"Não vejo onde se pode ir buscar fundamento legal para uma lista VIP"

A informação respeitante a titulares de cargos políticos é mais apetecível, mas isso não significa que estas pessoas tenham de ser tratadas melhor, defende a nova presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses.

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Maria José Costeira Enric Vives-Rubio

Como avalia a governação da ministra da Justiça?
Não dá ainda para fazer um balanço: o meio ano que falta para terminar o mandato é fundamental. A reforma mais emblemática, a reorganização do sistema judiciário, não acabou. O balanço só se poderá fazer quando, terminando o mandato, se perceber se a reforma ficou completa ou não.

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Como avalia a governação da ministra da Justiça?
Não dá ainda para fazer um balanço: o meio ano que falta para terminar o mandato é fundamental. A reforma mais emblemática, a reorganização do sistema judiciário, não acabou. O balanço só se poderá fazer quando, terminando o mandato, se perceber se a reforma ficou completa ou não.

Isso é possível em seis meses?
Tenho esperança que sim. Uma coisa é a reforma ser concluída, outra os tribunais estarem a funcionar em pleno no âmbito da reforma. Começámos mal: em Setembro passado as coisas não estavam preparadas para a reforma – quer a nível de instalações, quer por causa da falta de funcionários judiciais e do sistema informático, que crashou. Agora temos de pôr a reforma a funcionar.

O que falta?
Temos uma lei [da reforma] que está em oposição expressa com o estatuto dos magistrados judiciais, que tem de ser revisto. Precisamos de tratar do problema dos tribunais que estão a funcionar em condições péssimas e não têm sequer obras projectadas.

A ministra Paula Teixeira da Cruz alega não poder resolver através da reforma problemas velhos de décadas.
Não me parece que se possa responder dessa maneira. É verdade que há tribunais que estão péssimos há muitos anos, como o de Vila Franca de Xira, com contentores lá dentro. Mas ao agrupar tribunais esta reforma veio criar novos problemas. Em tribunais já de si insuficientes foram colocados ainda mais juízes, funcionários e magistrados do Ministério Público. Ora se já não cabiam os que lá estavam agora não há espaço para os novos. Isto é um problema novo, que começou a 1 de Setembro passado. Os 17 juízes que estão colocados em contentores em Loures não tinham antes este problema, porque não trabalhavam ali. E já se sabia que isto ia acontecer, porque não havia espaço para eles em Loures.

A não ser que se tivesse começado antes as obras no tribunal.
Loures é dos casos mais dramáticos precisamente porque não está planeada obra nenhuma. Não obstante eu ter ouvido notícias segundo as quais a adjudicação da obra estava à espera de visto do Tribunal de Contas desconhecemos em absoluto qual seja a solução. Os juízes não cabem no tribunal, ponto. Estão a funcionar em contentores, ponto.

Como vê o facto de esta reforma ter fechado edifícios em boas condições, transferindo tribunais que ali funcionavam para imóveis menos aptos?
Não se pode fazer uma correlação directa e dizer que se devia ter mantido abertos os que estão bons e fechado outros sem condições. Foram encerrados os tribunais que, segundo as contas do Ministério da Justiça, não tinham número suficiente de processos para se manterem abertos. Eventualmente terá havido tribunais que fecharam indevidamente. Não concordámos com os critérios de contagem de processos do Ministério da Justiça. Queremos apresentar em Setembro próximo um balanço do primeiro ano da reforma – para saber se os tribunais que fecharam deviam voltar a abrir, se o número de juízes é adequado ao número de entradas de processos…. E vamos também apontar soluções.

Irá apresentar esse levantamento antes ou depois das eleições?
Não me interessa quem vai estar no Governo em Setembro ou Outubro. Não temos estruturas politizadas na magistratura e é assim que deve ser. As políticas de justiça são demasiado importantes para serem encaradas de quatro em quatro anos de maneira diferente. Tem que haver um pacto de regime, porque não podem depender de um partido ou de uma maioria de quatro anos. Não queremos deitar tudo abaixo e fazer uma nova reforma ou voltar a pôr tudo como era – é impensável. Temos é que tornar este modelo perfeito, adaptando-o à realidade. O país não tem estrutura financeira para fazer reformas como esta ano sim, ano não.

