a mesma, mas vem de pontos de partida diferentes e vai dar constantemente a lugares diferentes. Isso espanta-nos diariamente, e ensina-nos muito também.”

José Eduardo Agualusa, angolano, português, brasileiro – ou atlântico como tantas vezes se identifica – tem uma longa relação com o Brasil. Está em muitos dos seus livros, nas conversas, nas viagens, nos amigos. O escritor de 54 anos, natural do Huambo, viveu em Olinda durante dois anos, na década de noventa, e depois no Rio. Falou com o Ípsilon na véspera de publicar a edição brasileira de A Rainha Ginga (Foz) – editado pela Quetzal em 2014 –, da mestiçagem de sons, costumes, vozes que existe na sua escrita como algo natural por quem se interessa por “todas as variantes da língua portuguesa que se falam no mundo”. “O meu português”, diz, “não é limitado por fronteiras políticas ou geográficas. O meu português não se restringe ao português de Angola, e muito menos às variantes do português de Portugal. O meu português é o português global, em toda a sua riqueza e exuberância. O meu projecto literário passa pela utilização desse português global. O Brasil tem 200 milhões de falantes, e inúmeras variantes da nossa língua. O português do Brasil preserva palavras que já despareceram em Portugal, e cria outras novas todos os dias. Tem uma enorme vitalidade. Como o português de Angola. Ambos vêm enriquecendo o português de Portugal. Os jovens portugueses, por exemplo, estão a apropriar-se de muitos termos do português de Angola. Todo esse movimento me fascina e me interessa”.

Hugo Gonçalves, 39 anos, está no Brasil há quatro mas diz que chegou ao lá primeiro pela leitura de autores brasileiros. Rubem Fonseca, Marçal Aquino, Reinaldo Meireles, “pelas histórias, pelo uso da língua, mas também pelos universos que retratam”. Quando chegou ao Rio já levava o projecto de escrever um romance passado no Brasil. “A ideia tinha nascido no final de 2010, quando passei meses no Rio e escrevi o primeiro capítulo. Fazia parte do projecto escrever sobre o Rio, ou pelo menos que a história ali se passasse.” Escreveu Enquanto Lisboa Arde o Rio de Janeiro Pega Fogo (Casa das Letras, 2013), o seu terceiro romance, quando estava a viver a cidade, “a descobri-la, a ir além da exuberância que cega todos os recém-chegados.” Era difícil não se deixar contaminar. “Parte da minha experiência era a do protagonista do romance”, homem com ambições literárias que fugia da crise em Portugal, disposto a começar do nada. “Sim, no início é difícil não escrever sobre o Brasil. Mas não é assim em quase todos os lugares? Qualquer escritor ou jornalista que visita ou esteja a viver num lugar novo tem vontade de pensar e escrever sobre ele. Talvez, para os escritores do hemisfério norte, os trópicos tenham um apelo de antanho, ou sejam um tique de classe, um lugar inventado na nossa imaginação”, refere, sublinhando o tal espanto inicial.

Inês Pedrosa chegou pela primeira vez ao Brasil em 1998 e nunca mais deixou de lá voltar nem de escrever sobre aquele país-continente. “Há tanta matéria-prima. Deve ser por isso que interessa tanto enquanto tema literário. É mais carnal”, justifica. Em A Eternidade e o Desejo (D. Quixote, 2007) viaja pela Baía contemporânea com uma personagem que à procura do amor e descobre os lugares do Padre António Vieira, no século XVII. Em 2012, cria Rosa, protagonista de Dentro de Ti Ver o Mar (2012), desiludida com o amor, que viaja para o Brasil à procura da sua identidade. E no recentíssimo Desamparo (D. Quixote, 2015) há outra mulher, Jacinta, que chega ao Brasil aos três anos e volta a Portugal na velhice. Serve a Pedrosa para um romance sobre emigração e sobrevivência. “É sempre um perigo. Passo a vida a ler coisas sobre as relações entre Portugal e o Brasil, mas é difícil a uma pessoa de um país escrever sobre outro. Corre-se o risco do exotismo e do pitoresco. Penso que os brasileiros também têm esse pudor em relação a nós. Mas interessa-me brincar com isso e com a sintaxe e como tenho uma relação próxima atrevo-me. Quando meto falas de personagens brasileiras tenho brasileiros que me ajudam a corrigir, quando falo de determinada região confiro tudo.”

