Latim a remar contra a maré
O Ministério da Educação está a estudar o reforço do ensino do latim e da cultura clássica no ensino básico e secundário. A proposta teve origem na Comissão Nacional de Educação, em diálogo com as associações de professores e universidades. A UNESCO, em 2010, recomendou aos países com línguas de origem latina que ensinem o latim nas escolas. O interesse cresce na Europa.
A Escola Secundária de Camões tem, no presente ano lectivo, uma turma de 10.º ano com doze alunos, uma de 11.º ano com nove alunos e outra de 12.º ano com três alunos. E no Camões estão as seis pessoas que neste momento fazem estágio na área de Português e Latim, em Lisboa – quatro mestrandas da Universidade Nova de Lisboa e duas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Para estas futuras professoras, fazer o estágio com latim pode ser “uma mais-valia”, numa altura em que já quase ninguém o faz.
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A Escola Secundária de Camões tem, no presente ano lectivo, uma turma de 10.º ano com doze alunos, uma de 11.º ano com nove alunos e outra de 12.º ano com três alunos. E no Camões estão as seis pessoas que neste momento fazem estágio na área de Português e Latim, em Lisboa – quatro mestrandas da Universidade Nova de Lisboa e duas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Para estas futuras professoras, fazer o estágio com latim pode ser “uma mais-valia”, numa altura em que já quase ninguém o faz.
No Porto, a situação não é melhor. Só a Escola Rodrigues de Freitas continua a oferecer o latim nesta cidade. “Julgo que o facto se deve à tradição clássica da escola e a ter havido uma passagem de legado entre professores. Tanto eu como o meu colega fomos alunos na escola e aqui estamos há mais de 22 anos. O latim sempre teve presença, ainda que com número variável de alunos. Este ano temos uma turma de 15 alunos no 10.º ano”, diz Alexandra Azevedo, professora de latim nesta escola.
Os frutos da tradição das línguas clássicas nesta escola são aliás bem visíveis: “Foram vários os alunos da nossa escola premiados em concursos internacionais. O Afonso Reis Cabral, vencedor do Prémio Leya deste ano, ficou entre os 20 primeiros numa competição de grego antigo, promovida pelo ministério grego da cultura, o que nos levou a Atenas para receber uma medalha. No ano seguinte, em 2009, a aluna Ana Almeida repetiu o feito. Em 2011, o António Gil Cucu ganhou o Certamen Horatianum [prova de tradução de latim realizada em Itália, na terra natal do poeta Horácio], o que nos deixou plenos de orgulho”.
E no sul do país? Outra escola que tem mantido o latim é a Escola Secundária Manuel Teixeira Gomes, em Portimão. “No presente ano lectivo, candidatei-me a professor bibliotecário e, por esse motivo, tenho apenas uma turma, que não é de latim. É uma turma de grego e tem 30 alunos”, explica Luís Pinto Salema, professor das duas disciplinas. Uma turma de grego desta dimensão é hoje uma raridade, e os colegas são unânimes em reconhecer a excepcional capacidade de motivação do professor. Luís Pinto Salema afirma ter pena porque “pela primeira vez, em nove anos, não há uma turma de latim na escola, e havia pelo menos 12 alunos inscritos no 10.º ano”. O professor conta que “houve um aluno que me veio pedir se eu lhe dava aulas de latim e estou a fazê-lo, na biblioteca da escola”. Nas nove ilhas dos Açores, há apenas uma docente a leccionar latim no ensino secundário, em Povoação (S. Miguel).
Em 2012, o Ministério da Educação passou de 10 para 20 o número mínimo de alunos exigido para abrir de forma automática uma disciplina de opção, o que, explica Alice Costa, professora na Escola Secundária D. Pedro V em Lisboa, “aumentou a dificuldade e a confusão: está previsto que as escolas possam abrir turmas com menos alunos desde que peçam autorização às direcções regionais. Mas, além do desconhecimento desta possibilidade, também acontece que os próprios directores das escolas ignorem totalmente a importância do latim”. Luís Pinto Salema diz estar convencido que o interesse dos alunos não diminuiu, mas que “as direcções das escolas são, de forma mais ou menos directa, pressionadas a gerir recursos”. Nas palavras de Mário Paulo Martins: “Se há professores, é essencial começar por oferecer o maior número possível das opções previstas, depois os alunos surgem ou não – mas falta coragem por parte das escolas”.