Houve critérios economicistas na base deste mapa judiciário?
Não posso dizer que todo o mapa foi feito com base em critérios economicistas. Que houve esses critérios nalguns casos concretos houve – e desde logo é economicista fechar tribunais com menos de 200 processos/ano.

Há fale em denegação da justiça. Com o encerramento de tribunais está a ser negado o acesso à justiça aos cidadãos?
Se existem problemas de acesso à justiça têm de ser denunciados. Mas a lei prevê que os juízes se possam deslocar dos tribunais centrais às várias secções para fazer lá os julgamentos. Não me parece que se possa falar em denegação de justiça. Tornou-se mais difícil o acesso aos tribunais pelas pessoas, a quem temos de dar meios para irem até lá. Senão poderemos estar a ultrapassar a marca. Se estamos a falar de pessoas para quem o tribunal mais próximo ficou a 70 km e que não têm transportes públicos, aí temos um problema.

Isso sucede?
Há comarcas com uma extensão territorial brutal. Se pensarmos que o Tribunal de Viseu abrange Lamego no que respeita às acções com maior peso económico e aos crimes mais pesados… não é fácil populações pobres sem transportes públicos deslocarem-se ao tribunal. Se lhes for marcada uma audição às 9h30 têm de ir de véspera.

Um dirigente do Ministério da Justiça avisou os juízes para terem cuidado com as despesas de gasolina.
Isso é incomentável. Não podemos pensar a justiça, que é um direito fundamental dos cidadãos, com base em critérios economicistas. Se um juiz se disponibiliza para se deslocar 70 ou 80 kms para fazer um julgamento não se põe a questão de não lhe pagarem o transporte. É um aviso para ignorar.

Um dos argumentos da ministra da Justiça para levar por diante esta reforma foi arranjar juízes especializados nas diferentes áreas. Isso aconteceu?
Vão especializar-se um dia, a curto e médio prazo. O juiz vai para um tribunal especializado e depois procura formação. Não se pode dizer que a 1 de Setembro passado todos os tribunais especializados tivessem juízes especializados, até porque esse não era um requisito para se concorrer a eles. A especialização é um ponto positivo, e é gravíssimo que os funcionários não tenham tido formação nesse sentido quando transitaram para os novos tribunais. Há ainda o problemão da falta de funcionários judiciais em todo o país.

Os problemas do sistema informático Citius já estão resolvidos por completo?
Boa pergunta. Nunca nos foi dado conhecimento disso, apesar de a associação ter pedido uma auditoria externa para saber o que aconteceu em Setembro passado e se o problema ficou resolvido. Pode ter sido a migração de processos do antigo sistema para o novo que provocou o crash, mas também pode não ter sido. Precisamos de garantias de que o sistema é estável e não vai ter problemas outra vez. De resto o Citius não está a funcionar em pleno: há processos inseridos duas vezes no sistema com números diferentes, apensos que ainda lá não estão e recentemente, entre o fim de Janeiro e o início de Fevereiro, apareceram milhares de requerimentos de agentes de execução que haviam entrado no sistema em Agosto e tinham ficado no limbo durante meses. Não temos confiança no sistema.

O âmbito de actuação dos presidentes das novas comarcas tem levantado problemas?
Tem. Há uma fronteira entre o que é o poder do juiz-presidente e o poder dos restantes juízes que não está definida e tem de ser urgentemente regulamentada. Não tivemos tempo de nos preparar para o novo modelo  – nem juízes, nem presidentes de comarcas, nem Conselho Superior da Magistratura – porque a reforma entrou em vigor antes do tempo. Não passámos a ter hierarquia jurisdicional. E no acto de julgar a independência não é só na decisão: é na própria forma de organização do serviço dos juízes.

E os tribunais são independentes?
Os tribunais são órgãos de soberania mas dependem por completo do Ministério da Justiça em termos financeiros e isso está profundíssimamente errado. Não podemos esperar que sejam absolutamente independentes quando dependem do Governo. Deviam ter um orçamento próprio que saísse directamente dos encargos gerais do Orçamento de Estado negociado na Assembleia da República.