Luiz Ruffato alertara para isso mesmo, o risco do equívoco. “É sempre complicado escrever sobre uma realidade em que, por mais que mergulhe nela, acaba por ter uma visão quase unilateral. É bom quando consegue usar isso a seu favor como escritor. Quando faz uma narrativa em que deixa claro que aquele é um olhar estrangeiro. Às vezes o olhar estrangeiro percebe coisas que quem está mergulhado na realidade não percebe. Agora quando alguém se arvora a pensar que está a conhecer melhor aquela realidade do que quem mora lá, aí acho que comete equívocos”. Repara e, sem nomear, refere que dos autores portugueses que escrevem sobre o Brasil, há alguns com essa visão, conscientes do quanto complexa é a realidade do Brasil, que tem de se “olhar com um olhar estrangeiro”, mas “há outros que acham que conhecem melhor o Brasil que os brasileiros”.

Quando se fala do Brasil ao português Paulo José Miranda ele começa pela pergunta difícil: “Que Brasil?” Diz que andou por muitos “Brasis” em dez anos a viver naquele território de oito milhões e meio de quilómetros quadrados (17 vezes maior do que Portugal) o quinto maior do mundo, e uma população que já ultrapassa os 200 milhões de habitantes. “Vivi no Rio, junto à praia, vivi em São Paulo, junto da Av. Paulista; vivi em Florianópolis, na ilha, junto à praia e agora vivo no mato, a 50 quilómetros de Curitiba. A vida em cada um dos lugares acaba por determinar a relação com a escrita.” A escrita ficou marcada porque a vida também mudou. “Toda a escrita é influenciada pelo lugar onde vivemos. Se não tivesse vivido na Turquia não teria tido o impulso de escrever A Máquina do Mundo”, livro recentemente editado pela Abysmo, com ilustrações de André Carrilho, onde começa a citar Elias Cannetti: “Todo o homem, se afirma num lugar determinado e com os seus gestos expressa eficazmente o direito de manter longe de si tudo o que se aproxima dele.” (in Massa e Poder). Sublinha que na sua relação com o Brasil e a escrita a grande alteração aconteceu no momento em que a ideia de felicidade lhe apareceu como uma obsessão. “Se não tenho vivido no Rio de Janeiro, nunca teria escrito A Doença da Felicidade [também de 2005, Abysmo]. Foi somente aí nessa cidade que a felicidade, ou o querer ser feliz, se me apareceu claramente como uma doença”. A paisagem voltou a mudar e necessariamente a escrita. “A minha poesia hoje é marcada pelo meu quotidiano no mato.”

A relação de Valter Hugo Mãe com o Brasil é emocional. Desde que esteve em Paraty, em 2011, foi adoptado pelos brasileiros como nenhum outro autor seu contemporâneo. “O meu caso no Brasil é um pouco da dimensão do fenómeno. Teve uma forma espontânea, não obedeceu a um esquema. Foi uma surpresa para mim e para a editora [Cosac Naify]. Foi rápido, tudo se precipitou”, comenta. Antes havia a ideia de escrever um livro que tivesse contacto com o Brasil, mas o tal fenómeno de que se sentiu protagonista fê-lo abandonar o projecto. “Não escrevi, não estou a escrever e não ache que vá escrever tão cedo. Não quero que a ideia desse romance seja uma coisa prostituída a qualquer tipo de pressão. Não quero transformar o meu trabalho literário numa gratidão. Escrevi algumas crónicas, porque vou muito ao Brasil e há histórias impressionantes”, justifica.

