Pântano: um lugar sem definição

A criação de Miguel Moreira, da Útero, com Catarina Félix, Francisco Camacho e Romeu Runa, encerra o seu ciclo de peças orientadas para a dança.

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A tentativa de elevar a transgressão a beleza infere ao espectáculo um tom provocador com muito simbolismo mas pouca espessura João Garcia Miguel

Pântano é um lugar de indefinição. A ideia de um território habitado por criaturas pré e/ou pós-humanas, entre a génese e o apocalipse, que decorre extensa e contemplativa (abalada por convulsões pontuais), é realmente instalada com alguma potência; no que acontece há uma expressão plástica, performativa e sonora sedutora.

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Pântano é um lugar de indefinição. A ideia de um território habitado por criaturas pré e/ou pós-humanas, entre a génese e o apocalipse, que decorre extensa e contemplativa (abalada por convulsões pontuais), é realmente instalada com alguma potência; no que acontece há uma expressão plástica, performativa e sonora sedutora.

Contudo, a tentativa de elevar a transgressão a beleza, explorando a união entre sodomia e erotismo ou obsessão pelo poder, como faces ocultas que aqui são permitidas revelar, infere ao espectáculo um tom provocador com muito simbolismo mas pouca espessura.

Uma mulher, anonimizada por uma máscara preta, de calças justas, seios à vista sob uma camisola rendilhada, que puxa um homem nu pelo sexo, ao longo do palco, merecia – se é mesmo para falarmos disto – algo mais do que uma citação inconsequente e uma consequência mais interessante do que um dueto de andares e esbracejares elegantes.

O plano coreográfico é ténue. Perceptível em apontamentos literalmente expressos em frases curtas ou pontuações (como a já indicada), implícito na progressão dos imbricados duetos que acontecem à vez, entre os três pares possíveis, e também expresso em linhas descritas intencionalmente pelos corpos. Mas, na essência, Pântano é um trabalho de vivência experiencial, ora mais meditativa ora mais visceral, que se revela no comportamento físico e através do movimento. As formas de conjunto são sobretudo acidentais; os intérpretes estão muitas vezes de olhos fechados e por isso privados da percepção do todo.

Catarina Félix incorpora a criatura que mais se revela como bailarina, angulosa e detalhada. Romeu Runa mantém o perfil de excepção e a androginia vai-lhe muito bem, embora aqui ele cristalize no ser mais sexual e voraz do grupo. Já Camacho regressa ao palco com uma qualidade performativa amadurecida, mas sempre bem medida e tocante pela autenticidade. A banda sonora é um elemento muito sólido e a presença de Carlos Zíngaro um valor principal.

Pântano também é um lugar de irregularidades. Por exemplo a farinha, lançada ao ar sob uma luz amarela intensa, tem um primeiro efeito que, embora espectacular, não é novidade; porém, ao cobrir os corpos e os cabelos de branco, adquire um poder figurativo sobre o envelhecimento que reforça, com eficácia, a longevidade patente no sentido de um caminho existencial que cruza a peça.

Já a figura da mulher nua arrastada pelo chão, puxada por uma perna pelo homem das cavernas (uma interpretação possível), tem uma conotação excessiva para o fim a que se destina: desenhar um círculo no chão. O círculo pode ser importante neste contexto para o imaginário pretendido de um espaço ritual. Mas a forma de o fazer é um sacrifício, do próprio encenador, de princípios elementares de representação da mulher na sociedade europeia actual. Para além da estética do romantismo noir (que Moreira assume) – e que a luz, embora muito boa, ajuda a sublinhar –, falta dar sentido a esta caminhada para que se perceba a pertinência das profundidades que se evocam.