Seria negociado por quem esse orçamento?
Pelo Conselho Superior da Magistratura e pelo Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais. A observadora da ONU que esteve em Portugal, Gabriela Knaul , que disse ser inaceitável que os tribunais dependam do ministério. Os tribunais não têm independência para contratar um funcionário ou para comprar sequer um tinteiro, ou papel higiénico para as casas-de-banho.

Como podem então ser-lhes fixadas metas?
Ou são fixadas em função do dinheiro que o ministério dá para as atingir ou não são atingíveis. Não se pode pedir que as coisas funcionem bem se há sete funcionários a fazer fila para uma única impressora. E nos tribunais do comércio tem de ser tudo feito em papel, porque os administradores de insolvências não têm acesso ao sistema informático, uma vez que não conseguem ter assinaturas digitais.

A associação sindical diz ter sido mal interpretada quando fez depender a independência dos juízes do seu estatuto remuneratório.
As pessoas associam a independência dos juízes às decisões que eles tomam – condenações ou absolvições. E isso nunca esteve em causa, porque os juízes não são corruptos nem permeáveis. Agora a independência é muito mais do que isso: para eu estar verdadeiramente tranquila no meu gabinete a fazer uma sentença tenho que estar liberta de qualquer constrangimento. Se o juiz, por qualquer motivo – por causa de processos disciplinares, do novo modelo de organização judiciária ou do estatuto remuneratório, por exemplo – está preocupado, falta-lhe a a calma necessária para decidir.

Isso é válido para muitas outras profissões, como os médicos.
A diferença é que nós somos juízes e estamos a decidir o futuro das pessoas e a aplicar a justiça, que é um bem fundamental. Aquilo que nos diferencia dos médicos é que não recebemos horas extraordinárias, não temos horário de trabalho e temos total disponibilidade – um juiz pode ter de interromper as férias – e temos exclusividade de carreira. Não podemos exercer outra profissão – apenas dar aulas a título gratuito. E temos algo que mais ninguém tem: um dever de reserva imposto pelo nosso estatuto que comprime os nossos direitos de cidadania. As pessoas muitas vezes não têm noção disto. Um juiz não só não pode ter intervenção pública político-partidária como também não pode intervir em associações cívicas ou participar numa manifestação. Em rigor, não pode sequer fazer parte dos órgãos sociais da associação de pais da escola dos seus filhos, porque pode vir a ter em mãos um processo relacionado com essa associação, ou com a escola.

Mas temos juízes entre os comentadores televisivos.
Dois ou três. Os juízes não devem ser comentadores políticos nem comentadores residentes. E os advogados também têm algum dever de reserva, apesar de parecer que pensam que não. Não me parece que possam comentar os processos que têm em mãos.

Os juízes são mal pagos?
Compreendo que as pessoas não entendam que são. Mas se pensarmos que um juiz em início de carreira recebe cerca de 2300 euros líquidos, montante que já inclui o subsídio de compensação, e que no Supremo Tribunal de Justiça recebe cerca de 3600 não me parece que possamos falar numa remuneração condigna, tendo em conta a responsabilidade e as obrigações da função. Fomos os únicos funcionários públicos a levar um corte definitivo de 20%, naquele subsídio.

Vai bater-se pela subida salarial?
Claro. Repare, o crivo para se entrar na magistratura é brutal. A entrada para o curso de três anos do Centro de Estudos Judiciários depois da licenciatura é terrível: há sempre mais de mil candidatos e este ano abriram 20 vagas. É preciso ter à espera uma carreira que justifique isto tudo. Ora 2300 euros não é propriamente chamativo. A ministra da Justiça disse numa entrevista que um estagiário no seu escritório de advocacia ganhava mais.

Os portugueses confiam na justiça?
Não podemos dizer que todos os tribunais funcionam mal. Os tribunais administrativos estão entupidíssimos por terem uma falta de juízes brutal e por as suas competências terem sido alargadas. Por outro lado, passámos a ter muito mais litigância relacionada com actos do poder político. Concursos de professores que geram centenas de providências cautelares, por exemplo. O Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais diz que faltam cem juízes na primeira instância – e estas serão contas feitas por baixo. Há uma proposta no Ministério da Justiça para ser aberto um concurso para o próximo ano para abrir 40 vagas. Se não for por diante ficaremos numa situação catastrófica.