Em 2012, venceu o Prémio PT de Literatura com A Máquina de Fazer Espanhóis, cinco anos depois de Gonçalo M. Tavares também ter conquistado um dos prémios mais valiosos para as literaturas de língua portuguesa. Desde então, o autor de Jerusalém fez muitas viagens ao Brasil, publicou lá todos os seus livros, acha que estão bem expostos, e assina uma crónica no Estado de S. Paulo. Um dos seus livros mais recentes, a peça de teatro Os Velhos Também Querem Viver, teve destaque nos principais jornais brasileiros. “É um pequeno livro a que deram a atenção que costumam dar aos grandes”, comenta. No entanto, não sente que haja uma ligação directa entre aquele território e o que vai fazendo. “O Brasil é importante para mim culturalmente não apenas por causa dos livros. No cinema, no teatro, nas artes plásticas, por exemplo, os brasileiros são muito, muito fortes.”

Francisco José Viegas foi dos autores contemporâneos um dos primeiros a situar a acção de um romance no Brasil. Mais, arriscou replicar as falas e a ortografia locais no policial Longe de Manaus, para onde vai o seu detective de criação, Jaime Ramos. Foi em 2005, depois de um período a viver no Brasil. Passaram dez anos. “O trabalho com o Longe de Manaus foi uma dupla experiência: não escrever do ponto de vista português, mas do ponto de vista brasileiro – e com outra ortografia. E viver quase dois anos no Brasil exigiu também uma alteração de língua, de hemisfério, de cultura. Foi decisivo para a minha vida, porque desmistificou o Brasil. A experiência de falar e escrever do ponto de vista brasileiro acabou por mudar muito a minha escrita”.

“Quando Pedro Álvares Cabral, antes de sair do Brasil rumo à Índia, anunciou que ia deixar dois marinheiros portugueses, outros dois ou três fugiram dos barcos e quiseram também ficar. Foram os primeiros emigrantes portugueses no Brasil, que foi sempre uma espécie de paraíso perdido para nós. O que podíamos ter sido, o que podíamos ter feito, como poderíamos ter sido de outra maneira. Nunca nos recompusemos dessa perda. Não era apenas o bom selvagem -  era o bom português, que se podia ter reinventado. Infelizmente, não foi possível.” Alguns pensadores têm-se dedicado ao tema. “O Eduardo Lourenço viu bem o problema do Vieira: o quinto império era o Brasil, não era uma idade futura.” Valter Hugo Mãe refere isso mesmo, que o Brasil é o futuro de um país que vive fechado no seu passado: Portugal. Um Brasil mais cerebral e um Portugal melancólico, emotivo. São os contrários num processo simultâneo de atracção e virar de costas.

“Os brasileiros lêem-nos mais; nós escrevemos mais sobre eles”, continua Hugo Mãe. ”Viegas percebe a atracção dos autores portugueses contemporâneos, mas acha que “há muita mistificação à mistura, muito folclore, desejo de fazer do Brasil um lugar de férias permanentes, onde tudo é bom, feliz, fácil, luminoso. Não há actor de novela, músico, poeta, vendedor de ilusões que não regresse do Brasil com a impressão de que tocou na margem certa da terra prometida. Isso contribuiu ainda mais para mistificar e mitificar o Brasil no imaginário dos portugueses, e não para conhecer o Brasil real, que é outro país, cheio de defeitos e de virtudes, de amarguras e de dificuldades.”

A língua do meio do caminho
Tatiana Salem Levy, 36 anos, apontada como um dos jovens nomes mais estimulantes pela revista Granta, é das poucas escritoras do Brasil actual a viajar até Portugal e a transportá-lo na sua obra. Tem razões pessoais para o fazer. Formada em Letras, teve entre os seus melhores professores os de literatura portuguesa. “Lia Camões, Pessoa, as cantigas de amigo, Sophia de Mello Breyner, Herberto Helder, Raul Brandão, Alexandre Herculano, Eça, Augusto Abelaira, Lídia Jorge, Lobo Antunes e Saramago”, conta. A primeira bolsa de estudos foi em literatura portuguesa, com um projecto sobre a Maria Gabriela Llansol. Tinha entre 17 e 20 anos. “As leituras que fazemos nessa época são fundamentais”, continua. Só depois chegaria a paisagem, quando começou a frequentar o país e Lisboa, a cidade onde nasceu e de onde saiu bebé. “Mergulhar na literatura portuguesa era uma forma de descobrir o país onde havia nascido. Quanto mais descobria, mais me apaixonava. Todos os meus romances têm um pouco de Portugal. A Chave de Casa, 2007; Dois Rios, 2012, e Paraíso, 2014 (ainda por editar em Portugal).

