Pensamento Contemporâneo levou curso de Relvas a tribunal

O processo da licenciatura de Miguel Relvas está pendente no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa. Mas para além da forma como foi avaliado numa disciplina, o Ministério da Educação fez saber que estão também a ser apreciados os créditos que lhe foram atribuídos.

Foto
Miguel Relvas apresentou a demissão do Governo a 4 de Abril de 2013 Daniel Rocha

Foi o Ministério da Educação e da Ciência que em Abril de 2013 remeteu o processo de Relvas para a Justiça, uma vez que a tutela não tinha poderes para declarar a nulidade de um grau académico, sendo esta uma prerrogativa das instituições universitárias ou dos tribunais.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Foi o Ministério da Educação e da Ciência que em Abril de 2013 remeteu o processo de Relvas para a Justiça, uma vez que a tutela não tinha poderes para declarar a nulidade de um grau académico, sendo esta uma prerrogativa das instituições universitárias ou dos tribunais.

As dúvidas, segundo explicou na altura o ministério de Nuno Crato, estavam na forma como Relvas tinha sido avaliado na disciplina de Pensamento Contemporâneo. Mas nesta quarta-feira, o ministério fez saber que o tribunal está também a apreciar o próprio processo de atribuição de créditos ao ex-ministro.

De acordo com a legislação que estava em vigor em 2006, as universidades tinham margem de manobra para avaliar as competências profissionais dos seus candidatos a alunos e atribuir a essas competências um determinado número de créditos sem limites (só em Junho de 2013 o Governo aprovou um diploma que impõe um tecto máximo, de até terço da totalidade dos créditos totais de cada curso). Esses créditos poderiam ser descontados no bolo total necessário para obter o grau de licenciado (180, em geral).

Foi no contexto deste quadro legal que, em Setembro de 2006, Miguel Relvas requereu a sua admissão ao curso da Lusófona. Secretário de Estado da Administração Local, entre 2002 e 2004, aquele que viria mais tarde a tornar-se ministro de Passos Coelho, já se tinha inscrito no ensino superior (a primeira vez, em 1984), em diferentes cursos. Mas tinha apenas concluído uma cadeira de Direito na entretanto extinta Universidade Livre.

À Lusófona, em 2006, Relvas apresentou-se com um currículo profissional que incluía ter sido consultor de várias empresas, várias vezes deputado na Assembleia da República (fora eleito pela primeira vez com apenas 24 anos), presidente da assembleia geral da Associação de Folclore da Região de Turismo dos Templários, entre outras actividades e cargos.

Numa carta dirigida ao então reitor da universidade (e também director do curso), Fernando dos Santos Neves, Relvas pedia que este se dignasse então a apreciar o seu percurso, “tendo em vista eventual reconhecimento” para efeito de equivalências, como permitia a lei.

Santos Neves e outro professor (José Feliciano, um doutorado em Antropologia Social) avaliaram os documentos enviados pelo candidato para atestar o seu percurso profissional — percurso que, disseram, tendo em conta a sua “longevidade” e a natureza das funções desempenhadas, “maioritariamente de liderança”, valia 160 dos 180 créditos necessários para fazer a licenciatura de Ciência Política e Relações Internacionais.

Entre as competências do candidato consideradas relevantes pelos dois docentes, estava, por exemplo, “a compreensão do papel de diferentes classes sociais e elites na modelação da sociedade” e os conhecimentos de “história do pensamento contemporâneo”.

Foi assim que Relvas, a quem na Lusófona seria atribuído o número de estudante 20064768, se inscreveu em quatro cadeiras, indicadas por Fernando dos Santos Neves: Introdução ao Pensamento Contemporâneo; Teoria do Estado, da Democracia e da Revolução; Geoestratégia, Geopolítica e Relações Internacionais; e, por fim, Quadros Institucionais da Vida Económico-Político-Administrativa. Uma vez concluídas, obteria o diploma — que viria a ser emitido a 19 de Dezembro de 2007.

Às restantes 32 disciplinas que faziam parte do plano de estudos, Relvas teve equivalência, com classificações que variaram entre os 10 e os 11 valores.

