Por um caminho onde todos perdemos
Esteve em discussão uma proposta de lei que implicava a possibilidade de a arquitectura também ser feita (deveria dizer tentada) por não-arquitectos. No passado dia 12 de Março a Assembleia da Républica fez com que a proposta de Lei nº 227/ XII garantisse o exercício da profissão aos arquitectos, mas deixou em aberto ambiguidades relativas a áreas concêntricas como a da direcção e fiscalização das obras. Num artigo publicado neste jornal a 13 de Março lê-se uma declaração do bastonário dos Engenheiros onde se defende a possibilidade dos engenheiros poderem subscrever projectos de arquitectura.
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Esteve em discussão uma proposta de lei que implicava a possibilidade de a arquitectura também ser feita (deveria dizer tentada) por não-arquitectos. No passado dia 12 de Março a Assembleia da Républica fez com que a proposta de Lei nº 227/ XII garantisse o exercício da profissão aos arquitectos, mas deixou em aberto ambiguidades relativas a áreas concêntricas como a da direcção e fiscalização das obras. Num artigo publicado neste jornal a 13 de Março lê-se uma declaração do bastonário dos Engenheiros onde se defende a possibilidade dos engenheiros poderem subscrever projectos de arquitectura.
É uma ideia que implica a intervenção no território, nos espaços onde vivemos e influi na mesma dimensão no individual e no colectivo. Influi na iniciativa pública e privada. Para um cidadão atento estas notícias não parecem ser de 2015. A sua estranheza aberrante parece pertencer a um passado que autorizou esta actividade num contexto temporal específico que demorou décadas a superar. O que esteve em discussão na Assembleia da República implicava um recuo com consequências previsíveis – um caminho onde todos perdem.
Foi preciso esperar até 2009 para que a Lei 31/2009 delimitasse a prática da arquitectura aos arquitectos. Para trás e desde 1973 ficaram décadas onde a construção foi permitida a agentes técnicos de arquitectura e engenharia e a engenheiros civis. Os resultados concretos desta decisão política não se caracterizaram, genericamente, pela qualidade ou por transformar positivamente o meio em que vivemos. A urgência de um momento histórico obrigou a prescindir do conhecimento. Os episódios constructivos desta medida agonizam na paisagem. Os resultados foram desastrosos, principalmente fora das grandes cidades. Hoje não existem razões na sociedade portuguesa para que este episódio se replique.
A proposta de Lei nº 227/ XII não implicava um problema exclusivo dos arquitectos. É um problema da sociedade, um problema de todos nós, em, pelo menos, duas dimensões. A primeira prende-se com a confiança nos orgãos que legislam. A segunda prende-se com um legado socio-cultural às gerações futuras. Voltemos à primeira. Espera-se um acerto permanente e não uma hesitação constante. O acerto deve garantir mecanismos que permitam que o conhecimento aplicado, arquitectura incluída, transforme o território e as cidades através do trabalho de pessoas formadas em instituições universitárias igualmente habilitadas e dedicadas a pensar e ensinar métodos e práticas. A hesitação ao habilitar quem pode projectar e construir não pode ter lugar porque está demonstrado que não gerou qualidade.
Passaram apenas cinco anos desde que a arquitectura é apenas da responsabilidade dos arquitectos. Hoje existem cerca de vinte mil inscritos na ordem profissional. Os resultados destes cinco anos ainda estão por avaliar (os erros, como em todas as actividades, existem e existirão, as qualidades e o reconhecimento dos pares e da sociedade são diariamente veiculadas nos jornais) mas uma alteração significa a perda de confiança nos legisladores. Será um erro circunscrever esta questão a um problema corporativo, que também é, e que a Ordem dos Arquitectos deve tomar hoje como a sua principal missão nas ambiguidades que ainda persistem (é a sua razão existencial que está em causa). É um erro uma sociedade colocar a prática da arquitectura num patamar de fricção diária que se verifica nos países em vias de desenvolvimento, onde apenas uma ínfima fracção dos arquitectos possui autonomia em relação aos engenheiros. Onde apenas uma ínfima parte do construído afirma os valores do individual e do colectivo.
A segunda dimensão é igualmente política. Trata-se do legado sócio-cultural que uma decisão destas acarreta. A simples possibilidade deste assunto estar a ser discutido implica ignorância na sua dimensão mais devastadora porque afecta em simultâneo o passado, o presente o futuro. Afecta o perfil de uma sociedade que não deve desistir de vincular o conhecimento que produz para o bem comum.
Parece ser unânime que uma das formas de gerar qualidade é a capacidade de produzir arquitectura para que esta depois possa ser repetida em condições distintas. Daí a importância das obras maiores, dos prémios e da valorização da arquitectura erudita. Estes implicam outras obras que delas derivaram e que irão gerar aquilo a que chamamos qualidade média ou genérica. Abrir o caminho do projecto a engenheiros implica um corte num processo que é ainda recente e que não teve tempo de se consolidar.
O inverso aliás seria igualmente nefasto. Arquitectos a calcularem estruturas ou quaisquer infra-estruturas colocaria o mesmo problema. Mas por uma questão de formação académica (para onde contribuem conhecimentos de áreas distintas e uma preparação para a sobreposição) essa possibilidade nunca se colocaria. A especificidade da engenharia é integrada e honrada pela arquitectura. A arquitectura, quando acontece, faz a síntese incluindo elementos que nenhuma ciência exacta poderá alguma vez fixar ou circunscrever. É essa a sua contribuição e por isso não partilhável com outras profissões.
Arquitecto e professor universitário