A língua, que muitos apontam como entrave à leitura, nunca foi para ela barreira de escrita. “Às vezes, o sotaque pode ser uma barreira. Quando vou à Madeira e aos Açores, tenho dificuldade em entender o que dizem. Mas acho muito libertador poder escolher expressões, descobrir diferentes palavras para o mesmo objecto. Tomar um gelado de diospiro e só depois de experimentá-lo entender que estou tomando um sorvete de caqui...” O ouvido treina-se como a mão com a escrita na síntese que faz de sons, vocábulos, gerúndios. “Morando num país, a gente acaba por pegar expressões locais e mesmo uma construção sintáctica diferente”. Que português fala e escreve? “Sinto que entrei num limbo. No Brasil as pessoas acham que estou falando que nem os portugueses, e em Portugal ninguém duvida que o meu português seja o do Brasil. Gosto de falar do meio do caminho; dá a sensação de que a língua não tem fronteiras, de que é maleável, como se eu tivesse um arsenal maior de onde posso escolher o que usar. A sensação de pertencer a dois lugares é um pouco como a sensação de não pertencer a nenhum. Nunca estou inteiramente lá nem cá. É inebriante. Como se eu flutuasse na própria língua.” Dos portugueses contemporâneos, tem lido Gonçalo M. Tavares, Dulce Maria Cardoso, Alexandra Lucas Coelho, Afonso Cruz. Todos estão publicados no Brasil.

Carlito Azevedo, poeta, crítico, ensaísta, está aqui na condição de leitor, observador destas realidades de contágio, contaminação e também de resistência. Ironiza. “Isso de contágios e paisagens lembrou-me algo que aconteceu com o Guimarães Rosa. No livro Grande Sertão: Veredas há uma cena de um pôr do sol no sertão que é muito bonita e foi tomada por alguns críticos como uma perfeita descrição do sertão em estilo regionalista. Só que o Rosa comentava que ele tinha retirado aquele trecho de um diário dele onde anotara um pôr do sol que viu... na Holanda!” Ou seja, o contágio dá-se de forma mais superficial “no nome de bairros, ruas, morros”. De modo mais profundo, salienta a forma bem sucedida com que acontece em Jóquei, de Matilde Campilho, “não porque cite esse ou aquele lugar, mas porque os poemas têm o ritmo e o andamento das longas caminhadas que ela fazia no Rio, sem obrigatoriamente estar conversando ou pensando sobre o Rio, e sim sobre a Comuna de Paris, um novo aplicativo, a biografia do astronauta, etc... Qualquer que seja o tema que ela esteja tratando, sente-se que fala daquilo a partir do Jardim Botânico do Rio, da avenida Rio Branco, da orla da praia... É uma andadura rítmica, o verso, o poema de quem caminha num lugar que é pura célula urbana mas que, dobrada uma esquina, te coloca de frente para a pedra de uma montanha, ou para o oceano, frente ao qual ônibus passam a toda velocidade...”

Matilde Campilho fala aqui sem saber das palavras de Carlito Azevedo, Agora é sobre a relação com a língua, o modo como é permeável a nuances. “A língua não me trouxe questões que eu achasse que precisava de resolver. Pelo contrário. Já que a língua é ao mesmo tempo a mesma e não é, isso abre muitíssimo o tamanho do campo das possibilidades na escrita. É como se tudo se desdobrasse. Se pensarmos que a mesma língua pode ter cadências diferentes e trejeitos diferentes, que pode ser fruto de paisagens diferentes, então isso pode misturar-se na página escrita e formar um ‘desenho’ novo, multiplicado. Pelo menos na poesia existe essa possibilidade, a de uma língua que destrói fronteiras em vez de as levantar.”

Sem excepção, escritores, teóricos, editores – como Bárbara Bulhosa, na Tinta da China, com os brasileiros que publica em Portugal e os portugueses que leva para o Brasil, ou Clara Capitão que está à frente da recém-chegada a Portugal Companhia das Letras que entrou com O Irmão Alemão, de Chico Buarque, escritor que diz ser excepção de sucesso literário em Portugal pela via da música, e onde não fez uma única adaptação linguística –, referem a diversidade linguística do português falado e escrito nas diversas geografias, como uma riqueza a explorar.

