Um vulcão chamado Kleist
Em Amor Louco encontramo-nos no vértice derradeiro da conturbada passagem de Heinrich von Kleist pela “estranha instituição que é este mundo” (como o próprio a exprimiu).
Nietzsche chamou-lhe autor “vulcânico”. Nem mesmo quando parecia adormecido, o vulcanismo de Heinrich von Kleist realmente se extinguia. Uma vida como a sua estendeu-se até aos limites do suportável, mesmo se apenas pôde prolongar por uma década essa “aflição de 24 anos” que era, então, toda a sua existência. Tratou-se, portanto, de um trajecto de permanente conflito – um combate com o demónio, para usar a fórmula do título de um livro famoso de Stefan Zweig (O Combate com o Demónio, Antígona, 2004). Oposição lancinante entre pensamento e acção (central em Kleist); trânsito impetuoso de um espírito iluminista para uma espécie peculiar de romantismo; o empenhamento político sonegado pela abjecção de toda a res publica.
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Nietzsche chamou-lhe autor “vulcânico”. Nem mesmo quando parecia adormecido, o vulcanismo de Heinrich von Kleist realmente se extinguia. Uma vida como a sua estendeu-se até aos limites do suportável, mesmo se apenas pôde prolongar por uma década essa “aflição de 24 anos” que era, então, toda a sua existência. Tratou-se, portanto, de um trajecto de permanente conflito – um combate com o demónio, para usar a fórmula do título de um livro famoso de Stefan Zweig (O Combate com o Demónio, Antígona, 2004). Oposição lancinante entre pensamento e acção (central em Kleist); trânsito impetuoso de um espírito iluminista para uma espécie peculiar de romantismo; o empenhamento político sonegado pela abjecção de toda a res publica.
A chamada crise kantiana de 1801 revelou a Kleist a impossibilidade de uma verdade absoluta. Uma descoberta vivida de forma trágica e que o levaria a perder a sua aspiração última de um infinito que viu assim extinto. A vida militar que abraçou, por pressões, entre outras, familiares, mas a que veio a chamar “um monumento vivo à tirania”. Esta biografia não foi estritamente uma caravana de contradições, mas a assunção custosa e sobremaneira arriscada desse abismo que definiu uma condição vital e uma escrita. As obsessões e males de Kleist foram por ele comparados à linha de baixo de uma peça musical. Uma vida, enfim, de planos perpetuamente gorados: tornar-se professor, editor, funcionário público e até agricultor. A escrita foi, em certa medida, o brilhante culminar de circunstâncias biográficas singularmente harmonizadas com uma noção da actividade literária que prefigura muita modernidade. Na sua atenção à intimidade entre pensamento e linguagem (Sobre o Teatro de Marionetas e Outros Escritos, Antígona, 2009), no modo como equacionou os conflitos entre a razão de Estado e a condição individual, mas sobretudo pela irónica distância com que lida com os materiais da historiografia e da ficção tão à frente do seu tempo (Michael Kolhaas, Antígona, 2004, a novela que inspirou, recentemente, o filme de Arnaud des Pallières A Vingança de Michael Kolhaas). Até no modo como pegou num modelo como o de Molière (Anfitrião, Cotovia, 2007), e o dotou de um espírito crítico e de um trágico que estavam ausentes daquela matriz clássica.
Em Amor Louco, de Jessica Hausner, encontramo-nos no vértice derradeiro da conturbada passagem de Heinrich von Kleist pela “estranha instituição que é este mundo” (como o próprio a exprimiu). Kleist procura uma companhia, não para a vida, mas para a morte, e é esse o seu feitiço e a sua melodia. Nesse encantamento modula as suas palavras, e todos os seus movimentos obedecem a esse propósito. Não o veremos na película, mas o projecto de um pacto suicida (com que Kleist tenta aliciar a prima, Marie, e, mais tarde, Henrietta Vogel, por fim “escolhida”) já fora tentado com um amigo. “É apenas como caminhar de uma quarto para o outro”, dir-lhe-á numa carta. O filme concentra-se, porém, na voragem do amor. Um amor, mais do que louco, malsão. E profundamente egoísta – um egoísmo que a própria realizadora não desmente. Não se trata do egotismo romântico (literário ou, pelo menos, moldado pela sensibilidade estética), mas de um bem pragmático desejo de predomínio. Quando Henrietta, finalmente, acede aos insistentes pedidos de Kleist é porque sabe estar a morrer de doença terminal (à luz dos conhecimentos de então). A reacção de Heinrich é esclarecedora. Mostra-se indeciso perante os motivos da Sr.ª Vogel. Recua, pretende outra parceira para a vertigem do suicídio. Uma que se mate por ele, e não por uma doença.
A ideia de morte, contudo, introduz-se antes, no filme, e de forma mais sub-reptícia (e eficaz). No trecho cantado que os convivas escutam, perante a ideia da morte da flor, o olhar de Kleist suspende-se, siderado, poisando em Henrietta. As flores reaparecem, quando Frau Vogel é vista por um especialista (que induz nela o que chama “sono magnético”, um processo de hipnose) e lhe confia que a beleza delas a entristece por possibilitar um vislumbre da sua desaparição. Mas não deixam de estar presentes numa das últimas cartas que Kleist escreveu: “amor e morte alternam para coroar estes últimos momentos da minha vida com flores celestiais e terrenas”. Esse aspecto faz, aliás, parte do código genético do filme. A proximidade de fontes como a correspondência do autor é, apesar da liberdade criativa, uma das suas âncoras.
Para a sua negríssima melancolia, encontra Kleist as burguesas respostas de uma possível inquietação da vesícula. Quando é bem outro órgão, ou é todo o corpo e alma, o que dói ao poeta. “É o próprio universo”, dirá a sua personagem. É a Weltschmerz, o mal do mundo, postulado por Jean Paul, e vertido em toda a vida e obra de Heirich von Kleist. O amor é aqui uma poção malsã, para a qual “nem a vida” pode servir de abrigo. Ele é essa realidade última que o poeta superlativará no epílogo da sua vida e obra – que o filme tão subtilmente encapsula.
A ideia de liberdade de Frau Vogel colide, ao princípio, com a de Kleist. Quando uma pequena assembleia discute, em torno do chá, as liberdades e deveres de todos e para todos – uma ideia francesa, como dirá uma das convivas, tão contrária ao espírito e prática da Prússia, pontificará um outro –, o poeta garante preferir a ruína à servidão. Numa das suas cartas, Heinrich von Kleist diria, em direcção análoga, “até a morte era preferível” à condição de “marioneta nos fios do destino” (não esquecer Sobre o Teatro de Marionetas). A mulher é do seu dono, Sr. Vogel, e assume a servidão como um posto na instituição do matrimónio. A mudança, em Henrietta Vogel, é mostrada através da sangria, com que o médico tenta, com o saber daquela época, debelar o que é já, por certo, uma afectação de um espírito que adoece, e não um padecimento do corpo. Corpo esse que, de certa maneira, se prepara já para a despedida.
O mutismo da criada, a inexpressividade da filha, são sinais de um mundo fechado e rígido, que se extrema perante o escaldante turbilhão interno que viaja dentro de Kleist – e já em Henrietta.