A lição de uma folha escrita no deserto, ou como Maomé protege os cristãos

Num local sagrado para judeus, cristãos e muçulmanos, que mais podemos procurar e desejar para fomentar o diálogo do que uma carta de Maomé a proteger os cristãos?

Hoje, depois de se ter tornado assente que a vida de retiro no deserto, a génese do monaquismo, nasceu muito antes do Cristianismo, e sabe-se também que a chegada desse movimento de fuga mundi à fé dos seguidores de Cristo se deve ter dado nas regiões do delta do Nilo e nas vertentes do Sinai, zonas de grande efervescência mística desde, pelo menos, o caldo cultural criado pelas invasões de Alexandre, no séc. IV a.C.

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Hoje, depois de se ter tornado assente que a vida de retiro no deserto, a génese do monaquismo, nasceu muito antes do Cristianismo, e sabe-se também que a chegada desse movimento de fuga mundi à fé dos seguidores de Cristo se deve ter dado nas regiões do delta do Nilo e nas vertentes do Sinai, zonas de grande efervescência mística desde, pelo menos, o caldo cultural criado pelas invasões de Alexandre, no séc. IV a.C.

Entre os vários mosteiros que se terão formado no Sinai, mais ou menos organizados, ou mesmo verdadeiramente informais, com grupos de discípulos em torno de um mestre carismático, encontra-se o de Santa Catarina. Com uma vida complicada, no meio de rotas caravaneiras, sujeito a ataques frequentes, Justiniano terá decidido fortificar alguns desses dois mosteiros do Sinai.

O significado deste lugar e mesmo do próprio topónimo é imenso, e nele se conta toda a história religiosa do Mediterrâneo nos últimos três milénios. O Mosteiro de Santa Catarina estará supostamente junto ao local da sarça-ardente, o centro da hierofania a que Moisés assistiu e da qual resulta uma unidade ética mediterrânica em torno dos Dez Mandamentos.

Nessa simbólica da luz, que não se pode ver mas que traz a plena sabedoria e protecção, e que, seguindo um apócrifo cristão, Maria na fuga para o Egipto, terá colocado Jesus nessa mesma chama, como que revivificando a Aliança anterior feita com o seu povo através de Moisés.

Mais tarde, quando nascem os mosteiros, o nome usado será o de uma mártir com pendor filosófico, com uma vida repleta de episódios que lembram Hipátia de Alexandria, a mulher filósofa há pouco anos recordada na tela do cinema. Catarina é a junção entre a Sabedoria e a Ascese, o martírio, o centro da vida monástica. Ironia dos tempos cartesianos, já no século XX o seu nome foi retirado dos calendários litúrgicos romanos por falta de provas da sua real existência, como se o real no coração dos crentes se manifestasse por provas historiográficas. 

Neste contexto, o Mosteiro de Santa Catarina é o exemplo perfeito de uma convivência religiosa, cultural e mental. A uma altitude de 1570m, na cidadela que compõe o complexo, hoje podemos encontrar dentro dos mesmos muros uma basílica, várias capelas, e uma mesquita, tudo em torno de um lugar de memória judaica.

No interior da mesquita encontra-se, segundo a tradição, um manuscrito do Profeta Maomé, que, ao ter sido ali bem acolhido pelos monges, pede o bom tratamento dos cristãos por parte de todos os muçulmanos.

Num momento em que é tão importante encontrar aquilo a que hoje chamamos de “boas práticas”, olhemos para essas palavras atribuídas a Maomé. Trata-se de uma carta que ostenta a sua legitimidade, através da impressão da mão do Profeta fundador do Islão.

"Esta é uma mensagem de Muhammad ibn Abdullah, um pacto para quem adoptar o cristianismo, perto e longe, estamos com eles.

Em verdade, os servos, ajudantes e os meus seguidores devem defendê-los, porque os cristãos são meus cidadãos, e por Deus! Eu serei contra qualquer coisa que os desagrade. Nenhuma compulsão sobre eles. Nem os seus juízes são removidos de seus cargos, nem os monges dos seus mosteiros. Ninguém destruirá a casa de sua religião, para a danificar, ou para tomar qualquer coisa, para casa de muçulmanos. Se alguém procedesse desta forma, ele iria estragar a aliança de Deus e desobedecer ao Seu Profeta.

Na verdade, eles são meus aliados e são protegidos pela minha carta de protecção contra tudo o que odeiam. Ninguém os forçará a viajar ou obrigará a lutar. Os muçulmanos devem lutar por eles. Se uma mulher cristã casa com um muçulmano, o casamento não pode ter lugar sem a sua aprovação. Ela não deve ser impedida de visitar sua igreja para orar.

Suas igrejas são para ser respeitadas. Eles não devem ser impedidos de repará-las, nem de exercer a santidade de seus convénios. Ninguém da nação (muçulmanos) desobedeça a aliança até ao final dos tempos."

Demonstrando os novos tempos tecnológicos, mas essencialmente tempos de possibilidades de diálogo, neste cantinho da Europa, recebi uma tradução em inglês deste texto através de um imã, Rachid Ismael, director do Colégio Islâmico de Palmela. Já tinha ouvido falar do texto mas não o conhecia. Posto a circular entre investigadores de Ciência das Religiões, um católico, Rui Oliveira, indicou-me esta tradução para português, feita por um padre ortodoxo, protopresbítero Alexandre Bonito, uma das pessoas neste país mais implicadas nas questões do diálogo inter-religioso. Nesta rede de homens de Boa Vontade, tive o prazer de redigir este texto para que mais pessoas dele tenham conhecimento.

Historicamente, pouco se pode afirmar de certo sobre este texto. Sendo uma importante relíquia, o original foi levado em 1517 para Constantinopla pelo sultão Selim I, e estará no Topkapi, em Istambul. Em Santa Catarina encontra-se uma cópia oferecida pelo sultão.

De resto, é impossível saber se a dita carta foi escrita pelo Profeta dos Muçulmanos, ou não. A ciência talvez pudesse fazer aqui algum milagre. Mas, tal como em relação à existência de Santa Catarina, o mais importante, hoje, é que existe o mosteiro com o seu nome, tenha ela existido, ou não. As palavras são mais importantes do que a materialidade do seu suporte ou a fluência da língua lá vertida. Perante um texto desta natureza, a sua simples verosimilhança é de uma força tremenda. A factualidade escondida nos gestos que produziram estas linhas é o menos importante, tanto mais que, independentemente da autoria, o conteúdo vai de acordo com os ensinamentos de Maomé, o Profeta do Islão, e podem-se colher em vários trechos do próprio Corão.

De resto, as palavras são claras e lançam-nos de um passado de quase milhar e meio de anos para um futuro que é o imediato, o ainda nem amanhã, mas o agora. A urgência da nossa existência pede-nos que olhemos para este texto, onde as tradições religiosas, cristã e muçulmana, se consensualizaram num gesto de Paz, com o desejo de frutificação dos tempos.

Num local sagrado para judeus, cristãos e muçulmanos, que mais podemos procurar e desejar para fomentar o diálogo que uma carta de Maomé a proteger os cristãos? 

 

Paulo Mendes Pinto

Director do Instituto Al Muhaidib de Estudos Islâmicos da área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona. Embaixador do Parlamento Mundial das Religiões