Então porquê o entrave, insiste-se? “Mais jornalismo de divulgação de ambos os lados, retirada de taxas alfandegárias que tornam os livros portugueses inacessíveis no Brasil e uma política de promoção que não seja episódica, refere Inês Pedrosa e também Abel Barros Baptista, ensaísta e professor de Literatura Brasileira na Universidade Nova de Lisboa, autor da colecção Curso Breve de Literatura Brasileira (Cotovia, 2003) que publicou em Portugal livros considerados exemplares do que se escreve no Brasil. As excepções são Machado de Assis e Clarice Lispector. Os portugueses lêem muito pouco os brasileiros.

Há preconceito e uma certa arrogância da nossa parte, mas também dos brasileiros em relação a nós. As duas línguas estão estruturadas autonomamente e o grau de abertura do Brasil em relação ao estrangeiro, quando existe, é para outros territórios. Sobretudo os Estados Unidos. Olham muitas vezes a nossa escrita como pedante e nós encaramos o à-vontade deles como ligeireza.” Francisco José Viegas contextualiza, refere um caminho comum cheio de preconceitos históricos. “O salazarismo desconfiava do Brasil, de onde vinha toda a imoralidade, um certo sentido da barafunda, e havia - claro - o ressentimento contra a antiga colónia. Os brasileiros desconfiavam de um país de pobretanas e de provincianos que nunca tinham compreendido a “grandeza brasileira”.

De modo que, durante anos, desconhecemo-nos com orgulho e arrogância. Aquele Brasil que as telenovelas históricas da Globo nos trouxe significou para nós uma redescoberta do Brasil, sim, mas os intelectuais mantiveram sempre um preconceito europeu em relação ao que se fazia lá. Ignoravam que a universidade brasileira tinha debates profundos e alargados, que a literatura já não era apenas o cânone nordestino, que havia uma cultura urbana (sobretudo em São Paulo ou Porto Alegre) muito viva, que a literatura brasileira tinha, de facto, reinventado a língua portuguesa (no cânone clássico, com Érico Verissimo, Clarice, Rubem Fonseca; e que uma nova geração prolongava, com Assis Brasil, Patrícia Melo, Marçal Aquino, Tabajara Ruas - e hoje com Eucanãa, Galera, Ruffato, Mutarelli, Elvira Vigna, Paula Maia.” Os nomes continuam. No Brasil conhece-se Pessoa como se Pessoa fosse brasileiro, em Portugal Carlos Drummond de Andrade ou João Cabral de Melo Neto estão longe de serem muito conhecidos, menos ainda lidos, salienta Hugo Mãe.

Nas universidades brasileiras ensinam-se portugueses contemporâneos. Na portuguesa, Abel Barros Baptista diz que não se lembra de um português ter pedido para fazer um doutoramento em literatura brasileira. Onde estão as falhas? “O Acordo Ortográfico não vem resolver nada”, dizem, como num coro, todos os nomes ouvidos para este texto “O Acordo Ortográfico está implantado no Brasil. Nos jornais e na edição, é o modelo que funciona. O Brasil nunca ligou muito a acordos desses. Mas não nos podemos esquecer de que o português de Portugal e o do Brasil são e hão-de continuar a ser expressões diferentes da mesma língua. Julgar que a ortografia iria unificar as duas formas do português, só mesmo por piada. Vamos continuar a ter duas versões do português, mesmo se a ortografia se aproximou mais”, resume Francisco José Viegas. Mirna Queiroz fala da necessidade de uma “relação descomplexada sem expectativas vazias”. E o coro, em síntese, diz isto: enquanto passar pela cabeça de alguém traduzir um livro de português do Brasil para português de Portugal e vice-versa, as contas estarão voltadas e todos os contágios serão poucos.

Veja o programa de Minha Língua, Minha Pátria, evento que vai reunir escritores portugueses e brasileiros em São Paulo
 

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