E se um aluno da área de ciências e tecnologias do ensino secundário estiver interessado em aprender latim? A resposta oficial é muito clara: “Um aluno de ciências não pode escolher latim, nos actuais desenhos curriculares. Em muitos países, isso não acontece, dando-se uma maior liberdade de escolha aos alunos”, explica Luís Pinto Salema. Se este aluno frequentasse o Camões, poderia talvez esperar pelo clube de latim que Mário Paulo Martins gostaria de criar já no próximo ano lectivo: “Tive vários alunos de outras áreas interessados. De facto, o ensino secundário está muito compartimentado e limitado. Noções de latim e de grego ao nível da etimologia deviam ser obrigatórias para quem segue cursos de medicina, arquitectura, engenharias várias, etc.”
Luís Pinto Salema considera que “a revisão dos programas seria premente, no que diz respeito à escolha de textos e no sentido de desenvolver a dimensão da cultura e da civilização, associando-a a aspectos, como por exemplo a arte, que atestam a presença do latim, na actualidade”. A par das obras de carácter mais literário, o professor dá exemplos de textos que poderia ser interessante abordar com os alunos de ciências: “Vitrúvio escreveu um tratado intitulado De Architectura, onde explica como se deve construir uma casa, tendo em conta o movimento do Sol; Plínio, o Jovem, escreveu cartas onde relata a erupção do Vesúvio”. “Está tudo nos textos clássicos, salvo a exploração do espaço”, diz Mário Paulo Martins em tom de brincadeira.
Em Lisboa, nas escolas Pedro Nunes e Passos Manuel, existe outra possibilidade: a dos cursos livres de latim. Susana Marta Pereira fez o mestrado em ensino do Português e Línguas Clássicas na Universidade Nova de Lisboa e foi estagiar para o Pedro Nunes, mas não havia turmas de latim. Surgiu então a ideia de criar um curso livre que servisse também de parte prática da profissionalização. “A experiência correu muito bem. Organizámos uma semana do latim, em que os alunos apresentaram as razões para se estudar latim”. Terminado o estágio, Susana Marta Pereira continuou a dar o curso em regime de voluntariado e propôs um curso semelhante à Passos Manuel. Logo no primeiro ano funcionaram três turmas. Este ano, por questões de horário, a professora junta os alunos das duas escolas numa única aula semanal. Os seus alunos “são maioritariamente de ciências” e alguns “já estão na universidade mas continuam a frequentar o curso”.
A professora segue o método do Cambridge Latin Course, sendo ao mesmo tempo professora e aluna do Classical School Project, em que os professores recebem formação e partilham materiais. Os alunos que frequentam estes cursos têm a possibilidade de receber a certificação oficial que o curso de Cambridge proporciona. “Muitos países estão a introduzir o latim nos curricula e há também uma reinvenção dos métodos utilizados – o latim é visto como uma língua que se pode falar. É uma combinação de língua e cultura, em que a gramática funciona em função do texto, e não o contrário. Claro que o latim exige trabalho, mas isso pode ser feito de várias maneiras”.
Há também algumas experiências de ensino de latim no ensino básico. Como explica Alexandra Azevedo, “o Pari Passu nasceu da possibilidade legal de introduzir áreas diferentes no segundo ciclo. Foi um sucesso na nossa escola. Tivemos 12 turmas com mais de 20 alunos cada. Eram apenas 45 minutos semanais mas foi o suficiente para colocar a cultura clássica entre as disciplinas favoritas. Este ano perdemos essa oferta pois os directores de turma reclamavam esse tempo para tratar de assuntos ligados à turma. Sei que o projecto continua activo em várias escolas do país e com sucesso”.