Como encara o recurso aos tribunais para impugnar decisões de cariz político?
As opções políticas não podem ser sancionadas pelos tribunais. Os governos têm a legitimidade que resulta da sua eleição para executar as políticas que resultam dos seus programas – dentro da legalidade, claro. Claro que há situações de fronteira. Em última instância qualquer decisão que prejudique uma pessoa viola os seus direitos e lá vamos nós para os tribunais. Parece-me que tem havido um excesso de recurso para os tribunais administrativos nestas matérias.

Como vê a criação de uma lista VIP de contribuintes?
Como já ouvi num comentário televisivo não tenho nada a opor, desde que ela inclua dez milhões de portugueses.

E se só incluir alguns?
Não pode. Todos temos o mesmo direito à privacidade e à reserva da nossa vida pessoal. Ninguém tem mais do que os outros. O sistema tem de estar montado de maneira a que só possa ter acesso à informação fiscal quem está a investigar determinada situação de forma legítima – numa auditoria, por exemplo. Porque se houver um funcionário das finanças que não goste de mim, anónimo, pode divulgar a minha ficha no bairro. Esse anónimo merece menos consideração pela sua privacidade do que um político? Ninguém pode ver a sua vida devassada, ponto. É preciso impedir que isso aconteça.

Há problemas de legalidade numa lista destas?
Não vejo onde se pode ir buscar fundamento legal para fazer uma lista destas. Estamos a falar de uma violação claríssima do direito constitucional que todos temos à privacidade e à reserva da vida privada. Já vi defender que este direito não é igual porque os titulares de cargos políticos não são iguais ao comum dos cidadãos, uma vez que têm uma responsabilidade acrescida. Mas não têm um direito acrescido a verem a sua privacidade salvaguardada por serem titulares de cargos políticos. São mais apetecíveis, mas isso não significa que tenham de ser tratados melhor. O que tem de ser garantido é que nenhum cidadão veja a sua vida devassada. Se é possível implementar um sistema de alarme que o seja para todos os cidadãos, digo eu.

Se José Sócrates não chegar a ir a julgamento isso fragiliza a justiça ou é simplesmente o decorrer normal de um processo?
É o decorrer normal de um processo. Tudo é possível, dependendo dos indícios e do juízo que é feito nesta fase sobre esses indícios. As regras do jogo são estas. O juiz de instrução não é um juiz acusador, é um juiz que está lá para assegurar as garantias dos arguidos. A seguir podem aparecer provas que reforcem ou rebatam as provas anteriores. Isto acontece todos os dias em Portugal.

Este caso levanta também o problema do segredo de justiça.
O problema existe há anos e tem de ser resolvido.

Como?
Se conseguirmos pôr os tribunais a prestar informações quando elas são solicitadas se calhar teremos uma procura menor de informação por portas travessas. Por outro lado, o acesso a cada processo tem de ser restringido aos funcionários e magistrados que estão a trabalhar nele. Em última instância poderá ter de se criminalizar a divulgação pública de informações que se encontrem em segredo de justiça.

Com cadeia para os jornalistas?
Não implica que vão presos à primeira, mas se calhar à terceira já vão.

A proposta aprovada pelo Governo de criação de listas de abusadores sexuais de menores fica aquém do anunciado inicialmente. Parece-lhe já ser aceitável?
Não são os pais quem tem de ter acesso a essas listas, mas as polícias. Esta proposta não tem lógica: prevê-se que os pais possam invocar suspeitas concretas para aceder a essas listas. Ora se essa suspeita existe eles já têm de ter feito queixa à polícia. Além disso é completamente desproporcional que uma pessoa condenada a mais de dez anos de prisão fique 20 anos na lista. Nem um homicida! Muitas vezes os abusos prolongam-se por anos, dentro da família. E a taxa de reincidência neste tipo de crime não é propriamente elevada. Mas têm de ser as polícias a agir, sob pena de se criarem milícias populares.

Esta alteração legal poderá passar no Tribunal Constitucional?
Não.