Detalhes sobre o percurso académico de Relvas foram divulgados em Julho de 2012, com responsáveis de instituições de ensino superior, então contactados pelo PÚBLICO, a garantirem que obter uma licenciatura em apenas um ano, como acontecera com Relvas, não era “de todo vulgar”.

Um 18 sem exame
O processo de Miguel Relvas não era único, como viria a constatar-se. Instalada a polémica, a Inspecção-Geral da Educação e Ciência (IGEC) produziria a 9 de Outubro de 2012 um relatório onde referia que tinha havido 150 diplomados com equivalências na Lusófona e que, em média, tinham sido atribuídos 52 créditos a cada um. Contudo, nenhum tinha tido tantos como Relvas: 160 (em 180 necessários para ser licenciado).

Relvas fez, como se disse, quatro cadeiras. A nota mais alta foi-lhe atribuída por Fernando dos Santos Neves a Introdução ao Pensamento Contemporâneo: 18 valores. A IGEC, na auditoria determinada por Crato, apuraria como: com base numa discussão oral com o aluno de sete artigos de jornal, da autoria do próprio Miguel Relvas, publicados em diferentes órgãos de comunicação social entre 2003 e 2006.

A IGEC sublinhou que esta avaliação fora feita “em fase de exame, sem que [Miguel Relvas] tivesse realizado prova escrita”. O que contrariava o que se encontrava então estipulado tanto nos estatutos da universidade como no regulamento de avaliação do curso.

A 4 de Abril de 2013 Miguel Relvas, ministro-Adjunto e dos Assuntos Parlamentares, apresentou a demissão do Governo, alegando “falta de condições anímicas” para continuar a exercer funções. Pouco depois depois, o gabinete de Nuno Crato emitiu um comunicado para falar do ex-aluno da Lusófona: “Atendendo à circunstância de existir prova documental de que uma classificação de um aluno não resultou, como devia, da realização de exame escrito, e face à limitação dos poderes de tutela, o Ministro da Educação e Ciência, no despacho respectivo, concordou com a proposta da IGEC de comunicar o caso ao Ministério Público para que, junto do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, dele possa extrair os devidos efeitos legais.”

A nota de Pensamento Contemporâneo iria então ser analisada. Mas para além disso, o ministro da Educação pedia que a IGEC verificasse todos os processos de creditação, porque havia dúvidas em relação a alguns, incluindo o de Relvas, isto apesar das diligências da Lusófona para esclarecer como fundamentara os créditos atribuídos ao estudante.

Acrescentava Crato, no mesmo comunicado: “Das suas conclusões [da IGEC] serão extraídas as devidas consequências, incluindo, caso se detectem inconsistências nas creditações atribuídas, a imposição de sanções adequadas à ULHT e a participação ao Ministério Público da invalidade de decisões de creditação e de actos de certificação de graus académicos para que este possa promover a respectiva impugnação judicial.”

Em Junho de 2013 a Procuradoria Geral da República (PGR) anunciou em comunicado que o Ministério Público no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa tinha intentado uma acção administrativa especial (“na qual peticiona, para além do mais, a declaração de nulidade do acto de atribuição de licenciatura a Miguel Relvas”, lia-se).

A acção foi proposta contra a Lusófona “tendo como contra-interessado Miguel Relvas” — o conceito de contra-interessado define, basicamente, alguém que pode ser prejudicado caso uma determinada acção tenha procedência. Ou seja, o réu, neste processo que foi entregue à juíza Isabel Jovita Portela Costa, no dia 25 de Junho de 2013, é a universidade.

Também em Junho de 2013 o Conselho de Ministros aprovou alterações à legislação que regula o sistema de créditos, impondo limites ao que as instituições de ensino superior podem atribuir aos seus candidatos a alunos.

Questionado sobre a demora na apreciação do caso, o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais tem alegado que ela se encontra “devidamente justificada” devido ao “reduzido número de juízes e ao elevado número de pendências que se verificam” no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa. Por outro lado, e segundo o mesmo órgão, “este processo não tem natureza prioritária nem urgente”.