Algumas escolas privadas, como o Colégio de São Tomás, em Lisboa, ou o Rainha Santa Isabel, em Coimbra, introduziram já há vários anos o latim e a cultura clássica a partir do 5.º ano. Outras há que tinham essa tradição mas perderam o ensino do latim, como o Colégio de S. João de Brito ou os Maristas. Susana Marta Pereira é professora na St. Peter’s School, em Palmela, onde o latim foi recentemente tornado disciplina obrigatória, para já do 5.º ao 7.º ano.
Os professores salientam o papel dos cursos livres e de verão oferecidos pelas universidades, pelo menos em Coimbra e em Lisboa. Tânia Figueiredo, estagiária no Camões, frequentou um curso livre de latim na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, juntamente com alunos do secundário, médicos, reformados. Susana Marta Pereira dá aulas de latim na Universidade Sénior de Azeitão, onde tem “alunos muito empenhados, e alguns já avançados”.
Mário Paulo Martins tem o hábito de perguntar quais as razões da escolha desta disciplina de opção. São elas: “Alunos que querem ir para Direito e sabem que será útil, o gosto pela mitologia e pela cultura romanas, um certo exotismo atribuído à língua, tradição familiar, e para ajudar a ser melhor no Português”. Luís Pinto Salema diz que o gosto dos alunos pela disciplina se deve também “ao facto de se diversificar os métodos e as tarefas – trabalhamos língua latina, cultura clássica, mitologia, etimologia, língua portuguesa, usamos as tecnologias”. O professor diz que a disciplina “exige trabalho, implica raciocínio e contraria o imediatismo a que os alunos estão habituados. Mas ao longo destes anos a percentagem de reprovações foi sempre residual. Em muitos casos, as dificuldades são comuns a outras disciplinas, nomeadamente ao Português”.
Alice Costa recorda que a última turma à qual deu latim e em que viu “um grande reconhecimento da utilidade do latim na sua formação e percurso” foi há 15 anos. A professora não hesita em afirmar que, nos cursos de letras, o latim é por excelência “a disciplina que desenvolve a organização do pensamento” e que deveria ser “obrigatória nos currículos e exigida à entrada nas universidades”. O contrário, diz, “conduziu ao descalabro em que estamos no ensino do português, porque muitos professores já não tiveram qualquer contacto com a língua latina, essencial para um conhecimento mais profundo da língua portuguesa”. Afirma ainda que “muitas escolas hoje já não estão em condições de oferecer latim”. Susana Marta Pereira diz que “a separação entre os vários níveis de ensino é um tiro no pé” e que formação de professores de português e latim deve ser levada muito a sério pelas universidades”.
Para Alexandra Azevedo, “tem faltado uma consciência nacional que entenda a importância do latim na formação linguística e cultural dos nossos alunos, que leve o latim ao conhecimento dos interessados e lhes abra portas”. Luís Pinto Salema afirma que é necessária “uma acção concertada que una os professores do ensino secundário, a Associação de Professores de Latim e Grego e as Universidades, a par dos organismos do Ministério da Educação”.
Alice Costa sustenta que, neste momento, alguns dos professores mais activos se encontram um pouco desmotivados: “Pode dizer-se que há problemas mais graves na educação”. A “remar contra a maré” é como hoje se sentem, diz Luís Pinto Salema. Mas acrescenta que existirá sempre “o brio profissional dos professores, os de latim, os de grego e os outros,” e a convicção de que “as línguas clássicas têm um lugar que não pode deixar de ser considerado. O seu papel formativo, a matriz civilizacional e cultural que carregam e a sua presença no mundo contemporâneo justificam o seu estudo e a sua perenidade”.
O Ministério da Educação e Ciência não avança o que vai mudar em concreto no ensino do latim. Apenas confirma que “está a preparar o reforço do ensino de latim e cultura clássica no ensino secundário”. Quanto ao ensino básico, “está a estudar a possibilidade da oferta curricular ser definida em algumas escolas”.
Editado por Lurdes Ferreira